🔓 A hora da estrela

Mais de quatro décadas após sua publicação original, "A hora da estrela" retorna em uma versão que dialoga com novas linguagens e leitores
A hora da estrela
Clarice Lispector
Roteiro: Leticia Wierzchowski
Arte: Line Lemos
Rocco
112 págs.
01/10/2025

Mais de quatro décadas após sua publicação original, A hora da estrela retorna em uma versão que dialoga com novas linguagens e leitores. O romance derradeiro de Clarice Lispector — lançado em 1977, pouco antes da morte da autora — ganha uma adaptação em quadrinhos, com roteiro de Leticia Wierzchowski e ilustrações de Line Lemos. A iniciativa insere-se na tradição de reler clássicos literários por meio de HQs, abrindo possibilidades para que uma das narrativas mais emblemáticas da literatura brasileira se renove sem perder sua força.

A história de Macabéa, a datilógrafa nordestina que migra para o Rio em busca de uma vida melhor, permanece a mesma em sua essência: uma personagem marcada pela invisibilidade, pelo silêncio e pela precariedade existencial. Em Clarice, essa condição se transforma em experimento de linguagem — um romance que, mais do que narrar, reflete sobre o próprio ato de narrar. A adaptação de Wierzchowski respeita esse núcleo, mas traduz a tensão verbal de Clarice em cenas e diálogos visuais, criando um ritmo próprio que aproxima o leitor de Macabéa sem trair o original.

Wierzchowski, conhecida por romances como A casa das sete mulheres, enfrenta aqui o desafio de se debruçar sobre uma obra canônica. Em vez de domesticar a prosa clariceana, opta por acolher suas ambiguidades e seu fluxo descontínuo. O narrador Rodrigo S. M., com seu jogo metalinguístico e sua ironia ácida, reaparece em legendas enxutas que preservam o tom questionador. O roteiro mostra-se consciente de que o coração da narrativa está menos na trama do que na tensão entre narrador, personagem e linguagem.

A arte de Line Lemos acrescenta uma camada fundamental à experiência. Seus traços, de contornos delicados e cores que oscilam entre o opaco e o vibrante, conferem corporeidade a uma protagonista que, no romance original, parecia sempre esvanecer entre as palavras. Lemos constrói uma Macabéa franzina, de olhar perdido e corpo desajustado ao espaço urbano, mas capaz de despertar empatia. O ambiente do subúrbio carioca aparece em cenas que mesclam realismo e sugestão, reforçando a sensação de deslocamento permanente.

Esse encontro entre literatura e quadrinhos também dialoga com o espírito experimental de Clarice. Autora que sempre desafiou fronteiras formais, escreveu um romance que é, ao mesmo tempo, narrativa, ensaio, confissão e crítica social. Ao ser transposto para os quadrinhos, A hora da estrela encontra uma forma que não busca “simplificar” sua complexidade, mas oferecer outra entrada para sua densidade poética. A adaptação amplia o alcance da obra e contribui para que novas gerações se aproximem de Clarice — não como monumento intocável, mas como autora viva, em diálogo com linguagens contemporâneas.

A trajetória de Clarice tem sido marcada por múltiplas releituras. Desde traduções para dezenas de idiomas até estudos acadêmicos em universidades do mundo inteiro, sua obra percorre um vasto território crítico. A hora da estrela, em particular, consolidou-se como porta de entrada para leitores iniciantes. A figura de Macabéa tornou-se símbolo da exclusão social e da solidão, mas também da resistência pela linguagem. Ao receber uma versão em quadrinhos, a personagem ganha novos contornos, mantendo-se atual em um país ainda marcado por desigualdades e silenciamentos.

A HQ dialoga com um movimento crescente de adaptações gráficas de clássicos literários, nacionais e estrangeiros. Essas edições democratizam o acesso, convidando leitores que muitas vezes circulam mais pelos quadrinhos do que pela prosa literária. No caso de Clarice, há também uma dimensão estética: a linguagem fragmentada e a busca pelo essencial encontram eco natural na arte sequencial, que trabalha com cortes, elipses e sobreposições.

Assim, esta nova versão de A hora da estrela não deve ser lida como substituição do romance original, mas como gesto de continuidade. É Clarice relida por Wierzchowski e Lemos, mediada pelo tempo e pelas linguagens gráficas. Um testemunho de que os clássicos sobrevivem não porque permanecem iguais, mas porque se transformam, capazes de interpelar leitores em diferentes épocas.

Macabéa, com sua ingenuidade e fragilidade, continua a ecoar como metáfora do ser humano reduzido ao quase nada — mas que, paradoxalmente, revela o todo da condição humana. A estrela que se apaga no final do romance brilha de novo nesta adaptação, agora iluminada por imagens e cores que renovam o impacto de uma obra que é, acima de tudo, inesgotável.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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