🔓 Alberto Manguel: uma vida imaginária

Ler Alberto Manguel sempre foi mais do que acompanhar a trajetória de um crítico, ensaísta ou ficcionista
Alberto Manguel: uma vida imaginária
Sieglinde Geisel
Trad.: Humberto do Amaral
Edições Sesc
132 págs.
01/10/2025

Ler Alberto Manguel sempre foi mais do que acompanhar a trajetória de um crítico, ensaísta ou ficcionista. É encontrar um homem que fez da leitura não apenas uma prática intelectual, mas um modo de vida. Em Alberto Manguel: uma vida imaginária, essa dimensão se torna ainda mais clara. Ao longo de extensas conversas conduzidas pela jornalista e crítica literária Sieglinde Geisel, o autor argentino revisita sua formação como leitor, os encontros que marcaram seu percurso e as experiências que moldaram sua relação visceral com os livros.

Manguel nasceu em Buenos Aires em 1948 e passou a infância entre a Argentina e vários países, por conta da carreira diplomática do pai. Foi cedo que se descobriu leitor obsessivo, capaz de atravessar, ainda adolescente, bibliotecas inteiras. Em sua juventude, tornou-se conhecido por um episódio lendário: durante um período, leu em voz alta para Jorge Luis Borges, já cego. Esse contato deixou marcas profundas, não apenas no entendimento da literatura, mas também na percepção de que o leitor, ao dar voz ao texto, recria e amplia sua força.

No diálogo com Geisel, Manguel não se contenta em reconstituir lembranças. Ele interroga a si mesmo e, com isso, provoca o leitor a repensar a função da leitura. O que significa ser, como ele próprio, cidadão de muitos países e, ao mesmo tempo, estrangeiro em todos eles? Como a biblioteca pessoal — que chegou a reunir dezenas de milhares de volumes — se torna espelho de uma identidade em constante construção? E o que acontece quando essa biblioteca precisa ser desmontada, encaixotada, realocada, deixando o leitor diante da dolorosa consciência de que os livros, tão íntimos, também são frágeis objetos submetidos ao tempo?

A “vida imaginária” evocada no título não é apenas metáfora: é a própria condição da existência para alguém que encontra nos livros não um refúgio, mas uma forma de realidade. Manguel insiste que cada leitura é uma tentativa de autodefinição, um gesto de reconhecimento de si diante do outro. Ler, para ele, não é consumo cultural nem acúmulo de títulos — é uma maneira de existir.

Ao longo das entrevistas, aparecem reflexões sobre tradução, exílio, a política da memória, o papel das bibliotecas públicas e o perigo sempre presente da censura. Manguel fala com paixão sobre o ofício de traduzir, descreve a experiência de dirigir a Biblioteca Nacional da Argentina e não hesita em abordar os dilemas contemporâneos da cultura, da ascensão dos discursos autoritários às mudanças provocadas pela tecnologia digital. Em todos os casos, a chave de leitura permanece a mesma: os livros como espaço de resistência e liberdade.

Geisel, por sua vez, conduz a conversa com rigor e leveza. Não se trata de uma entrevista protocolar, mas de um diálogo vivo, em que as perguntas abrem caminhos inesperados. A interlocutora sabe ouvir, e por isso Manguel pode se revelar com espontaneidade — falando de amores, amizades, viagens, perdas. O resultado é um retrato multifacetado, em que se reconhece não apenas o intelectual consagrado, mas também o homem atravessado pela experiência comum da fragilidade.

O livro interessa tanto a quem já acompanha a obra de Manguel quanto a leitores que chegam a ele pela primeira vez. Em suas páginas, encontram-se ecos de seus ensaios mais célebres — Uma história da leitura, A biblioteca à noite, O leitor como metáfora —, mas em tom confessional, permeado por confidências e hesitações. É como se a vasta reflexão crítica se condensasse em narrativa pessoal, em pequenas iluminações que revelam de onde vem sua paixão por ler e escrever.

Mais do que um registro biográfico, Alberto Manguel: uma vida imaginária é uma meditação sobre o sentido da literatura em nossas vidas. Ao lê-lo, o leitor se reconhece em sua própria experiência de leitura: nos livros que nos marcaram, nos autores que nos acompanharam, nas bibliotecas que montamos e desmontamos. A cada página, Manguel nos lembra de que a literatura não é ornamento, mas ferramenta para pensar o mundo e suportar sua complexidade.

Num tempo em que a pressa e a superficialidade parecem ditar os ritmos da vida, a leitura de Manguel — e sobre Manguel — devolve densidade ao ato de ler. Ler é demorar-se, é criar vínculos duradouros com as palavras, é aceitar que nossa “vida real” é também, inevitavelmente, uma vida imaginária.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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