Edição: Rogério Pereira
No dia 16 de novembro, o Paiol Literário — projeto promovido pelo Rascunho em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba e o Sesi Paraná — recebeu o escritor SILVIANO SANTIAGO. Nascido em Formiga (MG), em 1936, o autor já recebeu, além do prêmio Jabuti, os da Academia Brasileira de Letras e do Governo de Minas Gerais. É contista, romancista e ensaísta. Publicou, entre outros livros, Anônimos, Em liberdade, Stella Manhattan, O falso mentiroso, Uma literatura nos trópicos e Nas malhas da letra. Na conversa com o escritor e jornalista Luís Henrique Pellanda no Teatro Paiol, em Curitiba, Santiago falou sobre a importância da literatura para se ampliar a visão e o conhecimento do mundo, de sua passagem do cinema à literatura, do início como leitor, dos primeiros livros escritos e das dificuldades de profissionalização como escritor, abordou temas polêmicos como a recente tentativa de censura à obra de Monteiro Lobato e a discussão em torno do prêmio Jabuti. Leia abaixo os melhores momentos do bate-papo.
• Conhecer o mundo
A literatura é um discurso mentiroso, inventado, fabulado, mas isso não quer dizer que seja falso. É inegável que a literatura tem uma função, assim como todas as artes têm. O primeiro cuidado a ser tomado, se a gente fala de função de literatura, é não fazer uma divisão entre produtor e consumidor. Ou seja, não fazer distinção entre escritor e leitor. Acho que a literatura tem a mesma função para ambos. Não existe um escritor que não seja leitor. Todo leitor é, por sua vez, um produtor de texto. Nós, escritores, escrevemos em uma folha de papel ou na máquina ou no computador, enquanto o leitor escreve naquilo a que os jesuítas chamavam de “folha de papel em branco da mente”. O leitor se exercita também de significados. Eu endosso a visão de Ezra Pound de que literatura é linguagem carregada de significados. Se a linguagem é carregada de significados, tanto o escritor, ao escrever seu livro, carrega de significados a linguagem, quanto o leitor, ao ler o livro, carrega de significados a sua própria linguagem. O processo de leitura, que é o segundo ponto, é um exercício de alteridade. É você entrar em um determinado mundo que não é o seu, no qual se entra muitas vezes por um processo de surpresa. Você não esperava aquilo de maneira alguma e, de repente, entra e se encanta com aquele mundo. Quanto mais se entra naquele mundo, mais se apropria dele, mais torna aquele mundo você mesmo. Gosto muito do poema Infância, de Carlos Drummond. Está no primeiro livro de Drummond, Alguma poesia. É extremamente simples: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo./ Minha mãe ficava sentada cosendo./ Meu irmão pequeno dormia./ Eu sozinho menino entre mangueiras/ lia a história de Robinson Crusoé./ Comprida história que não acaba mais”. (Silviano recita apenas a primeira estrofe do poema). Então, o menino cria um determinado espaço de leitura em que você fica sem saber se é Daniel Defoe quem escreveu Robinson Crusoé, ou se não é Drummond que está reescrevendo Robinson Crusoé e o poema para dizer “comprida história que não acaba mais”. Esta comprida história é a experiência da leitura já desde a infância. O exercício de alteridade. Ele encontra na solidão um personagem para a solidão que é Robinson Crusoé na sua ilha deserta. É interessante a preposição “Eu menino entre mangueiras”. É como se ele tivesse feito uma ilha de leitura entre mangueiras, assim como Robinson Crusoé destituiu o seu mundo entre águas, numa ilha. Isso sempre me deixou muito fascinado: este exercício de alteridade, de entrar em um mundo que não é seu e que passa a ser seu e com o qual você dialoga. Mais isso é uma experiência ainda muito primária. A experiência de leitura se torna muito mais produtiva do ponto de vista do leitor quando ele já tem uma estocagem de cenas, de situações e de livros. Então, a leitura entra num diálogo a que chamamos intertextual. Cada um de nós, leitores, tem um cantinho na “Biblioteca de Babel” de Borges. A literatura, neste momento, leva o leitor — não só a se constituir enquanto cidadão, enquanto dono das próprias idéias — a ter uma visão de mundo que lhe é própria na medida em que ele se apropria de todos os livros, de todas as situações, cenas dramáticas, poemas, etc. Essa situação, de um pequeno cantinho em uma biblioteca, é tão interessante quanto o conhecimento que se tem por meio de disciplinas. Aquele que estuda história pode ter uma visão de mundo através da disciplina de história. Isso acontece com a sociologia, a medicina e assim por diante. A literatura é extraordinária porque é pluridisciplinar. Desde que seja um leitor motivado, que consiga dar sentido aos livros lidos, você passa a ter uma visão e um conhecimento de mundo extremamente ricos.
• Possibilidade de transformação
A leitura é mediação. Dom Quixote tem uma visão mediada da realidade através das novelas de cavalaria que ele leu. Esse processo de mediação, que é o processo das disciplinas — história, sociologia, economia, etc. —, é também o da literatura. Só que nós acreditamos, talvez egoisticamente, talvez narcisisticamente, que a mediação da literatura seja mais rica. Alguns contos de Guimarães Rosa, que se passam no interior de Minas Gerais, em povoados onde é muito grande a leitura da Bíblia ou a recorrência de fatos bíblicos, a maioria dos personagens, ou dos narradores, tem uma visão de realidade mediatizada pela Bíblia. Talvez seja uma leitura um pouco pobre. O caso de Drummond é fascinante porque o primeiro Drummond político é totalmente robsoniano. Ele quer reconstruir o mundo dinamitando a ilha de Manhattan. Transformando o mundo de tal maneira que seria, por assim dizer, o Robinson Crusoé dando forma ao mundo que deveria ser destruído. Então, a função da literatura naquele momento para Drummond, em particular no livro A rosa do povo (publicado em 1945), era dar sentido ao Brasil, ao cidadão brasileiro, ao cidadão universal, num momento terrível pelo qual passava o mundo, a Segunda Guerra Mundial, e pelo qual passava o Brasil com a ditadura Vargas. Nesses momentos, a função da literatura se explicita de maneira magnífica. O leitor sensível, inteligente, sempre conseguirá ver as relações estreitas entre aquilo que está lendo e a possibilidade de transformação, seja da realidade imediata, a realidade do mundo, seja ainda e, sobretudo, de si próprio.
• Vários holofotes
Acho que a gente escreve para afirmar alguma coisa. Só que você não afirma através de palavras ou frases diretas. Essa afirmação — que no fundo é a sua maneira de sentir o mundo, de presentificar o mundo, de enxergar o outro, a família, a cidade, a nação, etc. — tende a ser trabalhada de maneira dramática. Então, essa afirmação tem que ser lançada pela idéia de drama. Você afirma, mas ao mesmo tempo sabe que se a afirmação for categórica, será por demais autoritária. Ela não levará a nada porque aquilo que você descreve tem tal complexidade que só pode ser apreendida através do drama, através de figuras que se contradizem, que dialogam. Figuras que não se entendem, que podem até assassinar umas às outras. Gosto de trabalhar com alguns exemplos. No romance A peste, de Albert Camus, a peste chega à cidade de Oran. Neste momento, Camus tem uma afirmativa: “Preciso combater a peste de todas as maneiras”. O problema é como determinados personagens vão constituindo uma visão muito pessoal da peste, ao mesmo tempo em que entram em contradição com outras visões também pessoais, e assim sucessivamente. Aquele objeto que inicialmente era relativamente simples passa a ser enxergado por vários holofotes. Há, por exemplo, a visão do médico, doutor Rieux, que busca a saúde. Há o padre jesuíta cuja preocupação é a salvação. Ele chega a acreditar que Deus mandou de propósito a peste para punir a cidade. Para Tarrou, uma espécie de anarquista, seria a maneira de ele fazer o bem, pois tinha uma vida sempre dedicada ao mal. O escritor chega ao seu apogeu quando é capaz de entregar isso ao leitor. Uma situação complexa vista por vários holofotes. E o leitor, então, de posse desses holofotes, saberá como melhor compreender essa situação.
• Gibi e cinema
Tenho que falar de um caso bem sentimental. Uma experiência traumática. Perdi minha mãe com um ano e meio. Tive um tipo de infância muito especial. Não só em uma família grande — nós éramos sete do primeiro casamento — como também, de certa maneira, eu tinha muita liberdade. Não existia esse controle materno/paterno. Eu pude constituir a minha vida — e isso me deixa muito feliz — através de dois gêneros que chegavam a uma cidade do interior com 30 mil habitantes (Formiga, em Minas Gerais): o gibi e o cinema. O curioso é que devido ao fato de eu ser uma pessoa inconformada, um tanto rebelde pelas razões que se pode imaginar, o gibi e o cinema carregavam para mim uma visão cosmopolita de mundo. Nós estávamos durante a Segunda Guerra Mundial. Nos gibis, eu me encantava com personagens como o Tocha Humana, Capitão Marvel, Namor, o Príncipe Submarino, etc., que combatiam as forças do Eixo. Então, nessa pequena cidade do interior, lendo esses gibis, comecei a desenvolver uma imaginação que não correspondia àquela situação concreta, mas que também correspondia, é claro. Comecei, e aí vem o meu desejo de ser escritor, a ter uma vida muito grande em imaginação. Eu me encantava com o Tocha Humana — um ser humano todo coberto de fogo, capaz de fazer aquelas coisas extraordinárias. Depois, eu ia ao cinema, e os filmes reforçavam as imagens encontradas nos gibis. Ao mesmo tempo, os dois juntos (gibi e cinema) vão me encaminhar para uma visão de mundo que me era dada pela imagem. Acho que é uma imagem pouco provinciana que vem direcionar a minha vida.
• Conhecimento de mundo
Fui com a família para Belo Horizonte, e de lá, sozinho, para o Rio de Janeiro. Ganhei uma bolsa de estudos do governo francês para estudar na França. Da França, fui trabalhar nos Estados Unidos. Lá, trabalhei 12 anos como professor. Aí, voltei ao Brasil, retornei várias vezes aos Estados Unidos, à França e ao Canadá como professor visitante. Acho que isso tudo, que esse tipo de carreira, já está ali naquelas imagens de gibi de seriados e dos filmes. Um conhecimento de mundo — e aqui voltamos novamente à função da literatura —, da realidade mundial, impensável para um menino de sete anos numa cidade como Formiga no interior de Minas Gerais. Quando fui para Belo Horizonte, já não era mais aquele cineminha rastaqüera de Formiga. Eu entro para o Clube de Cinema, para o Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais. E começo a ver filme com outra perspectiva. Aí, tenho um mentor que será uma pessoa extremamente importante na minha vida: Jacques do Prado Brandão.
• Pound, Pessoa e Gide
A gente lia pouco. Não havia livros. Não havia bibliotecas. Meu pai tinha aqueles livros indispensáveis. Os vinte volumes do Tesouros da Juventude, a gente lia e se deliciava com aquilo tudo. E depois tinha que ter um dicionário, o Cândido de Figueiredo. E depois havia uns livros que surgiam por meio das minhas irmãs mais velhas, mas não tinham importância para mim. Eu não era um homem da escrita. A escrita não teve importância para mim. Eu fui procurar a escrita com esse mentor, o Jacques, no momento em que só a imagem já não me era suficiente. Eu queria pensar de uma maneira que não fosse através do cinema e das imagens. O Jacques me emprestou três livros que foram importantíssimos para mim. (Nesta época, Silviano tinha 15 anos). O The ABC of reading, de Ezra Pound; Páginas de doutrina estética, de Fernando Pessoa, e Os moedeiros falsos, de André Gide. Confesso que não entendi estes três livros. Mas acho que foram muito importantes porque o Jacques estabeleceu para mim o patamar do que era literatura: “Isso é literatura. Se você não compreende o que é isso, você não compreende o que é literatura. Você terá que subir até esse patamar para entender o que é literatura”. A partir daí, não parei de ler. Fui lendo outros livros, mais fáceis e que eu compreendia. Dei adeus à inclinação à Arquitetura e fui fazer Letras. No momento em que vou fazer Letras, descubro uma coisa: existem livros ruins que se é obrigado a ler porque é do curso. Lembro que tive que ler todo o teatro espanhol romântico — uma porcaria. Mas tive um professor de espanhol que começou o curso lendo um poema de Lorca e que até hoje eu sei. A experiência da faculdade é curiosa porque te leva a ler livros ruins porque você tem de fazer trabalhos. E ao mesmo tempo livros extraordinários que você nunca pensaria em ler. É bem complicado o universo das letras quando se é estudante.
• Imitações de Clarice
Fui crítico de cinema, como era de se esperar, mas pouco a pouco fui largando a crítica. Achava que não era competente. Fui me encaminhando para a literatura e comecei a escrever poemas. A primeira coisa que fiz foi um poema ao voltar a Formiga, aos 15 anos. Pode-se imaginar: era um poema de quinta categoria. Chama Volta. É óbvio. Mas é dessa maneira que surgem as coisas. Aquela experiência foi bastante traumática — e mais traumática porque em Formiga estava o túmulo da minha mãe. Então, são coisas complicadas assim que te levam a escrever, e escrever coisas ruins no início. Eu sei disso. Eram ruins no início. Eu me aproximei de um grupo e a aproximação foi extraordinária. Tenho que me referir a uma figura que se tornou nacional: Ezequiel Neves, o Zeca Jagger (produtor musical, morto em julho passado), meu amigo desde 1951 e famoso por ser o mentor do Cazuza. O Zeca foi o primeiro a me passar os livros de Clarice Lispector. Fiquei encantado com Clarice. Meus primeiros poemas eram imitações de Clarice.
• Revista Complemento
Cinco pessoas começaram a revista Complemento (editada em Belo Horizonte, em 1955). São pessoas que não são conhecidas. O Teotônio (Teotônio dos Santos Jr.), que era a pessoa mais pragmática, foi até o Banco de Minas Gerais e pediu ao diretor um valor em troca de um anúncio na revista. A partir daí, cada um entregou a sua matéria. Fizemos quatro números e, de certa maneira, teve uma determinada repercussão. Fui ao Rio de Janeiro em 1956 e me pediram para levar a revista a Drummond. Aí, aquela coisa clássica: levei exemplares da revista e ele levou um susto. Me perguntou: “Você está fazendo literatura? Eu conheço você de cinema”. Mas era tudo muito precário, muito amadorístico em comparação ao que é hoje o início de uma revista literária. A Complemento teve quatro números. Acabou porque tem que acabar graças a Deus. A revista era muito fraca, mas tinha uma função. A revista nos definiu como boêmios. Nós éramos bem boêmios. Bebíamos enlouquecidamente, fazíamos as maiores loucuras — o que era uma novidade para 1955, o momento que politicamente nos definiu. O grupo nos chamou a atenção para o fato, a cada um individualmente, de que o importante politicamente é a mudança de comportamento. De certa forma, aquele grupo, naquele momento, deixa um pouco de lado as questões ideológicas e passa a dar enorme importância às questões comportamentais. A presença da mulher no grupo. As mulheres iam conosco para os botequins. Isso escandalizava as famílias. Depois, as opções sexuais começam a ser definidas com muita segurança, como o problema do homossexualismo masculino ou feminino. Ou as pessoas que decidem namorar, transar e casar sem passar pelas famosas fases do namoro, noivado e casamento. Acho que a nossa grande contribuição para os anos 5o foi a questão comportamental. Nós escutávamos rock, víamos o que havia de melhor nos filmes, a nouvelle vague. De certa maneira, a nossa visão, para voltar à questão da mediação, da Belo Horizonte provinciana — que naquela época tinha 300 mil habitantes —, enriquece e faz com que a gente transforme a cidade. Essas questões hoje não têm a menor importância.
• Primeiros livros
O meu primeiro livro (Quatro poetas, que também reunia Domingos Muchon, Affonso Romano de Sant’Anna e Teresinha Alves Pereira) foi lançado em 1960, ainda na universidade, pelo Diretório Central dos Estudantes. Não havia um motivo muito forte para nos reunirmos. Depois, o livro seguinte (Duas faces, coletânea de contos em parceria com Ivan Ângelo, editada em 1961) também não havia muito motivo para se reunir. A coisa murchou um pouco devido a 64 e em virtude da profissionalização, algo muito difícil naquela época. Eu resolvi me profissionalizar como professor. Fui ao Rio de Janeiro com bolsa de estudo para me especializar em francês, para eventualmente ir à França. Larguei a literatura de criação com vistas a aprender francês, o que não era fácil. Muitos anos mais tarde, fui professor de literatura francesa nos Estados Unidos. Outras pessoas do grupo tornaram-se jornalistas, que é também uma carreira muito árdua. Todos nós, de certa maneira, abandonamos as veleidades literárias. As pessoas que fincaram pé foram aquelas que não trabalhavam com a palavra escrita. Havia a possibilidade de se profissionalizar em teatro, em artes plásticas e em dança. Em teatro, a figura dominante era o Carlos Kroeber. O Klauss Vianna foi convidado a ir para Bahia onde se estava construindo uma escola de balé. Da Bahia passa para o Rio de Janeiro e torna-se o primeiro professor de expressão corporal. Nas artes plásticas, o Frederico Moraes, que hoje é um crítico bastante conhecido, torna-se crítico de arte. A gente tinha que pensar sobre isso. Como era difícil se firmar pela palavra escrita.
• Profissionalização
Quando se olha para o artigo de Walnice Nogueira Galvão sobre por que só dois escritores tiveram coragem de ser tão críticos à ditadura militar, conclui-se: eram os únicos que tinham público literário: Erico Verissimo e Jorge Amado. Eram os únicos com opiniões válidas nacionalmente e até internacionalmente. O processo de profissionalização se dava até mesmo no funcionalismo público. No serviço público pode-se enganar aqui e ali. E você se tornava escritor. O salário vinha do estado, por incrível que pareça, mas a produção, caso de Drummond, era contra o estado. Sérgio Miceli tem um livro muito interessante: Intelectuais e classe dirigente no Brasil. O intelectual brasileiro tem que ser esquizofrênico. Drummond teve de ser esquizofrênico. De um lado, pactuava com o pior do estado, com o pior da burguesia nacional, e por outro lado tinha uma obra que era a crítica disso. Acho essa esquizofrenia um dos temas fascinantes para a literatura. Pois é o salário do Drummond como funcionário público que de certa maneira permite a poesia dele. O Rubem Fonseca chefe de polícia é que permite os contos do escritor. É Pedro Nava como médico da alta burguesia carioca que permite a belíssima obra memorialista. Todos eles tinham uma profissão de onde vinha a renda. A literatura, de certa maneira, era um tanto diletante. Hoje em dia, temos que ter muita admiração por jovens que querem se tornar profissionais desde cedo. Eu tenho.
• Academia, crítica e ficção
Para mim, é muito difícil se profissionalizar como escritor. Sou hoje um professor aposentado pela Universidade Federal Fluminense. Quer dizer, isso me dá o mínimo. Acho que mereço, é justo porque por mais de 40 anos eu dei algo a eles. Por outro lado, essa coisa acadêmica me dá certo nome na imprensa. O convite para o Sabático (caderno sobre literatura do jornal O Estado de S. Paulo) não é gratuito. Não é o professor, mas o crítico-professor que está sendo convidado; e o Sabático paga bem. Isso é muito positivo para mim. Também há o direito autoral dos livros. Nunca consegui muito me apresentar como escritor. Eu tinha vergonha de me dizer escritor. É chato dizer isso aqui, mas sempre tive vergonha de ser escritor. Talvez por viver em um meio acadêmico onde as pessoas usam isso para dizer que você não é bom professor. “Ah, ele é escritor; não é professor, não”. O pior é que no mundo do escritor vão dizer: “Ah, ele não é escritor, é professor”. Isso me coibiu um pouco, me travou bastante. Tive uma conversa interessante com Tom Stoppard (dramaturgo inglês, de origem checa) que esteve no Brasil para a Flip, há dois anos. Ele me fez essa pergunta sem nenhuma maldade e eu não gostaria que vocês dessem maldade a ela: “Como é isso de escrever numa língua que ninguém lê, o português?”. Porque quando ele escreve em inglês, está pensando na tradução na Dinamarca, no Brasil, nos Estados Unidos, na Itália e assim por diante. É uma visão de linguagem muito diferente da nossa. Disse que achava isso divertido. Porque escrevo o que gosto de escrever. Mas isso é diletante no mundo atual. Um jovem escritor hoje deve estar pensando que seu livro está sendo escrito em português, mas que será traduzido em outros idiomas. Por ter vivido muito no estrangeiro, senti isso de maneira muito concreta. Conversando com escritores, percebo que temos uma concepção de texto ainda muito centrada no nacional.
• Amores Expressos
O projeto Amores Expressos (diversos autores estiveram em várias cidades do mundo durante um mês para escrever uma história de amor; alguns títulos já foram lançados pela Companhia das Letras) não é gratuito, embora eu não goste da coleção. Gosto da iniciativa de empurrar o jovem escritor para uma idéia que vá além do nacional. E como é que se empurra? Obrigando-o a ir morar um mês num país e voltando e escrevendo um livro. Que conhecimento se tem de outro país, de outra vida em trinta dias? Aí já começo a criticar o projeto. Mas empurrar acho ótimo. Não quero dizer que não se deva fazer livros da questão nacional. Não é isso. É que devemos abrir as fronteiras do texto. Para abrir as fronteiras do texto não se precisa ir a outro país. A quantidade de texto da literatura argentina, francesa ou norte-americana é uma maravilha. Permite ao autor brasileiro abrir um texto dele e ter um congraçamento que vá além das fronteiras nacionais.
• Ausência de crítica
A crítica literária brasileira é hoje muito fraca. Acho que não existe crítica literária no Brasil. Não existe crítica atuante que se interessa pelo contemporâneo. Não existe no Brasil uma formação inteligente do leitor. Se não existe uma formação inteligente do leitor, não pode haver uma crítica literária atuante. Para quem o crítico vai escrever? Qual é o interesse do jornal em pagar a um indivíduo para fazer resenhas inteligentes, se não há leitores? De um lado, temos o Ministério da Educação, que é uma força poderosíssima, devido aos livros adotados nas escolas. Recentemente, tivemos o escândalo Monteiro Lobato que é o que acontece quando o Estado se torna crítico literário. É complicado. (Leia texto de Alberto Mussa sobre o assunto na página 18). De um lado é a adoção, do outro são empresas particulares que acreditam que devem parte de seus lucros à causa cultural. E que também estão formando leitores, mas a partir de determinados processos que não abrem campo para o crítico. O crítico que estiver enturmado com uma geração que trabalha com dinheiro de empresas privadas também se sentirá coibido, porque sabe que tem um limite. Ele não pode ir até certo ponto. Acho essa situação muito complicada, mas não sei como resolver. Os escritores estão fazendo o que os autores da geração de 70 fizeram — Ignácio de Loyola, Márcio Souza, Ivan Ângelo, entre tantos outros —: saíram, como os jovens hoje saem, pelo Brasil vendendo o próprio livro e a própria geração. Eles é que estavam fazendo a atividade de crítica literária. Como naquele momento ninguém se interessava mais por literatura, esse autores saíam pelo Brasil inteiro vendendo seu próprio livro e falando sobre literatura. E todos se tornaram grandes figuras nacionais. Eles próprios, é uma loucura de paradoxo, eram críticos da própria literatura. Era o autor abonando a própria obra.
• Mercado para iniciantes
A que outros veículos a Luciana Villas-Boas se refere? (Silviano comenta o depoimento da diretora editorial do grupo Record à Revista da Cultura; leia a declaração na nota “O romance venceu”, na coluna Vidraça, na página 3) Então, ela distingue livros e outros veículos? Poesia não é livro? Você não faz livros com poemas, não faz livros com contos? Isso é ruim, vai ser estigma de tal forma que não teremos mais poetas no Brasil. Eu realmente não entendo o que ela está tentando dizer. Agora, se ela está tentando dizer “venham a mim os romancistas porque eu os publicarei na Record”, perfeito. Qualquer cerceamento de gênero é um absurdo. Eu não estava dizendo aqui para que não escrevam críticas literárias. Disse que não existe crítica literária. Eu entendo que a Luciana queira que surja uma geração forte de romancistas, e quem não pertencer a esse grupo estigmatizado será mal visto pelos livreiros. Defender o romance como um produto bom para o mercado é um cacoete francês. Nos Estados Unidos, os livros de contos vendem maravilhosamente bem. Na França, os livros de contos nunca venderam. Os romances vendem. É um cacoete francês. Na Alemanha, os livros de contos vendem muito bem. Nos Estados Unidos, uma figura como Truman Capote vende muito bem e se firmou antes de mais nada como contista. Era um grande contista que publicava na revista New Yorker e depois reunia seus contos em livros maravilhosos. Melhor contista do que Hemingway… Raymond Carver não tem nenhum romance. Só escreveu contos e, no entanto, é uma figura transcendental na literatura norte-americana. Para o Anônimos, o Carver foi importantíssimo. É uma das minhas leituras preferidas.
• Circularidade
A palavra escrita teve para mim um peso extraordinário na reflexão. Chegou um determinado momento em que a linguagem da imagem se esgotava. Ela não me deixava ir para frente. Pode ser também porque eu fracassei como crítico de cinema. Se não tivesse fracassado, talvez continuasse com aquela idéia. Quem sabe se isso não é uma opção nossa, a de dar à palavra escrita um peso que não encontramos nos outros meios de comunicação. Na leitura que tenho do videogame, não encontraria o mesmo peso que encontro na leitura da palavra escrita. Cada vez mais e mais, vejo que essas outras mídias estão servindo de mediação. Num filme do Almodóvar, por exemplo, é óbvio que o teatro é um elemento de mediação por vezes mais forte que o próprio cinema. Em particular no Tudo sobre minha mãe, que se refere a uma peça do Tennessee Williams (Um bonde chamado desejo). Agora, fizeram uma ópera desse filme na Itália. Acho maravilhoso que haja uma circularidade das linguagens artísticas. Que a gente entre neste círculo e não fique reduzido à Biblioteca de Babel. Este círculo enriquece e a vida fica muito mais interessante. A literatura tem um grave problema. A literatura perto do cinema é muito chata porque a pessoa fica solitária ao ler. O cinema é ótimo porque quando você entra numa sala de cinema você vira um selvagem, urra, berra.
• Criação e crítica
Não acho que todo escritor seja também um crítico literário. Mas ele pode fazer crítica literária. Não vejo uma disjunção entre crítica e criação literária. No meu caso, é uma questão de avaliar o material que tenho em mãos e qual seria a melhor maneira de falar sobre ele. Se tenho muito controle sobre o material, então posso escrever um ensaio, em que usarei uma linguagem objetiva, científica. Se não tiver tanto controle, farei, possivelmente, ficção. E tem também o material que não consigo trabalhar nem como conceito e nem como drama. Neste caso, preciso trabalhar de uma forma muito subjetiva. É quando surge a voz lírica. Acho bobagem dizer que o crítico destrói o criador. Que o criador torna o crítico menos sério.
• Literatura para criança
O Drummond era contra a literatura para o público infantil. Nossa geração acreditava que a criança poderia ter acesso à grande literatura pouco a pouco. Já a partir de um determinado momento, acredita-se na necessidade de se usar uma linguagem que a criança possa absorver de maneira não traumática. Cecília Meireles, na década de 30, foi a primeira educadora a fazer bibliotecas para crianças no Rio de Janeiro. E os escritores começam a escrever para este público. Um dos primeiros foi José Lins do Rego. Em 1936, escreve Histórias da velha Totonha. Era uma questão delicada. Acho que Monteiro Lobato a resolveu de maneira mais inteligente. Em primeiro lugar, escrevendo os livros infantis dele e, em segundo, adaptando as grandes obras literárias para crianças. Essa atitude de Lobato é a que mais me agrada. Os autores que escrevem para crianças deveriam de vez em quando reescrever uma grande obra-prima voltada para o gênero infanto-juvenil. Mas tenho receio de quando o livro infantil é adotado. A criança não escolhe, é obrigada a ler um livro que dizem que foi escrito para ela. A questão da adoção deveria ser discutida com mais cuidado. Como essa adoção é feita? Pode dar no equívoco recente: proibir livros de Monteiro Lobato, cujo conteúdo seria racista. Acho ridículo, porque considero que tudo é racismo e nada é racismo. O problema é a maneira como você apresenta o material. O importante é o preparo do professor. Não conseguir contextualizar historicamente Monteiro Lobato para as crianças é um problema educacional e não literário. É um problema da formação do professor. Dependendo da formação do professor, ele é capaz. Veja como a questão negra reduziu nos Estados Unidos, um país que era extremamente racista. Por meio de bons professores e livros de literatura de boa qualidade essas questões foram discutidas e a sociedade se transformou completamente. A sociedade americana hoje é outra e tem um presidente negro. Professores bem preparados seriam capazes de contextualizar e inclusive dizer que o Brasil é um país escravocrata.
• Novos contistas
Aos 74 anos, acho que não é mais a minha função querer salientar pessoas. Mesmo na minha coluna no Sabático, evito falar de pessoas jovens. É uma questão, sobretudo, ética. Tem muita gente escrevendo bem, mas eu não gostaria de fazer uma lista. Em qualquer atividade humana vão aparecendo novos talentos. Não existe isso — só na USP — de um determinado grupo chegar a um ponto e dizermos que ninguém mais será escritor. “Os modernistas foram os últimos escritores brasileiros e ninguém mais será escritor.” Claro que serão escritores de maneira diferente, com outras preocupações, com outros interesses e fazendo a sua obra de maneira muito especial, muito rica e complexa. Acabei de ler uma antologia do poeta moçambicano Knopfli (Rui Knopfli), que não é conhecido no Brasil. Fiquei encantado. Ele já morreu (em 1997), mas fiquei surpreso por ser um moçambicano que estava perdido lá nas revoluções, mas que lia maravilhosamente bem Drummond, Borges, Fernando Pessoa, e como conseguiu ser o grande escritor da comunidade dos países de língua portuguesa. Talvez até pelo fato de estar em Moçambique, na província, distante disso tudo. Ele leu todo mundo, há poemas em que cita Drummond, Fernando Pessoa e Bandeira. Eu caí duro. Esse é o melhor poeta que nós temos no momento. É capaz de dar sustância à língua portuguesa falada no Brasil, em Portugal e na África.
• Personagens anônimos
O título Anônimos é exatamente porque eu não queria falar do mundo das celebridades. Literatura para mim é experimento, não é vanguarda. Eu não repito os livros que eu faço. Talvez até por herança, por ter trabalhado com a alta classe, a alta burguesia mineira, já tenha dado o meu recado nessa linha. No livro, quis trabalhar com as pessoas do nosso cotidiano, figuras que têm enorme peso em nossas vidas cotidianas. Com o motorista do táxi, por exemplo, você vai conversando uma infinidade de coisas da sua casa até o aeroporto. E, como que de repente, esquece tudo aquilo. No entanto, se for ao consultório de um médico, vai lembrar qual era a opinião dele sobre determinado assunto. O meu interesse surgiu a partir de uma frase de Kafka de que gostei muito. Perguntaram a ele se Metamorfose era uma confissão. Ele disse: “Não, é uma indiscrição”. Resolvi ser indiscreto. Comecei a perseguir esses personagens que estão no meu, no nosso cotidiano, e a ver como eles constroem o próprio mundo através da fala. Eu quis transformá-los em personagens de tal maneira que ganhassem nome. Comecei a perceber que a minha visão de cidade não corresponde à visão de cidade deles. Minha visão de cidade é cartográfica. Olho mapas, plantas da cidade. Eles constroem de maneira aleatória uma nova cidade, que não é uma cidade minha, mas é tão fascinante quanto aquela que a gente trabalha por meio de cartografias ou fotografias. Estas pessoas inventam pequenos labirintos, pequenas passagens. É desta maneira que elas articulam a própria vida. No primeiro conto (Calendário), faço uma brincadeira com o Zatopek, o grande maratonista (Na Olimpíada de 1952, em Helsinque, o checo Emil Zatopek venceu a maratona e as provas dos 5 mil e dos 10 mil metros; era conhecido como Locomotiva Humana). Os anônimos são os maratonistas das cidades. São aqueles que correm de um lado para outro. São eles que nos dão um bom desenho de uma cidade, que não é este que se confunde com os cartões postais, com todos os lugares da moda, que todos querem visitar. Foi um pouco a partir daí que resolvi escrever este livro e o levei até as últimas conseqüências, fazendo ao final uma grande homenagem a Guimarães Rosa. Acho que Rosa foi o grande escritor indiscreto da língua portuguesa. Era médico, muito culto em várias línguas, mas tinha enorme prazer em querer conhecer aquele vaqueiro do interior de Minas e fazer dele um grande personagem da literatura brasileira. O último conto (Ceição Ceicim) é o meu modelo no livro, não só por ser mineiro, por ser este narrador indiscreto, que bisbilhota a vida alheia, que tem prazer em conversar com o outro que não é parecido a ele.
• A polêmica do Jabuti
Na minha idade, há uma coisa pela qual a gente não tem muita simpatia: a vida literária. Perde-se um pouco de simpatia por isso, mas ao mesmo tempo sabe-se que ela existe e é muito forte, muito pesada. Este caso da Record demonstra isso. Agora, como analisar isso a não ser como vida literária? Não está em questão a qualidade dos livros (Leite derramado, de Chico Buarque, e Se eu fechar os olhos agora, de Edney Silvestre). Estão em questão dois nomes: um é o coringa da MPB (Chico Buarque) e o outro é o ás da televisão (Edney Silvestre). É isso que está em questão. Não está em questão o julgamento crítico. Está também em questão perguntar à organização (a CBL) como ela constitui as comissões julgadoras. Aí, eu acho, começa-se a responder direito. Acho a carta de Sérgio Machado (afirmando que o grupo Record não mais participará do prêmio Jabuti após Leite derramado, segundo colocado na categoria romance, ter sido eleito Livro do Ano) interessante. Mas é, como diria Ana Cristina César, um tapa com luva de pelica. Sinceramente, não vejo muito interesse em vida literária. Não consigo dar peso à vida literária. Desculpa ser tão blasé. Tem um verso de T. S. Eliot de que gosto muito: “Pensamentos de um cérebro seco numa estação seca”. Com a idade, a gente vai adquirindo isso um pouco. Talvez a minha sequidão possa ser a minha nota final.