Sidney Rocha

“Quando a gente lê ficção, parece que algo mágico ou vital nos transporta para além da superfície do cotidiano, um leitor de ficção experimenta algo para além da superfície.”
Sidney Rocha, autor de “O melhor dos mundos”. Foto: Anny Stone
01/01/2025

O romancista e contista Sidney Rocha foi o terceiro convidado da 12ª edição do Paiol Literário — projeto coordenado pelo editor Rogério Pereira e realizado pelo Rascunho desde 2006. O patrocínio desta edição é da Redecard, empresa do grupo Itaú Unibanco, por meio da Lei Rouanet, e os encontros são online, com transmissão pelo YouTube.

Sidney Rocha é doutor honoris causa pela Universidade Federal de Pernambuco por sua atuação na educação, na escola pública, sobretudo na defesa de leitura literária como direito universal. Ele falou sobre o papel que políticas públicas e outras iniciativas, como as feiras literárias, têm no incentivo e desenvolvimento do livro, da leitura e da literatura no Brasil.

“Um bom leitor formado na escola pública é aquele que sai interpretando o mundo, a sociedade, a comunidade em que ele vive de forma diferente, própria, crítica, esse é o leitor que interessa.”

O escritor, que hoje está radicado em Pernambuco, também lembrou de seus primeiros contatos com o livro e com o mundo da fabulação literária, ainda criança. “Toda a minha vida em relação à literatura é uma história de fuga. A ideia era, onde é que eu posso encontrar meu lugar no mundo? A biblioteca me pareceu o lugar mais adequado.”

Sidney Rocha é autor dos livros de contos Matriuska (2009), O destino das metáforas (2011, vencedor do prêmio Jabuti) e Guerra de ninguém (2016). No romance, escreveu Sofia (2014, vencedor do prêmio Osman Lins), Fernanflor (2015), A estética da indiferença (2018), Flashes (2020), As aventuras de Ícaro (2022), O inferno das repetições (2023) e O melhor dos mundos (2024). O conjunto de sua obra recebeu o prêmio Guerra Junqueiro de Lusofonia, em Portugal.

• Novamente uma reconstrução
Distingo bem essas três grandezas, que a gente tem que entender, para falar sobre políticas públicas no Brasil, que são o acesso à literatura, à leitura e ao livro. Mas hoje tenho certa desesperança em relação ao que a gente vem construindo em benefício do acesso ao livro. Passamos anos de penúria com governos mais à direita, terríveis. E vejo que essa reconstrução, digamos, da leitura de literatura no Brasil, é algo que já vimos há muito tempo, nos anos 1980, no começo da redemocratização do país, com uma tentativa de estabelecer um imaginário novo para os escritores e leitores do país.

• Condição humana
A literatura é como se fosse um coração invisível que pulsa. E esse coração invisível busca pragmatismo o tempo todo. Não se pode falar em literatura sem certo pragmatismo da vida cotidiana. Se olharmos pela lente dos grandes autores, como Flaubert ou García Márquez, por exemplo, a literatura não é apenas uma companhia ou um meio de escape, como geralmente algumas pessoas pensam, mas é uma dimensão essencial. A literatura, a meu ver, nos reconecta com o que há de mais profundo na nossa condição humana. E note que eu estou falando da nossa condição humana. Não estou falando da natureza humana, que é uma outra coisa.

• Transformação do cotidiano
Quando a gente lê ficção, parece que algo mágico ou vital nos transporta para além da superfície do cotidiano, um leitor de ficção experimenta algo para além da superfície. Vejo isso nos leitores que eu acompanhei durante a vida, vejo isso nos novos leitores nas escolas. Ler ficção, portanto, é penetrar num tipo de verdade mais complexa, que são as nossas próprias existências, ou seja, a consciência de si.

• Janela
Para Flaubert, a ficção é como uma janela por onde a gente vê o desespero, o amor, vê aquilo que não ousamos confessar nem mesmo para nós mesmos. Eu concordo. Porque a partir da leitura de ficção ou através desses personagens que vivem, que sofrem e amam, como eu, como você, como todos nós, essa literatura de ficção, portanto, permite com que a gente enfrente as fraquezas, nos faz reconhecer os lugares mais sombrios — e também os mais luminosos — que temos na alma.

• Espelho
Cada romance, cada conto, cada poema, é um pequeno espelho, um reflexo distorcido, mas ao mesmo tempo muito fiel às nossas próprias inquietudes. Lembrei desse espelho, porque acabei de ler um romance do José Castello [Jardim das amoreiras, a sair em 2025 pela Iluminuras], que fala um pouco sobre isso, esse espelho que nos permite enxergar o que está encoberto atrás da banalidade do cotidiano.

• Tempo e esquecimento
Faulkner disse que o tempo e o esquecimento não podem nada contra a ficção. A ficção é mais poderosa, porque ela vai lá e guarda essas memórias, ela fala e faz com que eu não esqueça as injustiças que sofri, ela vai lá e me mostra que eu não posso esquecer também. Uma outra coisa é que essa leitura de ficção, ou a ficção mesmo, faz a gente recordar, que é diferente de lembrar, faz a gente recordar que mesmo nos momentos mais solitários, a gente termina conectado a um tipo de corrente ininterrupta de memória, de imaginação, de sonhos, de histórias. De algum jeito a ficção nos completa ou amplifica essa nossa capacidade de sentir e de entender.

• Sem resistir
As pessoas precisam de ficção talvez porque, no fundo, elas precisam de si mesmas. E esse espelho está se apagando com a contemporaneidade. Essa fragmentação do sujeito está se apagando. Por conseguinte, a leitura da ficção, ou os leitores de ficção, também estão se esmiuçando. A literatura é mesmo essa chave que vai lá e abre esses lugares mais secretos do espírito, onde a gente guarda muitas dores, muitas alegrias. Por exemplo, a ficção que eu pratico, me ensina a esperar, a sonhar, a aceitar o que não posso mudar e nem resistir. É sobre esse ponto que estou lidando hoje na minha ficção, sobre coisas que eu não posso mudar e não quero mais resistir.

• Vida sem literatura
Não conseguiria viver uma vida sem leitura. Isso sem dúvida alguma me atrapalharia a minha relação com o mundo. A leitura é, como digo, essa intermediação o tempo todo, essa checagem. Escrever tem sido a coisa mais difícil do mundo para mim. Nem sempre tenho mais aquela disposição para escrever, porque mudei um pouco minha visão sobre a mistificação da literatura. Então poderia viver a vida inteira sem escrever, sem problema nenhum. Mas não viveria sem a leitura. Sem a leitura não conseguiria, por várias razões. Primeiro, porque essa é a única forma que aprendi durante a minha vida toda de entender o mundo. Só consigo entender o mundo a partir das leituras, a partir das minhas próprias concepções. E a partir disso eu crio esses constructos, que são as minhas ideias, que só servem para a literatura. Então, conseguiria viver sem escrever uma linha, mas teria que ler pelo menos uma linha por dia.

• Realidade e ficção
As discussões entre realidade e ficção eram um ponto fundamental para mim na minha infância. Não que eu tivesse muitas dificuldades de entender onde começava a realidade e terminava o sonho, nada disso, mas é porque, no meu caso, era necessário ficcionalizar um pouco a realidade em que vivia, porque, caso contrário, não restaria muito para aquela criança. Vim de uma cidade do interior, que hoje tem cerca de 300 mil habitantes [Juazeiro do Norte (CE)], mas antes era uma cidade muito simples — e ainda hoje é, porque não tem ainda um jornal sequer lá. Minha cidade passou pela ruína sem chegar ao apogeu, assim, nós não tivemos os grandes movimentos, não tivemos as grandes conquistas, as vibrações, etc. Quando eu era criança, escrevia porque era uma forma de me dar com aquela realidade. Por exemplo, havia um gênero lá na minha região chamado literatura popular, que muitas vezes as pessoas chamam ou confundem com cordel. E como não havia jornais, o que eu fazia naquela época era escrever sobre os fatos ocorridos na cidade, ou seja, sobre o incêndio do mercado, que de fato ocorreu, ou sobre um assassinato terrível, sobre o bebê de proveta, como também de fato aconteceu. E já vão 50 anos que faço isso, escrever. Então, às vezes, era necessário contar uma história, mas era necessário também, entender um pouco da imaginação, porque a literatura popular, ela é sobretudo a sua capacidade de gerar imaginação para as pessoas. Ali se confunde, portanto, o folheto de cordel com o romance de cordel. E eu sempre buscava mais a ideia do romance de cordel, ou seja, o imaginário daquelas pessoas, que era também o meu próprio imaginário.

• Ir embora
O que é que eu queria quando era criança? Queria ir embora, sumir. Ainda hoje acho que vivo essa sensação. Hemingway dizia que “o bom lugar é onde nós não estamos”. A minha ideia de fugir, de escapar da fome, da pobreza, da miséria, da família, seja lá o que fosse, fazia com que eu praticasse certas ficções. Então construí um determinado imaginário, uma ficção particular, para poder ir escrevendo as minhas histórias. Minhas histórias todas são fruto dessa minha capacidade de imaginar. Assim como havia o sonho, havia também o feijão. Ou seja, a realidade e o sonho de novo terminavam se tocando, precisando um do outro. Então, a literatura para mim nunca foi somente diletantismo. Eu precisava arranjar um jeito de ganhar a vida, ganhar dinheiro com aquilo.

• Origem
Nos anos 1970, na cidade em que nasci, Juazeiro do Norte (CE), o livro não era um objeto importante. Não havia livros em casa, não porque houvesse miséria, havia mesa farta e havia outras possibilidades de riqueza, digamos assim. Mas no meu caso, comecei a sentir falta mesmo dessa ideia da leitura sobretudo na escola, onde me aparelhei melhor para a leitura. Havia três portas importantes na escola, e acho que escolhi a melhor delas, sem nenhum demérito pelas outras. A primeira porta que eu encontrava na escola era a porta da merenda. A merendeira era mágica para mim. Primeiro porque vi muitos amigos desmaiarem de fome na escola, era uma situação terrível, um tempo de seca, miséria, um tempo muito duro. Esses amigos iam para a escola somente para comer, não havia outra razão. A outra porta que eu achava que, de algum jeito, me salvaria, era a da sala de aula. A porta da sala de aula me deu esperanças. Porque ali eu podia de algum jeito dizer para as outras pessoas, vejam, sou diferente. Embora fosse muito tímido, podia dizer “olha, consigo fazer coisas com um certo rigor, com uma certa poesia, eu posso me distinguir aqui”. A última porta da escola me alterou, porque era a porta da biblioteca. Ali eu podia executar um tipo de fazer, de pensar, de imaginar. A partir dessas experiências na biblioteca, comecei a escrever. Mais do que a escola, o livro foi importante. Toda a minha vida em relação à literatura é uma história de fuga. A ideia era, onde é que eu posso encontrar meu lugar no mundo? A biblioteca me pareceu o lugar mais adequado.

• Leitores para o mundo
Um bom leitor formado a partir da escola pública é aquele que consegue ler primeiro o mundo. Que consegue sair da escola. Uma ideia livresca demais atrapalha o nosso conceito sobre leitura. Um bom leitor formado na escola pública, repito, é aquele que sai interpretando o mundo, a sociedade, a comunidade em que ele vive de forma diferente, própria, crítica, esse é o leitor que interessa. Se ele passar pela leitura cognitiva da alfabetização e também pela leitura literária, excelente, mas o principal da escola não é formar leitores literários, o principal da escola é formar leitores para o mundo.

• Panorama da leitura
Há uns dez anos, quando estava mais próximo do Ministério da Educação, o Brasil tinha mais ou menos 250 eventos chamados de feiras ou festivais literários. Uma das propostas, inclusive no MEC, em relação às festas ou feiras, era justamente formar leitores. Não sei como que nós ganhamos leitores a partir desses eventos. Não temos como medir isso. Sobre a formação do leitor, como é que se perde o leitor? [Sidney Rocha se refere aos números da mais recente pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, que apontou uma “perda” de 6,7 milhões de leitores no país nos últimos quatro anos]. Como é isso? Um leitor não se perde. Se você formou um leitor, não perde esse leitor. Outra coisa, se o Brasil, em alguma época, tivesse tido seis, sete milhões de leitores, o país seria diferente. Nós nunca tivemos sete milhões de leitores, essa é a questão. Talvez esse número, essa metodologia, esteja mais ligada ao hábito da leitura, ou sei lá, a uma amostragem. Mas nós nunca tivemos sete milhões de leitores, é impactante dizer isso. E isso não é uma coisa só do Brasil, na América Latina toda o quadro é tão rarefeito quanto aqui. São números que mostram o quanto nós não evoluímos no decorrer dos últimos 50 anos.

• Retratos da Leitura
Quem patrocina a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil hoje é um banco. E qual é a ação dos bancos em relação à produção de riqueza no mundo? É a produção de riqueza mais popularizada ou é a mais editorializada? Certamente que é mais editorializada, certamente que interessa a determinadas pessoas, inclusive grupos, dizer quais são os números do Brasil. A educação brasileira parece que é assim, é o número do Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica]. Essa “idebilização” da educação, os escores, os números, todas essas coisas estão a serviço da ideologia, faz parte do capitalismo tentar simplificar a realidade de um país como o nosso. Há uma semana, cheguei de uma cidade chamada Sobral (CE), que é modelo de educação para o Brasil, modelo de educação para o mundo. E eu pergunto, será que é possível a gente “sobralizar” o Brasil? Será possível que a gente possa colocar as crianças para ler na idade certa, assim como fazem em Sobral há 30 anos? A quem não interessa um modelo “sobralizante” em São Paulo, na Bahia, em Pernambuco, onde quer que seja?

Sidney Rocha, autor de “O melhor dos mundos”

• Festas literárias
O que esses eventos fazem, na maioria das vezes, não é a busca de formação de leitor, é um outro tipo de interesse. O interesse de mercado. Sou editor há muito tempo e nos últimos 30 anos nós vemos as mesmas editoras nesses eventos. Nós não temos sequer mercado editorial no Brasil. Se pegarmos o mercado editorial da Europa, dos Estados Unidos, vemos a potência que são. Aqui nós temos algumas pessoas que vendem livros, três mil, quatro mil livros, sei lá. Tem gente que hoje diz que vendeu 1 milhão de livros, eu não sei, mas são números, de novo…

• Woke
Acho que esses eventos literários têm de ocorrer cada vez mais, mas eles precisam dar uma distinção um pouco maior para o livro, um pouco maior para a obra e menos para o autor, menos para a autora. Em uma época de influencers, todo mundo quer colocar a cara, o corpo, ser esses sub Oscar Wilde da contemporaneidade, sob o ponto de vista do narcisismo. Todos eles terminam confinando a nossa ideia de literatura a esse modelo, entre aspas, de mercado, ou da moda, de apresentar um produto, o que chamo de literatura de resultado. E muitos irmãozinhos e irmãzinhas nossas caem facilmente nesse jogo woke, nesse jogo pragmático, nesse jogo do discurso, nesse jogo da mensagem chamada de mercado no Brasil. Há um equívoco nisso.

• Nova produção
Acompanho os novos autores porque há muitos anos venho participando de conselhos editoriais, de editoras, como jurado de prêmios importantes, como Jabuti, Oceanos, São Paulo de Literatura, Prêmio Paraná, já estive no Prêmio Cepe, aqui de Pernambuco. Ou seja, naturalmente acabo lendo boa parte de uma amostragem do que se produz na literatura brasileira. A ponto de eu poder entender mais ou menos quais são as tendências e onde é que essa produção, digamos assim, se encontra na contemporaneidade do Brasil. E também acompanho em busca de uma surpresa, uma surpresa que não tenho visto. Posso ser injusto, mas eu não vi nenhum grande livro nos últimos 15 anos, pelo menos desde o percurso dos concursos literários, dos editais. Não tenho visto grandes evoluções na literatura brasileira.

• Sociologia
Espero que escritores e escritoras de talento que eu conheço, desçam desse trem da sociologia. Fui criado sob a influência de uma literatura engajada. Nós, no Brasil, líamos literatura engajada francesa, espanhola, latino-americana. O que nós vimos desse engajamento todo é que o mundo precisava mudar. E nossa literatura precisava mudar. E nós não andamos. Até conseguimos encontrar bons termos de literatura nos anos 1980, com grandes nomes, mas depois, e sobretudo agora, nos anos 2000, não evoluímos mais. Sobretudo sob essa contaminação da cultura americana — não estou falando só pela questão imperialista, não estou retomando aqui o velho militante dos anos 1980. É porque sofremos e herdamos essa linguagem americana do politicamente correto. O que derivou em um partidarismo, oportunismo de escritores e escritoras que terminaram “sociologizando” seus romances e criando teses sobre o Brasil. A meu ver, isso prejudica a literatura. Não somente essa “sociologização”, mas essa busca de interpretar o país. Nós já tivemos melhores interpretações do Brasil, meu povo. Tivemos Florestan Fernandes, Gilberto Freyre, tanta gente que interpretou o Brasil. No nosso ofício, que a gente retome a ideia da literatura em si. “Ah, mas eu posso discutir qualquer tema, porque no romance cabe de tudo.” Claro, você pode falar sobre o que você quiser, mas que o ponto fulcral, o ponto mais importante disso, seja a literatura e não o oportunismo, não a literatura de resultados.

• Regionalismo
Não empresto a minha literatura a nenhuma regionalidade. Minha literatura não está a serviço de nenhuma região do país. Não está a serviço de uma identificação, nenhuma causa identitária, minha literatura não está sujeita, nem está presa, a nada, eu tento produzir o que chamo de uma “libertatura”. Nós temos um neorregionalismo por aí, mas que não está mais somente na geografia. Ou seja, não é sobre o determinismo biológico, o determinismo que foi fundado por aquele terrível escritor, aquele geógrafo chamado Euclides da Cunha, que por volta de 1902 escreveu Os sertões, começando a definir que nossa literatura fosse aquele tipo de escrita sobre o interior, sobre os vaqueiros, etc. Hoje nós vivemos uma coisa diferente. Se pudermos falar em um neorregionalismo, vivemos fora desse determinismo biológico, com escritores que estão mais interessados na paisagem interior dos personagens, no grande sertão interior desses autores e dessas autoras.

• Literatura realista
O Brasil sofre e perde muito da sua literatura, justamente porque o escritor brasileiro — e o leitor brasileiro também está mal acostumado — está ligado ao realismo. Parece que nós não fugimos nunca desse realismo, então eu tento praticar uma literatura que não seja assim tão realista e que possa garantir a imaginação do leitor.

• Rotina
Escrever, para mim, tem sido muito difícil. Tenho muitas atividades durante o dia. Só escrevo quando é impossível não escrever. Mas não busco uma disciplina maior hoje em dia. Me dói a coluna, os olhos, quando escrevo. Estou chegando aos 60 anos, minha paciência é um pouco menor com a palavra e eu largo aquilo no meio e não ao modo de Hemingway, eu não largo o texto no ápice, eu largo quando o texto também me larga. Escrevo sem perseguir a literatura, de um jeito que aquilo me dê mais prazer e menos dor. É claro que poderia romantizar e dizer que é o sentimento do mundo que me envolve. Não é bem isso, eu estou bem consciente de que não há muita salvação.

• Mudança
Acho que minha literatura mudou desde Fernanflor. Como escritor e como pessoa, tenho hoje um senso de gravidade muito maior em relação à vida. Este senso de gravidade faz com que minha literatura se mova sobre outras pernas, sobre outros movimentos. Então, hoje escrevo baseado em uma certa gravidade do mundo, uma ideia bem possível de que amanhã eu possa não estar aqui. Tenho escrito nesse sentido.

• Vida
Sou uma pessoa que gosta da vida, curto essa coisa de viver. E para mim a coisa mais importante é a vida, não é a literatura. A literatura, como disse, eu poderia viver sem ela, só preciso ficar mais atento para as coisas que tenho vivido, acho que de forma às vezes acelerada demais. Nós passamos por um episódio importante de calamidade humana na saúde recentemente com a covid-19, e ainda não está bem claro o que aconteceu conosco. No romance O inferno das repetições, discuto uma coisa da qual nós não estamos ainda muito atentos, que é a perda da memória coletiva. As pessoas estão perdendo neurônios, as pessoas foram tão atacadas pelo vírus que estão perdendo a memória. Essa fragilidade é uma coisa do nosso tempo.

• Romances e contos
Quem escreve contos e romances, sabe que há uma grande diferença entre um e outro. No conto, partimos de uma determinada estrutura, de um leitmotiv qualquer, escrevemos sobre um personagem e está tudo resolvido. Mas quando você escreve um romance, é tudo diferente, você não consegue se desligar daquelas almas, não consegue se livrar daqueles tormentos. E não são tormentos no sentido de que o escritor é um sofredor, nada disso. É que em busca dessa essência, dessa condição humana, o romancista tem que ser diferente mesmo, ele tem que viver aquilo completamente. E a angústia do escritor não está no sofrimento do seu personagem. Mas pelo tipo de escritor que sou, eu me angustio pela linguagem. Então, fico muito feliz quando um leitor nota o rigor da frase, o ritmo, porque tudo isso tem mesmo a ver com o sentimento dos personagens, com a própria trama, a dança que há nisso. Minha angústia está sempre no sentido de que eu termine por escrever algo que seja tão absolutamente vivo, que as pessoas digam: “Isso de fato acontece com alguém ou acontece comigo”. Se conseguir, nesse jogo da frase, garantir um leitor ou uma leitora, estou feliz. E a minha angústia é justamente de buscar ao máximo possível a frase perfeita, ao modo de Flaubert, a palavra certa, até eu poder, a partir dali, entender que estou fazendo o melhor que posso.

• Oficinas de escrita
Quando alguém entra em um curso ou uma oficina de literatura, já tem mais ou menos uma ideia do que quer. Eu não vou transformá-lo em escritor, mas sei que ele é um leitor em potencial. E não dou oficinas, não sei dar oficina de literatura, dou cursos de literatura, ou seja, cursos de escrita literária e cursos de leitura literária em módulos e também em universidades. Acho que esses cursos de pós-graduação no Brasil são importantes porque terminam formando ou melhorando a leitura de alguém. Nos meus cursos, tenho formado leitores jornalistas. A maioria das pessoas que procuram os meus cursos são jornalistas. E jornalistas não têm o hábito nem o prazer de ler. Porque ter o hábito de ler é fácil, o problema é você ter prazer em ler. Como é que vou ensinar a gozar com a leitura? É sobre isso, é esse o objetivo. Esses cursos têm funcionado para muitas pessoas. Elas têm comprado mais livros, lido mais livros, se preocupado mais com essa questão da imaginação.

>>> Leia o Paiol Literário com Maria José Silveira.

O melhor dos mundos
Sidney Rocha
Iluminuras
234 págs.
Paiol Literário

O projeto Paiol Literário, realizado pelo Rascunho desde 2006 em Curitiba, já contou com a participação de mais de 70 autores brasileiros. É um grande acervo sobre a literatura brasileira contemporânea. Os encontros são iniciados sempre com a pergunta: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”.

Rascunho