🔓 O ninho do pássaro

Publicado em 1954 e agora lançado no Brasil pela Alfaguara, O ninho do pássaro confirma o talento de Shirley Jackson
O ninho do pássaro
Shirley Jackson
Trad.: Débora Landsberg
Alfaguara
262 págs.
01/11/2025

Publicado em 1954 e agora lançado no Brasil pela Alfaguara, O ninho do pássaro confirma o talento de Shirley Jackson para explorar as fronteiras entre o real e o perturbador. Menos conhecido que A assombração da casa da colina ou Sempre vivemos no castelo, o romance é uma das incursões mais ousadas da autora no terreno da psicologia e da identidade fragmentada — um estudo sombrio sobre a mente humana e suas múltiplas vozes.

A história acompanha Elizabeth Richmond, jovem que trabalha em um museu e leva uma vida apagada até começar a sofrer enxaquecas e lapsos de memória. Encaminhada a um psiquiatra, o doutor Wright, ela se revela um caso de personalidade múltipla. Dentro de Elizabeth coexistem outras mulheres — Betty, Bess e Beth — que disputam o controle do corpo e da narrativa. Jackson constrói, com precisão e ironia, um retrato inquietante da desintegração do eu e das forças sociais que o moldam.

O título do livro funciona como metáfora do próprio enredo: o ninho é abrigo, mas também prisão. A protagonista abriga dentro de si diferentes “aves” que tentam sobreviver, em um espaço de conflito entre desejo e repressão. A autora transforma essa luta interna em alegoria do aprisionamento feminino e da busca por autonomia em uma sociedade que exige equilíbrio e docilidade.

Sem recorrer ao sobrenatural, Jackson produz o mesmo desconforto de suas histórias de terror. O horror aqui é psicológico, nascido das tensões da vida cotidiana — do medo do espelho, da solidão, do silêncio. A prosa elegante e fria alterna introspecção e observação clínica, conduzindo o leitor a um terreno em que a realidade se desfaz aos poucos. É nesse limite entre razão e delírio que se define o universo literário da autora.

O romance reflete o espírito dos anos 1950, quando a saúde mental e a repressão social se tornavam temas centrais. Elizabeth é filha de uma época que cobra normalidade e submissão, mas nega espaço à diferença. Sua fragmentação é também um protesto contra a ordem que a oprime. Jackson, com olhar agudo, transforma essa crise íntima em metáfora do feminino aprisionado — e, ao mesmo tempo, em gesto de libertação pela linguagem.

Revisitado hoje, O ninho do pássaro antecipa debates contemporâneos sobre identidade e subjetividade. É um romance psicológico, simbólico e humano, em que cada personalidade de Elizabeth reflete uma tentativa de sobreviver à fragmentação. A nova edição brasileira reafirma o alcance de uma escritora que fez da mente um campo de batalha e da literatura uma forma de expor o invisível. Mais de meio século após sua publicação, o livro permanece uma radiografia das mais precisas da cisão interior.

Rascunho

O Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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