Mesmo vivendo há 10 anos em Portugal, o Brasil não sai da vida de Tatiana Salem Levy nem de seus livros. “Minha literatura é brasileira e vai ser sempre”, diz a autora, que participou do encontro de encerramento da 11ª temporada do projeto Paiol Literário. “Acho que é uma forma de tentar entender a loucura que é o Brasil.”
Tatiana nasceu em uma casa com muitos livros e desde cedo conviveu com a literatura. Cursou Letras, mas durante muito tempo deixou oculto seu desejo de se tornar escritora de ficção. Foi um conto publicado na revista Ficções, da editora 7Letras, que a ajudou a trilhar um caminho de destaque na literatura brasileira.
Seu romance de estreia, A chave de casa, venceu o Prêmio São Paulo de Literatura em 2008 e foi traduzido para vários idiomas. Na sequência, publicou os romances Dois rios (2011) e Paraíso (2014), além de um livro de crônicas e títulos dedicados ao público infantojuvenil.
Seu livro mais recente, Vista chinesa (2018), teve grande repercussão na imprensa e entre os leitores. O romance narra um episódio real de estupro sofrido pela diretora de TV Joana Jabace, amiga de Tatiana. “Eu costumo brincar que esse livro é uma alter ficção, uma autoficção do outro. Eu me coloco no lugar da Joana e escrevo esse romance como se ela estivesse fazendo um romance de autoficção.”
Além de escritora, Tatiana também é ensaísta e pesquisadora na Universidade Nova de Lisboa. E há nove anos escreve críticas e comentários culturais no caderno EU&, o jornal Valor Econômico.
• Paradoxo
A literatura trabalha a todo tempo com paradoxo. E a importância dela seria, ao mesmo tempo, para se conhecer mais a si próprio e para se desconhecer num certo sentido — ou para nos colocar em contato com o desconhecido. Através das histórias, das narrativas, sobretudo com a questão da linguagem, a literatura nos faz pensar mais sobre nós mesmos. Fico pensando muito na minha própria formação como leitora, como a literatura entrou em minha vida. E acho que ela teve muito esse papel de me colocar mais em contato comigo mesma. Mas ao mesmo tempo, ela tira a gente da gente. Nos colocando para fora, porque entramos em contato com os outros que estão na literatura, outras vidas, outros universos, outras geografias, outros tempos. E também o desconhecido não só em termos de histórias narrativas, mas também em termos de sentimento. Acho que tem esse jogo, esse paradoxo, do desconhecido que nos faz olhar mais para dentro.
• Empatia
Quantas vezes eu já não vivi no lugar de mulheres de outras épocas, classes sociais, culturas… No lugar de homens, de personagens que são muito diferentes de mim, mas ao mesmo tempo tem sempre uma coisa, mais da ordem da emoção e do sentimento, que nos traz a empatia, de conseguir se ver no lugar do outro e fazer com que o outro esteja em seu lugar.
• Encontro com a literatura
Nasci em uma casa com muitos livros, com uma biblioteca muito grande, com pais leitores — minha mãe era jornalista e meu pai, professor. Então, a literatura sempre fez parte da minha vida. Mas tenho muitas recordações do ano de alfabetização. Eu me alfabetizei cedo, com quatro anos já lia e escrevia algumas coisas, então com cinco anos fui para o que hoje é o primeiro ano do ensino fundamental. E lembro muito de aprender a ler com aquela coleção da Ana Maria Machado, Mico Maneco — que inclusive já comprei para meus filhos. Foram livros muito importantes para mim.
• Anos marcantes
Acho que todo o ano em que aprendi a ler e a escrever foi um ano de muitas recordações. Lembro muito mais daquele ano do que dos três anos seguintes, por exemplo. Eu também tinha uma admiração muito grande pela minha professora de alfabetização, era muito fascinada pelo ato de ler. E até por aquela coisa de fazer livros, dobrar as folhas, fazer os desenhos, escrever as histórias… Fui uma criança que leu muito. Mas foi na adolescência que me deu um clique de querer escrever, com 14, 15 anos.
• Clarice
Clarice Lispector, sem dúvida, foi fundamental para mim. Comecei a ler Clarice na pré-adolescência, com um livro que se chamava O primeiro beijo e outras histórias, era uma coleção para captar os leitores mais jovens. Não era um livro que ela, Clarice, tivesse lançando, mas sim a editora fez… E na minha adolescência, sem dúvida nenhuma, Clarice foi fundamental.
• Simone de Beauvoir
É engraçado, porque lia muitos autores homens, como todo mundo, mas eu me identificava muito com as escritoras. Com a Clarice, mais pra frente com a Marina Colasanti, Simone de Beauvoir. Tenho até um diário dessa época, em que falo bastante da autora francesa. Sobretudo as autobiografias dela: Memórias de uma moça bem-comportada e A cerimônia do adeus. O Memórias foi um livro muito importante para minha decisão de escrever, porque me identificava muito com a Simone de Beauvoir. E depois foram entrando outras autoras, a Virginia Woolf, a Katherine Mansfield.
• Lendo mulheres
Claro que o encontro com Machado de Assis foi bastante importante, mas eu não tinha essa identificação, não queria ser Machado de Assis, queria ser a Clarice Lispector, a Virginia Woolf. Era diferente a relação que eu tinha com essas mulheres quando comparada com os homens.
• Escrita secreta
Com 14, 15 anos, já queria ser escritora. Até tinha um certo embate com o meu diário porque, naquela altura — hoje em dia não penso assim — eu achava que diário não era literatura, então queria escrever contos, romances. Lembro de ter participado de um concurso literário, quando era adolescente. Não ganhei. Anos depois soube que quem ganhou o prêmio foi a Claudia Lage, que depois ficou minha amiga. Mas naquela época, para mim, era tudo muito secreto, queria escrever, mas não falava para absolutamente ninguém. Escrevia esses contos, mas não contava para ninguém. Acho que eu tinha medo de não escrever bem. Tinha medo de ser um sonho que não fosse conseguir realizar.
• Ponto de virada
Mesmo sabendo que queria ser escritora, também pensava em outras profissões. Pensei em ser física, adorava matemática, queria estudar física quântica, o universo, etc. Mas acabei desistindo de tudo que pensei em estudar, para fazer Letras. Com 16 anos, quando fiz vestibular, já era muito claro para mim que eu queria escrever e minha paixão era a literatura. Estudei Letras e depois fui seguindo minha vida acadêmica.
• Academia
Tinha uma coisa quando fiz faculdade — agora isso mudou —, é que escritor bom era escritor morto. Você dizer que escrevia era quase absurdo. Eu não dizia e as pessoas na faculdade também não diziam que escreviam. O meio era muito acadêmico mesmo, não havia disciplinas que incentivassem a escrita. Eu gosto muito também de estudar literatura, teoria, escrever ensaios. Então, foram muitos anos que fiquei bastante focada nisso. Na graduação, no mestrado.
• Menos ficção
Foram anos em que escrevi menos ficção. Quando decidi escrever meu primeiro romance, foi mais libertador e mais forte do que o momento em que decidi fazer vestibular. Porque quando fiz vestibular para Letras, eu tinha muito clara essa coisa de que queria escrever. Depois fui perdendo isso dentro da faculdade. Até que teve um momento que não queria mais só ler romances com um lápis sublinhando, queria voltar a ser uma leitora normal.
• Liberdade para ler e escrever
E me deu essa vontade de ser mais livre de novo. Porque a literatura é essa liberdade, e era uma liberdade que a universidade estava me tirando. Acho que a universidade não é mais assim. Ela mudou muito. Muitos escritores são professores e passaram por isso que passei. E os gêneros consolidaram essa liberdade. Hoje há teses em primeira pessoa, que misturam ficção com não ficção. E tem essa coisa mais híbrida da linguagem. E o romance também foi ganhando traços disso. Muitos escritores fazem hoje em dia mestrado e doutorado. Vão pensando a literatura e trazem esse pensamento para os seus romances e contos.
• Primeiras publicações
Eu escrevia, mas era para as gavetas, não dizia nem mostrava para ninguém. E quando estava fazendo doutorado, resolvi publicar meu primeiro conto, que saiu na revista Ficções, da editora 7Letras. E tinha também um pouco esse processo de concurso, porque você mandava o texto e poderia ser selecionado ou não. Foi o primeiro conto que eu mostrei para as pessoas.
• Coletânea
Depois publiquei meu segundo conto na antologia que o Luiz Ruffato organizou das 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira. E foi por causa desse conto da Ficções que ele me chamou, porque eu ainda não tinha nenhum livro. E aí eu já estava escrevendo A chave de casa, romance que foi minha tese de doutorado. Foi meu salto para fora da academia. Porque, ao invés de fazer uma tese convencional, resolvi fazer um romance. Eu tinha 28 anos.
• Prêmio
Quando publiquei esse primeiro conto na Ficções, eu tinha acabado de entrevistar o Luiz Ruffato para uma revista da PUC-Rio. Eu fazia doutorado e adorava o trabalho do Ruffato. Então entrei num ônibus com duas amigas e fomos entrevistá-lo. E logo depois saiu o meu conto. E ele era um leitor da Ficções. Aí ele me mandou e-mail e ficou surpreso que eu escrevia, porque eu não dizia para ninguém. Ele gostou muito do conto e me chamou para a antologia.
• Muita “sorte”
O meu conto foi bastante destacado pela Regina Dalcastangnè, que fez o texto de orelha do livro. Também pelo José Castello, na revista Bravo!. Onde saía matéria, falavam do conto. Então isso já me abriu uma porta para publicar na Record, que era comandada pela Luciana Villas Boas na época. O André Jorge, que era editor da Cotovia, de Portugal, estava de férias no Brasil e comprou esse livro. Leu meu conto e entrou em contato comigo. Eu estava começando a escrever A chave de casa. Quando terminei a escrita, entreguei de cara para a Record e para a Cotovia e eles me deram retorno muito rápido. Então para mim isso já eram várias “sortes”.
• Prêmio SP
Quando saiu o Prêmio São Paulo de Literatura, realmente foi uma sorte maior, porque aí o livro foi traduzido. Antes de ganhar o prêmio, eu já tinha uma agente na Espanha, com uma tradução em curso. Mas claro que a premiação ajudou muito. Tanto nas traduções, quanto na visibilidade e nos leitores. Os leitores são chamados pelos prêmios. Eu também sou. É normal.
• Sem planejar
Eu sou bem caótica. Mas gosto de estar nesse caos. Então nunca tive um processo muito definido sobre escrever. Não consigo pensar nem em uma trilogia, por exemplo. Não tenho esse pensamento tão lá na frente. O que é bom para mim, porque cada livro é uma surpresa. E tem sempre um vácuo entre um livro e outro, nunca termino uma obra e já começo outra imediatamente.
• Tempo da literatura
Para mim, é muito importante essa questão do tempo da literatura ser um tempo diferente do dia a dia. Essa é uma das razões pelas quais eu escrevo: é possível suspender o tempo. E isso é cada vez mais urgente, nesse tempo cada vez mais veloz que vivemos. Conseguir parar tudo para escrever, para mim é um privilégio. Poder sair desse tempo corrido, viver em uma outra qualidade de tempo. Um tempo mais lento, mais suspenso, que tem muitas camadas, que vai para trás, trabalha com memória, ou vai para frente, na imaginação. Isso para mim é fundamental e está sempre presente comigo.
• Transformação pela literatura
Não sei se sou ingênua, mas acredito muito na capacidade da literatura de transformar as pessoas. E como são as pessoas que transformam o mundo… Eu fui muito transformada pela literatura, e vejo que pessoas que leem são transformadas pela literatura. Então acho que ela tem esse papel político. Porque qualquer transformação, é uma transformação política. Mesmo a transformação pessoal é política. Porque vai te fazer uma amiga diferente, uma mãe diferente. Uma pessoa que pensa o mundo de outra forma. A literatura faz a gente sentir e pensar. E de formas diferentes, transformando a gente e transformando o mundo. E aí a gente pega o governo passado, que era formado por pessoas que não leem, e vê a diferença.
• Redes sociais
Tenho limites com as redes sociais. Eu uso o Instagram, sobretudo para divulgar meu trabalho, mas não consigo fazer esse papel de vender meus livros. Não consigo virar esse personagem, de ir para o Tik Tok, ou ser essa autora que vai ter sempre coisas incríveis para falar no Twitter, para conseguir seguidores. Mas não sou totalmente reclusa, como vários autores que nem têm redes sociais — e eu os invejo.
• Melhor sem as redes
As redes sociais têm a vantagem de chegar a mais pessoas, mas eu tendo a achar que prefiro um mundo sem redes sociais. Sei lá, talvez houvesse menos leitores, mas também mais qualidade de tempo. Essa coisa do tempo suspenso, não é só para mim como escritora, mas sobretudo como leitora. Esse é um dos potenciais políticos também da literatura. Para mim, no mundo de hoje, você fazer alguém parar para ler um livro, já é um gesto político.
• Tudo é fake
É tudo falso nas redes sociais. E essa impressão de que há muita gente lendo, também pode ser falsa de fato. Ou de repente hoje, talvez, em vez de vender 5 mil livros, você consegue vender 10 mil. Mas o que é isso em um país com 200 milhões de habitantes?
• Caderno Eu&
Como eu já estou no Valor Econômico há nove anos, é mais fácil acompanhar o que acontece na literatura porque os autores chegam até mim. Recebo muito material de divulgação, muitos livros. Como são colunas que têm algo da crônica, e tem sempre uma questão com o mundo hoje, então às vezes eu escolho livros por aquilo que eles estão falando. Se tem alguma questão em voga no momento, vou pensar em um livro que tenha a ver com esse assunto. E tento variar, não escrevo só sobre ficção, mas também sobre ensaios, filosofia e outros gêneros que me interessam. Hoje em dia não sei se existe na imprensa um espaço tão grande e que dê total liberdade para a pessoa escrever sobre o livro que ela estiver a fim. Porque não preciso escrever sobre lançamentos e posso escrever sobre obras que ainda não saíram no Brasil. Posso também comparar livros, porque às vezes a coluna é sobre mais de um título.
• Vista chinesa
Todos os meus livros foram sofridos para eu escrever. O Vista chinesa, claro que foi sofrido pelo tema em si, mas ao mesmo tempo havia uma alegria por eu estar conseguido dizer o que queria. Uma alegria como uma força. Era muito misturado. Eu tinha sofrido mais quando aconteceu a história do livro, em 2014. Quando aquilo era real e muito próximo. Então, em 2018, quando escrevo sobre o estupro da minha amiga Joana, foi uma coisa de voltar a um sofrimento. Esse retorno já é diferente.
• Alter ficção
Fui experimentando muitas formas de contar essa história. Comecei na verdade escrevendo em terceira pessoa, até chegar a esse lugar de ser como se a Joana estivesse escrevendo. Costumo brincar que esse livro é uma alter ficção, uma autoficção do outro. Eu me coloco no lugar da Joana e escrevo esse romance como se ela estivesse fazendo um romance de autoficção. Não é um romance de autoficção porque eu não sou a Joana, tem uma terceira pessoa envolvida, que sou eu.
• Sofrimento
Quis fazer um livro muito imagético e muitas vezes ficava vendo a cena do estupro, tipo antes de dormir. Aí ficava bastante angustiada. Mais quando não estava escrevendo do que quando estava escrevendo. Porque na hora da escrita, tentava encontrar as palavras certas para dizer aquilo que normalmente a gente não fala. Falar sobre uma violência que é silenciada. Eu sofria muito mais nos momentos em que desligava o computador. Aí a imagem voltava com muita frequência à minha cabeça. Porque a Joana foi me contando tudo com muitos detalhes nas entrevistas. Então esses detalhes ficaram muito marcados. E ainda escrevi esse livro grávida. Então estava tudo misturado. Tinha a alegria da gravidez e a escrita dolorosa desse livro.
• Gravidez e escrita
Acho que Vista chinesa nem existiria se eu não estivesse grávida. Não seria esse livro e não seria escrito naquele momento. Porque eu tinha essa ideia desde o estupro, no final de 2014. Mas estava fazendo um outro livro, que é um livro eterno, que escrevo há 13 anos. Tenho mil versões dele e nunca termino. Então estava em uma das versões quando engravidei. Aí pensei que não conseguiria terminar o livro. Resolvi voltar ao livro do estupro, porque seria um livro mais curto. E quando descobri que estava grávida de uma menina, aquilo realmente ficou mais forte para mim. Acabou se tornando quase uma necessidade.
• Filha
Costumo dizer que escrevi esse livro junto com minha filha, porque se não estivesse grávida, não teria escrito. E ela acompanhou o processo, porque escrever para mim é sempre muito físico, a escrita tem muito a ver com o corpo. A gravidez está no livro. Eu não estava sozinha, estava com minha filha. E senti uma força e uma necessidade de escrever esse livro, que não teria se não estivesse grávida.
• Marcas da violência
E aí, em um determinado momento da escrita, comecei a pensar na gravidez da Joana. Ela já tinha tido filho quando escrevi o livro. Na história são um menino e uma menina, mas na vida real são dois meninos. E comecei a pensar o que teria sido para ela ficar grávida naquele corpo que havia sido tão violentado. Brutalmente violentado. E eu escrevendo sobre essa violência, grávida. Estava me colocando no lugar daquela mulher. E comecei a pensar: será que aqueles meninos sabem, de uma certa forma sem saber? Será que eles têm uma herança desse estupro, porque eles foram gerados depois do estupro, naquele corpo que tinha sido violentado. Então alguma marca eles devem carregar. E comecei a pensar isso em relação à minha filha.
• Herança
Isso é uma questão muito presente em minha literatura, a questão da herança, do legado, das coisas que passam de geração em geração. Comecei a me colocar no lugar dessa mulher que tem filhos e de alguma forma precisa falar para esses filhos que ela foi estuprada.
• Carta
E daí surgiu a ideia da carta. Mostrei o livro para algumas pessoas, e lembro que uma delas falou que achava que uma mãe nunca escreveria uma carta dessas para os filhos. Aí pensei, na literatura vale muita coisa que não vale na vida real. E, depois, é uma carta que ela não está entregando para os filhos, só está escrevendo. Depois comecei a pensar nessa carta como um gesto de amor mesmo. No sentido de que aqueles filhos de alguma forma já sabiam, mas não tinham aquelas palavras. E é muito pior quando você sabe em silêncio do que quando você sabe de fato. Porque se você sabe só em silêncio, aquilo vira um fantasma.
• Força da literatura
A literatura tem um poder muito grande ao nomear as coisas. Ao dizer as coisas, a gente consegue afastar esses fantasmas, que são importantes, porque escrevemos com eles. Mas daí vem uma alegria muito grande quando você consegue escrever. Não é diversão, mas alegria no sentido de uma força.
• Distância
Quando a Joana foi estuprada, uma coisa me angustiou profundamente: quando eu olhava para ela, eu conseguia ver que estava em um lugar de dor, que ela não conseguia se comunicar. Porque as pessoas que estavam ao seu redor, os familiares e amigos, não conseguiam de fato entender o que ela tinha sofrido. E ela sabia disso. Era algo que criava uma distância enorme entre ela e o resto do mundo. A gente só sabe mesmo o que é um estupro, se for estuprada. Caso contrário, você pode imaginar, mas não sabe exatamente.
• Aproximação pela literatura
Mas essa distância entre o acontecimento e a transmissão desse acontecimento foi muito chocante para mim naquele momento. Daí o meu desejo de escrever literatura, porque é um desejo de encurtar essa distância, de fazer com que os leitores cheguem a esse lugar, que não chegamos se não formos vítimas. Apesar de que há sempre uma distância entre as palavras e os acontecimentos. Mas a literatura encurta essa distância. Nos aproxima mais do real. Exatamente porque não é uma linguagem do dia a dia, mas uma linguagem trabalhada, suspensa, que está em outro espaço e tempo. Por isso escolhi bem as palavras, porque era algo indizível. Um relato que não fosse literatura, não ia chegar lá, encurtar essa distância. Ela, Joana, simplesmente contar o que aconteceu, acho que não chegaria lá. Eu acredito na literatura por conta dessa aproximação das coisas que importam.
• Recepção
Tinha uma expectativa por conta do tema, por ser baseado em um fato real — e as pessoas gostam disso, de histórias verídicas. Para mim, como escritora, acho que é o meu livro mais bem escrito. Então teve uma coisa de me sentir realizada como escritora. E tinha uma expectativa de que isso fosse reconhecido. Acho que, dentro do que é a literatura brasileira, do que vende, foi um livro que correspondeu às minhas expectativas. Foi finalista de todos os prêmios, tem sido bastante traduzido.
• Outros países Vista chinesa
teve um impacto maior em outros países do que A chave de casa, que é o meu livro mais traduzido. É um livro que corre super bem na Espanha, que é um país muito machista e violento. Na Alemanha ele também foi muito bem. É um livro que também tem leitores ao redor do mundo.
• Personagem
A Joana só disse que queria colocar o nome dela quando o livro já estava pronto. Então eu não pensava em divulgar o livro com o nome dela. Pelo contrário, nunca achei que ela fosse querer se colocar na história. Só quando ela leu o livro, porque acho que se identificou muito, disse que queria aparecer. E era uma questão política, porque para ela era muito diferente apenas dizer que era uma história baseada num estupro real, do que dar uma cara, um corpo para aquilo.
• Violência contra mulher
Das violências contra a mulher, o estupro é das menos faladas. As vítimas, por “n” razões, têm muito mais dificuldade de falar sobre estupro do que assédio, por exemplo. Mas também por isso, tem muita gente que não lê. Porque tem medo de ler o livro. A maioria dos amigos da Joana leu o romance, mas outros não conseguiram. O irmão dela nunca leu. Há uma dificuldade. Mas foi muito importante para a Joana ter se colocado na história. Já a mãe dela tem uma relação muito diferente, dá o livro para outras pessoas. Ela tem uma relação muito afetiva com o livro porque acha que isso fez bem para a filha. E que foi um ato de coragem. Não escrevi o livro pensando em mudar essa situação, mas é um gesto político. Quanto mais narrativas, filmes e séries falando de estupro, mais chance temos de erradicar isso da sociedade.
• Banalidade da violência
A violência é um dos legados do bolsonarismo. O Brasil sempre foi muito violento, e essa cultura de você ter uma arma, uma coisa muito americana, isso se propagou muito no Brasil nos últimos quatro anos. Eu acabei de chegar do Rio. Enquanto estava no Brasil, teve o assassinato de um cinegrafista depois de um Fla-Flu, por causa de uma pizza. E foi um policial quem matou, saiu para buscar a arma e voltou. Uma banalidade. E também esse caso de Blumenau, em que um homem matou crianças a machadadas. Isso é um dos piores legados bolsonaristas, a banalização de tudo, da violência, da burrice, da falta de cultura, do orgulho de dizer que não lê.
• Não é só isso
Mas o Brasil não é só isso. Tanto é que o Bolsonaro não foi reeleito. É a primeira vez que um presidente se candidata à reeleição e não ganha. Mas acho que essa face do Brasil não estava tão oculta assim. A gente sempre conviveu com isso, mas ela aflorou mais nos últimos anos. Encontrou um espaço em que se sentiu muito à vontade.
• Olhar de fora
Sou uma pessoa muito da experiência. Estar longe do Brasil, saber do Brasil pelos jornais, pelas redes sociais, é muito diferente de estar no país. E fiquei, por conta da pandemia e do nascimento da minha filha, três anos sem ir ao Brasil. Eu senti bastante, porque distancia. E na verdade escrever Vista chinesa foi até uma forma de me aproximar do país. Escrevi o livro estando todo o tempo em Portugal. Minha literatura é brasileira e vai ser sempre, porque preciso falar do Brasil. Acho que é uma forma de tentar entender a loucura que é o Brasil.
• Futuro
Estou bastante desiludida com tudo que aconteceu, com o que temos sido nos últimos anos. Apesar de também estar muito entusiasmada com a saída do antigo governo. Acho que sempre pode ficar melhor do que está. Acredito muito no lado da cultura do país. Em termos artístico, acho o Brasil muito interessante. Seja na literatura, na música, no cinema, nas artes plásticas. O Brasil tem sempre muito a oferecer. É um lugar muito forte e potente. E agora em termos do pensamento também, dos novos feminismos, do feminismo negro, das questões dos gêneros, a questão da terra, do pensamento indígena, que está ganhando o mundo. Acho que tem uma força muito grande, que não vejo aqui em Portugal, por exemplo.