A contista e romancista Veronica Stigger foi a quarta convidada da 10ª temporada do Paiol Literário — projeto realizado pelo Rascunho, com patrocínio do Itaú, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura. Neste ano, os encontros acontecem online, com transmissão pelo YouTube, e todo conteúdo também fica disponível no site do projeto.
Stigger nasceu em Porto Alegre (RS), em 1973. Conhecida por borrar as fronteiras entre gêneros literários, publicou os livros Sombrio ermo turvo (2019), Sul (2016) e Opisanie świata (2013), vencedor dos prêmios São Paulo de Literatura, Machado de Assis e Açorianos. É autora também de O trágico e outras comédias (2004), Gran cabaret demenzial (2007), Os anões (2010), Massamorda (2011), Delírio de Damasco (2012), Minha novela (2013), Nenhum nome é verdade (2016) e dos infantis Dora e o sol (2010) e Onde a onça bebe água (2015).
Realizado desde 2006, o Paiol Literário já recebeu 75 escritores. O próximo bate-papo acontece em 5 de outubro, às 19h30, com participação do jornalista e romancista paraense Edyr Augusto. A medição dos encontros é do jornalista e escritor Rogério Pereira, editor do Rascunho.
• DNA artístico
As artes, de uma maneira geral, são fundamentais no meu cotidiano. Acho que não conseguiria viver sem. A literatura, a música, o cinema e as artes visuais me acompanham desde pequena. Meus pais, que são jornalistas, sempre tiveram muitos livros em casa. Minha mãe e minha avó, antes de eu aprender a ler, liam para mim. Elas me davam de presente aqueles disquinhos coloridos — sou antiga — que contavam histórias. Sempre tive contato muito próximo com a literatura e com o cinema. Meu pai é crítico de cinema. Nem lembro qual foi a primeira vez que fui ao cinema, porque sempre me levavam. A arte me acompanha, é parte da minha vida. E me parece que é por meio dela que consigo entender melhor o mundo. Porque a arte, de certa maneira, está sempre fazendo frente ao mundo. Está sempre enfrentando-o, confrontando a realidade à nossa volta.
• Influência de Lobato
Meus primeiros contatos com a literatura foram antes de eu começar a ler. Minha avó e minha mãe liam para mim Reinações de Narizinho e outros livros de Monteiro Lobato que elas achavam adequado para minha idade. Tinham alguns que elas interditavam: “Esse livro é muito difícil, só para quando você for mais velha”. Um deles é aquele em que a Emília e o pessoal do Sítio do Picapau Amarelo encontram o Minotauro e outros personagens mitológicos. Era um livro que eu queria ler, óbvio. Basta me dizer “esse você não vai entender”, que é justamente o que vou querer ler. Agora, pensando bem, isso até influenciou minhas escolhas futuras. No mestrado, estudei os personagens da mitologia greco-romana em Picasso. Acho que não foi por acaso.
• A estante
Depois desse primeiro contato com Lobato, tive vontade de dar conta da estante de livros que meus pais tinham em casa — mesmo que eles sempre me presenteassem com livros infantis (morria de medo, aliás, daqueles que abriam e saltavam coisas do meio, os pop-up). Havia vários de uma série que trazia contos de diferentes lugares do mundo. Mas queria mesmo era os da estante. Então, já começando a ler, vou fuçar nela. Me interessei pela Coleção Vaga-Lume, da Ática, que acho que formou um monte de gente, depois passei para os policiais. Li muita Agatha Christie, P. D. James, Raymond Chandler, Simenon… Todos os que tinham por ali. Foram esses livros que acabaram me levando para outro setor da estante: o dos clássicos. Meu pai tinha aquela coleção de clássicos da editora Abril, que publicou Proust, Dostoiévski, Tolstói. Não que eu já tenha lido Proust logo em seguida, mas estava lá. Li vários deles.
“As artes, de uma maneira geral, são fundamentais no meu cotidiano.”
• Descoberta do teatro
Outro setor me interessou sobremaneira, já na adolescência, foi o das peças de teatro, que li todo. Beckett. Tennessee Williams. Tchékhov. Shakespeare, que fazia parte de uma outra coleção, li quando já estava bem mais interessada nesse gênero literário. Muitas coisas eu não entendia, mas lembro de ler e gostar. Gostei muito daquela maneira que era tão diferente de escrever, de expressar, que era por meio do teatro. Foi outra arte que começou a me cativar, num momento em que também comecei a frequentar o teatro.
• Já leu todos?
Num primeiro momento, ao olhar para a estante dos meus pais e pensar “quero dar conta desses livros”, ainda achava que talvez fosse possível. Acontece que, depois de um tempo, a gente sabe que não é bem assim. Hoje em dia, a frustração deu lugar ao desespero: a gente sabe que não vai haver tempo de ler todos os livros. Não vamos dar conta de nossas bibliotecas. Não li todos os que tenho, mas preciso deles. Volta e meia, começo uma pesquisa nova e abro um livro que comprei há anos — e que ainda não tinha lido —, e é como se ele estivesse esperando aquele momento da leitura. Aquele momento em que eu precisaria abri-lo em função de uma pesquisa específica.
• Clarice Lispector
Busco sempre me surpreender com a leitura de ficção. Tenho meus escritores favoritos. Clarice Lispector, por exemplo, era alguém que eu queria enfrentar, no sentido de ler tudo. Aproveitei este momento em que eu e Eucanaã Ferraz estamos montando uma exposição para o Instituto Moreira Salles em torno de Clarice para finalmente parar e ler o que não havia lido dela. Gosto de fazer isso: unir o útil ao agradável. É uma leitura pragmática, em certa medida, porque tem a finalidade de trabalho, mas também é agradável.
• A hora do lixo
Não tem nada que eu não goste na obra da Clarice Lispector. Quando gosto de um autor (Clarice, Almodóvar… qualquer artista que me agrade), costumo apreciar o conjunto. Não quer dizer que não reconheça que há coisas que são menores em relação a outras, mas acho que mesmo o que chamaria de “menor”, faz parte da lógica toda. Clarice nos dá a chave disso: quando publica A via crucis do corpo, um livro que tem uma pegada erótica em alguns contos, ela dá para um amigo ler. E este amigo diz que é um lixo, e ela responde: “Há a hora do lixo”. A hora do lixo faz parte do conjunto. Por isso, gosto de tudo, porque tudo ajuda a iluminar pontos obscuros da obra. Isso não quer dizer que não tenha meus textos preferidos de Clarice — tenho, lógico. São aqueles sobre os quais mais falo. Há um dia que prefiro A paixão segundo G. H., outro A hora da estrela, depois Água viva, depois acho que melhor mesmo são os textos sobre Brasília. Aí, paro para pensar: “Não. O ovo e a galinha é genial”.
• O vírus e o verme
A pandemia me deixou um pouco enlouquecida. E não é só a pandemia. Como o [Fernando] Haddad definiu muito bem no ano passado: “É duro ter que lidar com um vírus e um verme, simultaneamente”. É essa criatura, esse verme, que não nos deixa trabalhar em paz. O Brasil não deixa a gente trabalhar em paz. Cansa muito. Enquanto a gente não se livrar do Bolsonaro, não vai ter paz. Está difícil para o mundo inteiro enfrentar a pandemia, mas nós ainda temos que enfrentar essa criatura criminosa e desqualificada. Mas por que estou dizendo isso? A pandemia me tirou um pouco a concentração da leitura e do trabalho em geral, e acho que não só minha.
• Leitura na pandemia
Não era em qualquer leitura que conseguia me concentrar, até sair a nova tradução de Anna Kariênina, de Irineu Franco Perpetuo, que está um espetáculo. Sei lá por quê, me deu a louca: “Vou ler”. Foi uma releitura, na verdade, já tinha lido naquele momento anterior em que enfrentava a estante dos meus pais — com uns 15 ou 16 anos, na edição da Abril Cultural, em dois volumes, se não me engano. Decidi reler agora, e é uma alegria. Achei que iria demorar o ano inteiro. Acabei lendo em duas semanas, no meio da confusão toda. Foi uma maravilha, porque abriu um espaço de respiro. E foi uma redescoberta de Tolstói.
• Trabalho com diversão
Não existe mais, para mim, leitura que não esteja envolvida com trabalho. Acho que, desde que decidi me tornar pesquisadora, professora, dar aulas (sejam relacionadas à criação literária, literatura ou artes visuais, de teoria e crítica da arte), não há nada mais que eu faça que não seja pragmático. Consegui juntar o trabalho e a diversão. Mesmo uma leitura para descansar acaba virando trabalho — um trabalho prazeroso. Terminei Anna Kariênina e o livro está todo anotado, com mil coisas que já tenho usado nos meus cursos.
“Enquanto a gente não se livrar do Bolsonaro, não vai ter paz. Está difícil para o mundo inteiro enfrentar a pandemia, mas nós ainda temos que enfrentar essa criatura criminosa e desqualificada.”
• Tolstói: antes e agora
Essa nova leitura de Anna Kariênina foi pura diversão. É uma alegria ver como o Tolstói organiza o livro. Tive várias surpresas nessa segunda leitura, como me deparar com um autor divertido. A escrita é genial, muito detalhada e descritiva em vários momentos. Tolstói torna as cenas que descreve muito visíveis. Claro, não lembro como li o livro há mais de 30 anos. Imagino que, devido à surpresa atual, não tinha notado algumas coisas. Mas nunca esqueci da frase de abertura, uma das mais fantásticas já escritas na literatura, que lembro de cor: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Ela já aponta para uma singularidade (a família infeliz), e a literatura é feita de singularidades. Mas o que eu talvez tenha esquecido, para minha grande surpresa, é o segundo parágrafo, em que Tolstói nos mostra o caos em que estava o mundo do irmão de Anna Kariênina. A maneira como ele narra isso é muito divertida. Até uma empregada já tinha mandado um bilhete para uma amiga pedindo emprego, para sair daquela casa. Nada estava em pé, era tudo uma confusão só: as crianças corriam pela casa e coisas assim. Há maneiras e maneiras de organizar a narrativa. E passei a me interessar mais nisso depois que, digamos assim, me tornei escritora.
• Astronauta frustrada
Pensando naquele momento em que todo mundo pergunta “o que você quer ser quando crescer?”, nunca disse que queria ser escritora. Nunca foi uma coisa pensada. Queria ser astronauta, lógico. Acho que todo mundo queria isso na minha época — nasci em 1973, a década posterior à ida do Gagarin ao espaço, que foi em 1961. Imagina: nasci quatro anos depois que o homem foi à Lua. Então, queria ser astronauta, depois, jornalista. Acabei me formando em jornalismo.
• Fabulação
Lembro de querer ser professora também, porque dava aula para todos meus colegas que não iam bem em alguma matéria. Mas não pensava em ser escritora. Ao mesmo tempo, gostava muito de escrever. Sempre gostei muito de escrever. Para mim, era divertido fazer as redações da escola. Nas aulas de português, no Rio Grande do Sul (friso isso porque não sei se em todo o Brasil é assim), havia sempre a tarefa de fazer uma redação ficcional. Eu escrevia para amigas e colegas que não gostavam de escrever. Quando pequena, tinha uma amiga que era muito próxima, quase uma irmã, a Letícia. Quando meus pais ou os pais dela davam jantares, nós nos reuníamos no quarto para criar peças de teatro. Eles odiavam, porque interrompíamos a conversa dos adultos para apresentar nosso grande espetáculo — uma peça concebida na hora, meio de improviso. Sempre gostei de fabular, de trabalhar com esse lado ficcional. Curiosamente, não pensava em ser escritora.
• Primeiro livro
Publico meu primeiro livros aos 30 anos, em 2003. O que aconteceu nesse caminho? Eu tinha um ou outro conto na gaveta, mas que não levava a sério. Nas aulas de português da faculdade de jornalismo, que fiz na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, também havia a tarefa de produzir redações ficcionais. Foi lá, aliás, que conheci o Eduardo Sterzi, com quem estou até hoje. Nós viemos juntos para São Paulo em 2001, onde conhecemos o Pádua Fernandes. O Pádua era uma espécie de correspondente de uma revista online portuguesa chamada Ciberkiosk. O Eduardo me incentivava a mostrar ao Pádua meus textos. Mostrei três contos, e ele me perguntou se podia publicar na revista. Disse que sim. Ele publicou. Um dia, o Pádua me ligou pedindo uma identificação para acompanhar os textos. Eu disse: “Esses textos fazem parte de um livro inédito, O trágico e outras comédias”. Um dos contos se chamava O trágico. Os editores gostaram muito dos contos, e um deles me pediu o livro. Queriam publicar pela Angelus Novus. Era 2002 e eu já estava em São Paulo para fazer o doutorado. Eu não tinha o livro, só quatro contos prontos e algumas ideias. Pedi um mês para “revisar” a obra, e na verdade foi o mês para fazer novos contos. Foi um livro finalizado em um mês. Nunca tive resposta tão rápida ao envio dos originais: no dia seguinte, mandaram e-mail com aprovação unânime. Meu primeiro livro sai assim, no susto, primeiro em Portugal, em 2003. No ano seguinte, sai no Brasil pela 7Letras.
• Processo de escrita (1)
Meu processo de escrita é um desastre. Não tenho rotina. Morro de inveja de quem diz que acorda e dá tantas horas para escrever. Sempre me prometo que vou fazer isso, tipo regime: “Segunda-feira vou me sentar e me dedicar uma, duas horas para escrever ficção”. Há vários outros projetos que ainda quero desenvolver, mas acabo sendo engolida por outras obrigações. Acabo não conseguindo desenvolver essa rotina. É uma coisa que venho tentando há um tempão. Na verdade, vou escrevendo. Quando saía na rua, estava sempre com um bloco na mão. Estava sempre, de certa forma, escrevendo. Anotando, tendo ideias para algum texto. A escrita sempre me acompanha. E quando digo que não tenho tempo para escrever, refiro-me à ficção, porque estou sempre escrevendo outras coisas: minhas aulas, textos para exposição, artigos, ensaios… Ou seja, estou sempre trabalhando a escrita.
• Processo de escrita (2)
Ainda hoje tento fazer muitas anotações. Quando quero acabar um livro, abro espaço no meu calendário e digo: “Vou me dedicar a terminar esse livro”. Está aí uma coisa que descobri ao longo desse tempo: quando nos sentamos para escrever é porque o livro já está praticamente pronto. Pronto como se não dedico parte do dia para a escrita de ficção? O livro vai sendo feito nesses intervalos, nessas anotações. A gente percebe que o livro já estava se fazendo nesse tempo, então é só questão de parar e organizar aquilo que já estava sendo produzido.
• Opisanie świata
Meu romance deu um pouco mais de trabalho. Na minha cabeça, é dividido em três momentos, mesmo que de fato não tenha nenhuma divisão. O livro conta a história de um polonês [Opalka] que descobre que tem um filho e esse filho, doente, pede para conhecê-lo. A história acompanha essa viagem da Polônia ao Brasil, às vésperas da Segunda Guerra Mundial. É desta viagem que vêm as três divisões: primeiro, a viagem de trem, da Polônia até algum porto da Europa, para vir ao Brasil — imaginei de Varsóvia a Hamburgo; depois, a viagem de navio; por fim, a chegada ao Brasil, na Amazônia, em Manaus. Foi um pouco mais complicado trabalhar o romance ― a começar que é mais extenso que o conto, o qual, por ser menor, termina mais rápido. É só quando termina que se descobre se um texto funcionou ou não; se a ideia veio a termo de uma maneira próxima do esperado. E eu queria fazer um romance fragmentado, todo trabalhado em episódios. Minha maior dificuldade era saber se aquilo que estava produzindo faria sentido, se aqueles episódios, aqueles fragmentos, estavam adquirindo sentido. E só saberia isso quando acabasse. A angústia é muito maior. Chegou um momento em que tive de me dedicar somente ao livro, para saber se ia funcionar ou não.
“Não existe mais leitura que não esteja envolvida com trabalho.”
• Projeto gráfico (1)
Toda vez que penso um livro, excetuando o primeiro, penso na forma que ele vai ter no final. Para mim, livro não é só texto. Ele é também a forma que esse texto vai tomar em livro, qual será a organização interna, se vai ter imagens ou não etc. Veja-se o caso de Os anões, que reúne textos que são muito pequenos (o maior deles tem 6 mil caracteres). Tem até uma epígrafe do Drummond, que reforça isso: “É um continho bobo, anão, contente da vida./ Vai no meu bolso. Não o leio para ninguém”. Por isso, queria que o livro também fosse pequenino. Na questão do design, sentei para conversar com o pessoal da Cosac Naify, expliquei que imaginava o próprio livro como um anão, como mais um pequeno do conjunto. Foi nessa conversa que surgiu a ideia de fazer o livro com papel cartonado, que é normalmente usado em livro infantil, para que ele ficasse mais grosso. Mas não queria que ele se parecesse com um livro infantil, porque não é. Muito pelo contrário, é um livro que sangra. Já no Gran cabaret demenzial, publicado antes, imaginei-o como um espetáculo. Ali, alternam-se textos longos e curtos; pode ter uma atração maior, depois vem uma vinheta, aquela coisa menor, que dá uma quebrada no ritmo. Por isso também, por tê-lo concebido como um espetáculo, ele não tem índice, mas um “programa”.
• Projeto gráfico (2)
Foi o mesmo processo no Opisanie świata, que saiu depois de Os anões. Nem sempre gosto de deixar dito explicitamente onde a história se passa, tipo: “Varsóvia, início de agosto de 1939”. Não. Gosto de ir dando pistas. O romance é todo construído assim. Disse à equipe do design que queria que o livro se organizasse tipo um filme: ele abre com imagens de Varsóvia; depois, vem a carta do filho pedindo para Opalka [personagem de Opisanie] encontrá-lo; então vem a do médico atestando que o filho realmente está mal; aí entra a parte dos créditos e finalmente começa o livro. Há várias narrativas, algumas são em primeira pessoa, outras terceira, e há inserções que eu queria que o leitor imaginasse que fossem de um guia de viagens que Bopp, outro personagem do livro, dá de presente para o Opalka. As diferentes narrativas são divididas por cores, por sugestão da equipe do design. São sempre projetos gráficos que têm a ver com o livro. Há coisas que dá para mexer, outras não. Agora, quando saiu a tradução da Paula Abramo para o Opisanie świata na Argentina, eliminamos as cores nas páginas sem qualquer prejuízo na concepção do todo. As ilustrações, por exemplo, não podem ser eliminadas; elas fazem parte do livro, estão dando contexto da história. Tudo que o narrador não diz, as ilustrações complementam.
• Projeto gráfico (3)
No livro Sul, publicado pela coleção de autores contemporâneos da Editora 34, o último texto é um poema longo de tom confessional, que se chama O coração dos homens. Queria que, depois dele, viesse um texto escondido, com folhas lacradas, que prometesse contar a verdade sobre O coração dos homens (e este texto, que é, na verdade, o texto final do livro, se chama justamente A verdade sobre o coração dos homens). Um texto confessional pressupõe que aquele “eu” que fala no texto tenha uma certa coincidência com esse “eu” que assina o livro. Não por acaso, a foto da capa é minha. Até cortei a franja na época, para que ninguém tivesse dúvida de que a menina da capa sou eu. Queria criar uma confusão e reforçar a ideia da coincidência. Assim, o trecho final vem fechado: se o leitor quiser romper o pacto ficcional que estabeleço, de que aquele poema longo é um texto confessional, e quiser saber qual é a verdade sobre o coração dos homens, vai ter que romper o livro.
• Violência
A literatura está sempre fazendo frente com a realidade. Não há muito como fugir dela. Uma questão sobre qual volta e meia me perguntam é a violência, porque há muita violência em alguns dos meus contos, principalmente nos primeiros livros. Bom, vivemos no Brasil, um país violento para caramba. Um país campeão em linchamento. Toda essa violência que testemunhamos contra a mulher, a população negra, indígena… Não poderia ser diferente. Não há como não tratar dessa questão da violência. Mas percebo que, nos meus contos, a violência se dá no corpo: o personagem perde membros, se secciona, se mutila; esse corpo é maltratado, passa por uma série de transformações. É principalmente uma violência corporal. Acho interessante frisar que penso nessas coisas ― no modo como a violência aparece em meus textos, por exemplo ― depois. Se pensasse tudo isso antes de começar a escrever, não sei se conseguiria.
• Catástrofe anunciada
Meu último livro foi publicado em 2019 e se chama, não por acaso, Sombrio ermo turvo. Claro que eu vinha trabalhando nele há muito tempo, desde 2011, mas ele atravessa muitas mudanças no Brasil — desde as grandes manifestações de 2013, que depois são apropriadas pela direita. Lembro dessa época: em um determinado momento, começou a se falar em manifestações sem bandeira, sem partido. Lembro de dizer para amigos que isso era muito perigoso: “Daqui a pouco, surge um cara como o Bolsonaro e toma esse lugar, se apresenta como o sem bandeira, o sem partido”. Me diziam: “Mas ele tem partido”. Hoje, ele é o presidente, e sem partido. Então, é um livro que atravessa esses momentos, que passa pelo golpe parlamentar que levou ao impeachment da Dilma ― a primeira presidente mulher do Brasil —, golpe que abre portas para o que estamos vivendo hoje. Está tudo muito sombrio, ermo, turvo… Neste meu último livro, há textos que falam de um fim do mundo, ou de um recomeço depois do fim do mundo. Me parece que é um livro que, de certa forma, já estava fazendo essa relação com a realidade.
“A literatura está sempre fazendo frente com a realidade.”
• Promessa de destruição
O Bolsonaro nunca mentiu para ninguém. Ele prometeu que viria para acabar com tudo. Poucas foram as promessas de campanha, mas uma foi muito clara: “Não vim para construir, mas para destruir tudo que tem aí”, algo nesse gênero. A morte vinha, de certa forma, a reboque dessa promessa. Uma das últimas falas dele na época da campanha foi sobre largar todos os oposicionistas na ponta da praia. Sempre foi uma promessa de destruição seguida de morte, assassinato. Ele está entregando o que prometeu, e foi eleito pela população. Talvez isso seja o dado mais assustador. Cinquenta e sete milhões de pessoas votaram nesse projeto assassino, nesse projeto de destruição. O que ele está entregando é isso, mas felizmente as pessoas estão notando que não era uma bravata, não era só um discurso. É realmente um projeto, e espero que a gente se livre dele logo. Você me pergunta se essa é a nova face do Brasil. O Brasil sempre foi um país que, apesar de tudo, mantinha — de uma certa forma — sua alegria. O que tenho percebido, desde que essa desgraça assumiu o poder, é que o país se tornou muito mais triste do que ele era.
• Trabalho em andamento
Estou trabalhando em um livro chamado Krakatoa. O ponto de partida foi uma viagem à Indonésia em 2017, quando havia a ameaça de um vulcão entrar em erupção por lá. Não era o Krakatoa. Este foi responsável pela segunda maior erupção do mundo em 1883, matando algo em torno de 30, 40 mil pessoas. Por que decidi fazer esse livro agora? Trata principalmente de vulcões e fantasmas. Não por acaso, vou trabalhar com fantasmas em um momento muito, muito triste em nosso país: a soma só de mortos oficialmente registrados pela Covid-19 está em mais de 580 mil, chegando às 600 mil vidas perdidas.
• Luto sem fim
O Krakatoa não vai tratar diretamente da pandemia, mas passa por essa situação que é inédita para nós: suspender todas as atividades para ficar em casa, manter distância, isolar-se. Fora isso, o mais violento de tudo é, com certeza, o luto. Esse luto que parece não ter fim. Quando falo em mais de 580 mil mortos, isso significa 580 mil famílias em luto. O impacto é sobre uma série de pessoas que conheciam a vítima — os amigos, a família, todo um círculo. É uma devastação. Isso, claro, impacta na vida de todo mundo — das maneiras mais diferentes. Todo mundo saiu perdendo. Mas o pior de tudo é o luto. Não há como recuperar as vidas perdidas.