🔓 Mãezinha

Vencedor do Prêmio Caminhos, o romance mãezinha¸ de Izabella Cristo, expõe com precisão e coragem uma experiência de maternidade
Mãezinha
Izabella Cristo
Dublinense
320 págs.
01/11/2025

Vencedor do Prêmio Caminhos, o romance mãezinha¸ de Izabella Cristo, expõe com precisão e coragem uma experiência de maternidade atravessada pela dor, pela culpa e pelo desamparo, desmontando a imagem idealizada da “mãe perfeita” para devolver-lhe sua dimensão humana, contraditória, física e emocional. A autora escolhe olhar de frente o corpo exausto, a mente em colapso, o amor que hesita — e transforma esse gesto em literatura tensa e intensa.

Narrado em primeira pessoa, o livro acompanha uma mulher recém-mãe que, entre a amamentação, a privação de sono e o isolamento, tenta recompor os limites da própria identidade. A linguagem é direta, quase brutal em certos momentos, mas também capaz de produzir lampejos de ternura e humor. O que a narradora escreve é o que resta de si — uma tentativa de se entender por meio das palavras. A narrativa alterna lucidez e delírio, memória e presente, fazendo do fluxo verbal uma extensão da mente em crise.

Izabella Cristo faz da escrita um exercício de escuta do corpo. Cada frase parece tatear o espaço entre o dizer e o sentir. O texto tem ritmo fragmentado, mas o fragmento aqui é estrutura, não ruína: é o modo como a consciência se organiza diante do caos. O romance se constrói a partir de gestos mínimos — o choro do bebê, o leite que vaza, o quarto escuro, a insônia — para atingir zonas de enorme potência simbólica. O que se narra é a maternidade em sua forma mais crua: amor e exaustão coexistindo, afeto e medo se confundindo.

Ao se recusar a narrar a mãe ideal, mãezinha se torna um romance de resistência. É um livro sobre uma mulher tentando não desaparecer sob o peso das expectativas — sociais, afetivas e históricas — impostas à figura materna. A protagonista não busca ser exemplo, busca sobreviver. Essa franqueza desconcerta e, por isso mesmo, liberta. A autora transforma a vulnerabilidade em força estética, revelando que a literatura pode ser também um espaço de cura, ainda que por meio da exposição da ferida.

O reconhecimento pelo Prêmio Caminhos reforça a relevância dessa voz emergente. Izabella Cristo integra uma geração de escritoras que têm renovado a ficção brasileira ao tematizar o corpo feminino e a experiência da maternidade sem concessões. Sua escrita tensiona os limites entre o íntimo e o político, entre a confissão e a criação. O resultado é um livro que fala de uma mulher, mas também de uma época: um tempo em que a escrita ainda é uma das poucas formas de reivindicar o direito de existir plenamente.

A força de mãezinha está em não oferecer respostas fáceis. Sua prosa tem algo de diarística, mas vai além do relato: é literatura que se constrói a partir da experiência, sem se reduzir a ela. Cada página é uma negociação entre lucidez e desespero, entre o impulso de cuidar e o de fugir. No fim, resta uma certeza: escrever é o que impede a narradora de se perder completamente.

Mais do que um livro sobre maternidade, mãezinha é um romance sobre o corpo — o corpo como casa, prisão, território e linguagem. É nele que o amor e a dor se inscrevem, e é por meio dele que a narradora tenta encontrar sentido. O texto não suaviza, mas também não desumaniza; ao contrário, insiste na complexidade de ser mãe e mulher em um mundo que exige sacrifício e silêncio.

A leitura de mãezinha é exigente, não poupa o leitor, mas o recompensa com uma experiência de empatia e reconhecimento. Ao transformar o caos em forma, Izabella Cristo faz o que a boa literatura sempre fez: ilumina a escuridão, não para dissipá-la, mas para que possamos enxergar melhor o que existe dentro dela.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

Rascunho