Sérgio Rodrigues

“Não foi inventada ainda uma ginástica melhor para o pensamento do que ler”
Cido Marques/FCC
01/08/2018

O escritor e jornalista Sérgio Rodrigues foi o segundo convidado da temporada 2018 do Paiol Literário — projeto do Rascunho, com patrocínio da Caixa Econômica Federal e apoio da Fundação Cultural de Curitiba. O bate-papo aconteceu em 3 de julho, no Teatro Paiol, em Curitiba (PR), com mediação do tradutor Christian Schwartz.

Mineiro de Muriaé, Rodrigues começou cedo sua relação com a literatura, o que o levou a concluir já aos 14 anos que seria escritor — decisão que considerou mais ponderada do que ser astronauta. Ao entrar no Jornal do Brasil, nos anos 1980, passou a trabalhar a ficção “em fogo baixo”, deixando-a em segundo plano, a fim de praticar o jornalismo.

Apesar de não ter se dedicado exclusivamente à literatura, Rodrigues nunca deixou de escrever. Estreou em 2000 com os contos d’O homem que matou o escritor — “fiquei bem satisfeito com esse livro”, diz o autor de, entre outros, As sementes de Flowerville (2006) e Viva a língua brasileira! (2016).

O reconhecimento maior veio 14 anos após sua estreia, quando o romance O drible, cujo pano de fundo é uma história do futebol brasileiro, venceu o Prêmio Portugal Telecom de Literatura.

Na conversa a seguir, o autor de Elza, a garota, que une o rigor do jornalismo com a liberdade da ficção para contar a história de uma jovem comunista que o Partido Comunista matou, fala de seu processo criativo, de sua trajetória de leitor, opina sobre a cultura brasileira, discorre sobre o desfavor que as escolas fazem ao indicar a literatura de José de Alencar para adolescentes, entre outros assuntos.

• Ser leitor no Brasil?
É uma pergunta difícil de responder [Por que ler?]. Para mim, soa um pouco como responder “por que respirar? Por que comer? Por que se relacionar com as pessoas?”. Ao mesmo tempo, embora possa parecer que é óbvio demais para merecer uma resposta, acho que para muita gente não é nada óbvio. O Brasil é um país que lê muito pouco com relação ao que poderia, ao potencial de leitores que temos, com uma população tão grande. O nosso mercado ainda é muito pequeno — pífio, na verdade. O Brasil tem uma resistência atávica à ideia da leitura. Escrevi recentemente sobre isso. Alguma coisa me fez lembrar que, na adolescência, quando comecei a ficar muito apaixonado por esse negócio de ler, e comecei a ler tudo e ler demais, a ler escondido, porque era uma coisa que não dava prestígio social, e era uma fase em que a inserção social tinha uma importância muito grande. Na adolescência, você quer ser igual às pessoas, você não quer se destacar da multidão, mas ser exatamente igual — usar o mesmo tênis, o mesmo corte de cabelo. Aquela fase em que todo mundo quer ser igual. E ler me tornava muito diferente. Saber coisas relativas à cultura dos livros era uma coisa que você tinha que esconder. Eu sentia essa necessidade de esconder. E isso é muito curioso, muito marcante. Nós temos uma sociedade que valoriza muito pouco qualquer coisa relacionada aos livros e à cultura letrada.

• Analfabetismo
As pesquisas de analfabetismo funcional mostram que só um terço, um pouco menos de um terço, 28%, 29% da população brasileira, pode ser enquadrada em níveis adequados para a leitura. Só o proficiente e o intermediário estão qualificados para ler literatura. Os níveis abaixo disso, que acho que são o precário e o horroroso, permitem ao cara escrever, talvez, um bilhete, uma frase muito rudimentar de três ou quatro palavras. Mas o trabalho de linguagem associado ao fazer literário só seria compreensível pra uns 28% da população brasileira. Só que isso não explica tudo, porque desses 28%, que já seria gente à beça num país tão grande, a maioria absoluta também não lê.

• Herança maldita
A classe média brasileira, educada, também não tem o hábito de leitura, não transmite isso aos filhos. Isso é uma coisa que circula pouco na sociedade. Não foi inventada ainda uma ginástica melhor para o pensamento do que ler. Acho que um país que lê pouco é um país que pensa mal, é um país que tem menos referências pra se pensar e pra compreender o mundo, e talvez isso ajude a explicar por que a gente está nessa pindaíba tão geral, que se manifesta em vários aspectos — culturais, políticos, sociais, educacionais.

• Paulo Prado
O Paulo Prado fala da cultura ornamental brasileira num livro chamado Retrato do Brasil — é um livro sem nenhum prestígio acadêmico há muito tempo, e com boas razões. É um daqueles caras que tentaram fazer uma síntese do país, explicar o Brasil nas primeiras décadas do século 20. Então, ele seria um colega do Sérgio Buarque de Holanda, do Gilberto Freyre, do Caio Prado Júnior. Mas o Paulo Prado era talvez o mais conservador deles. Ele realmente usa umas coisas muito pseudocientíficas, que tornam o livro uma leitura complicada hoje. Ao mesmo tempo, acho muito interessante o que ele faz. Tem um pessimismo quase revigorante. Várias das nossas sinucas, dos nossos problemas, dos nossos pântanos, já estavam ali. E ele estava tentando refletir sobre aquilo com as ferramentas que tinha. Essa questão do anti-intelectualismo brasileiro, da vocação anti-intelectual brasileira, ele vai lá nos bandeirantes. Diz que isso é uma herança dos bandeirantes, que é um povo muito rude, pessoas que estavam lutando pela sobrevivência contra os elementos e com expectativa de vida curta. E nem português eles falavam, na verdade; quer dizer, tinha ali uma luta do português contra a língua geral, a língua do colonizador tentando entrar no país. Isso talvez explique um divórcio de origem entre a ideia do que está nos livros, o importado, e a língua de verdade que você aprendeu com os índios, a língua que vai te ajudar na tua vida geral. Eu não sei. Isso é uma ideia do Paulo Prado.

 

Cido Marques/FCC

“Não foi inventada ainda uma ginástica melhor para o pensamento do que ler.”

• Cultura ornamental
O bacharelismo brasileiro está vivo ainda — o discurso pomposo, cheio de palavras grandiloquentes, bonitas, e vazio, que não quer dizer absolutamente nada. Isso é muito associado à cultura do livro. Muito associado ao livro, à poesia. No Brasil, tem-se uma visão tradicional de que a poesia é aquele verbo cantante, a palavra bonita. É a cultura ornamental. Isso eu acho que vem do tempo em que as famílias de posse, no Brasil, tinham que mandar pelo menos um dos seus filhos para estudar em Coimbra. Aí, em Coimbra, eles se encantavam pelo romantismo, visitavam cemitérios, e voltavam pro Brasil com vocabulário muito extenso, querendo exibir sua cultura. E impressionando o povo. Aí você tem o outro lado da moeda. Porque, quando a população é completamente ignorante, ela se deixa intimidar com muita facilidade por qualquer demonstração um pouco mais ostensiva de repertório cultural. E passam a usar isso como um instrumento de poder.

• Juridiquês
A linguagem jurídica brasileira, que é uma coisa quase comicamente enrolada, é assim obviamente de propósito e é um instrumento de poder para impressionar a massa iletrada. Ao mesmo tempo, aquilo afasta essa massa iletrada ainda mais desse mundo — aquele é o mundo inacessível, é um código secreto, que é um privilégio dos poderosos. E se fazem sacanagens tremendas em nome disso. As pessoas não entendem as leis, não entendem o regulamento do condomínio. Coisas que regem a vida delas são feitas numa linguagem inacessível. As coisas são feitas de propósito, numa linguagem que é para excluir a maioria da população.

• Linguagem acessível
Em termos de acesso à cultura, houve [melhoria ao longo dos anos]. A partir do Plano Real, no governo do Fernando Henrique [Cardoso], nos dois governos Lula. Era um momento de inclusão, inclusive em bens culturais — muito mais, infelizmente, em bens materiais, porque esse acabou sendo o foco da política econômica. Mas houve, também, acesso ao livro. A indústria editorial se expandiu muito, em grande parte com livros acessíveis, para consumidor que não comprava livros até então. Agora, essa questão mais, digamos, superestrutural de como a linguagem é usada para comunicar ou para mesmerizar a população, acho que não mudou muito. Talvez esteja começando a mudar um pouco a consciência do problema, porque isso sequer era visto como problema. Era como se a vida fosse assim mesmo. Acho que está começando a chegar aqui um movimento que já tem grande força em outros países, principalmente países de língua inglesa — o movimento da linguagem clara, justamente para lutar para que tudo seja reescrito, tudo que afeta a vida das pessoas seja reescrito em linguagem mais acessível em nome da ampliação da cidadania.

• Best-sellers
Acho que funciona mais até do que o caminho que eu fiz [começar a ler pelos best-sellers]. O caminho que fiz foi de exceção. Li livros absolutamente áridos e difíceis. Não por nada, mas é porque era o que tinha em casa. Era o que eu conseguia botar a mão. Não foi proposital. “Vou começar a ler pelos clássicos”. Não. Tem aquela coleção: Clássicos da literatura universal, edições encadernadinhas e tal. As pessoas tinham isso em casa. Em geral, não eram nem para ler, mas para decoração. Na minha casa, por acaso, era lido. A minha mãe lia muito. Eu a via lendo, e acho que isso contribuiu muito para o meu gosto pela leitura. Acredito que você deve começar a ler por prazer. Se o que vai te dar prazer é um best-seller, você deve ler o best-seller. Acho que a escola brasileira faz um mal terrível à leitura no Brasil com os livros que são, em geral, passados aos adolescentes.

• Desfavor à cultura
Indicar José de Alencar a um adolescente é um crime. É um crime. Um crime de leso à cultura, um crime de leso à leitura. Você cria multidões de pessoas que vão odiar literatura para sempre. Não é que o Zé de Alencar seja um mau escritor, ele só não é muito bom. O Roberto Schwarz é que tem uma frase boa: diz que cada livro do Machado de Assis é quase que uma demonstração de como o José de Alencar é bocó. Que ele pega uma coisa que o José de Alencar tratou, mas faz da forma como deveria ser. É defasado, é uma coisa antiga. “A literatura brasileira começou ali. O romance brasileiro nasce ali, então o leitor tem que nascer ali também”. Isso é até infantil, uma ideia ridícula. O leitor tem que nascer onde nasce o prazer de ler. Depois, se ele chegar ao José de Alencar, maravilha. Mas é uma linguagem difícil a um adolescente de hoje. É um universo distante, frio, velho, bolorento. O próprio Machado de Assis é uma péssima porta de entrada. O garoto não está preparado para entender aquilo. E aí você dá um troço que tem uma linguagem complicada, que ele não entende nada, que é obrigação e que ele vai tirar uma nota ruim — quer dizer, você já associou tudo que há de pior na sua vida escolar a um livro. A escola brasileira não só não ajuda como está atrapalhando à beça.

• Iniciação
Seria muito mais interessante começar pela literatura contemporânea [do que tratar de clássicos nas escolas]. Coisas que estejam mais próximas das vidas daquelas pessoas. Nunca me dediquei a pensar literatura em termos didáticos, mas com certeza tem muita coisa. Algumas coisas que as escolas passam, funcionam. Funcionam quando se sente que têm alguma proximidade. Um livro que faz muito sucesso, no sentido de que a garotada gosta de ler, é Capitães da areia, do Jorge Amado, porque fala dos meninos de rua, jovens como eles. É um livro de uma linguagem simples — o Jorge Amado não é o José de Alencar. Não precisa nem ser tão contemporâneo assim. Qualquer coisa que o leitor consiga relacionar com a sua vida já cria uma ponte, um vínculo emocional com mais facilidade do que um livro do romantismo brasileiro.

“Indicar José de Alencar a um adolescente é um crime. É um crime. Um crime de leso à cultura, um crime de leso à leitura.”

• Literatura como prazer
Não existe muito a ideia de trabalhar a literatura, antes de mais nada, como um prazer [nas escolas]. Acho que, se ela não for um prazer, não vai ser nada. Um garoto não tem por que estudar literatura. Isso é para depois, para quem escolher isso como carreira. Aí sim, o cara vai ter que ler um monte de coisa por obrigação. A vida é assim. E algumas coisas que vai ler por obrigação, a princípio de má vontade, ele vai acabar descobrindo grandes delícias naquilo. Normal. É assim mesmo. Não estou fazendo um elogio do livro fácil, só acho que, se você tem o projeto de formar leitores, é um absurdo, um erro crasso, você abrir mão do elemento de prazer.

• Percurso literário
Eu lia tudo em que conseguia botar a mão. Morava no interior, não tinha livraria, não existia internet. Era impossível comprar livro fora do Círculo do Livro, que teve um papel importantíssimo na formação de leitores do Brasil. Eu tinha acesso aos livros que pegava emprestado na casa de um tio, tia, primo, e os que havia em casa. Li toda obra do Erico Verissimo, o romance de 30 do Brasil, todo mundo — José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, que já era canônico nos anos 1970. Tinha a coleção Clássicos da Literatura Universal, aí fui ler Flaubert, Tolstói. Não entendia boa parte daquele troço, mas achava muito bacana. O fato de não entender até me atraía ainda mais, criava uma coisa intrigante. Enfim, esse é um percurso muito individual e de exceção.

• Divina comédia
Talvez a minha memória mais antiga de encanto, encanto mesmo, de achar que o livro é um troço mágico, tenha sido abrir a Divina comédia, numa edição ilustrada pelo Gustave Doré. Eu era criança. Ficava aquele negócio lá, eu achava o nome muito intrigante e ficava folheando aquilo. O Paraíso e o Purgatório eram chatos, mas o Inferno era sensacional. Corpos nus. O Gustave Doré é um ilustrador genial. Aquilo era muito sensual e, ao mesmo tempo, claramente proibido, pecaminoso. Acho que associei — pelo menos gosto de achar que sim, talvez esteja fazendo um pouquinho de literatura — o livro àquela experiência tão excitante, transgressora e intrigante. Acho que essa associação ficou para sempre. A literatura passou a ser uma coisa excitante, e não chata como a escola tenta fazer. E faz.

• Formação do escritor
O escritor se formou bem antes do jornalista. Ele se formou na adolescência, nos anos 1970, durante o chamado “boom do conto”, principalmente dos contistas mineiros. De tanto gostar de ler, resolvi que queria escrever. Com 14 anos, falei: “vou ser escritor”. É uma decisão absurda — igual a “vou ser astronauta”, essas coisas. Aliás, eu também queria ser astronauta. Mas achava que o escritor era uma coisa mais realista, mas não muito. E comecei a escrever. Me trancava no quarto e escrevia contos. A primeira coisa que fiz foi entrar no curso de datilografia. Tinha uma ideia ingênua de que um escritor tinha que saber bater à máquina muito bem. Depois descobri que não. A maioria dos escritores cata milho. A primeira providência foi me tornar um datilógrafo exímio, já dando início a esse plano de ser escritor. Sou um excelente datilógrafo.

• Concursos literários
Comecei a escrever contos e inscrevê-los em concursos. Havia muitos concursos na época — cada cidade do interior tinha o seu concurso, academias de letras estaduais, municipais. E comecei a ganhar alguns concursos. Ganhei meu primeiro concurso por uma academia de letras de Santos. Eu fazia isso escondido da família, até então. Quando ganhei o primeiro concurso, abri o jogo, saí do armário. “Olha, eu tô escrevendo aqui uns negócios, até ganhei um prêmio”. Porque o prêmio me deu segurança de assumir a condição de escritor, que era uma coisa maldita. Me sentia meio envergonhado com aquilo. Assim como me sentia envergonhado de ler, de escrever eu me sentia mais ainda. Ao mesmo tempo em que tinha um fascínio, tinha uma coisa de “pô, isso aqui é meio estranho”. E, de fato, era. A família ficou horrorizada com aquilo, muito preocupada. Acho que um pouco orgulhosos, mas muito preocupados. Ganhei alguns outros concursos também. Teve até um livrinho publicado em Goiânia, uma coletânea dos ganhadores de um concurso. Falei: “bom, então é isso”. Tinha a certa lenda do contista mineiro, então eu achava que, por ser mineiro, já tinha meio caminho andado.

• Ambição
Meu plano era ficar nacionalmente conhecido e consagrado até os 18 anos, que eu achava uma idade bacana. Isso não aconteceu. Na verdade, quando cheguei aos 18 anos reneguei toda minha obra — sensatamente, aliás — e fui fazer a faculdade de Jornalismo, que eu achava que era uma coisa mais próxima do plano original de me tornar escritor — escrever profissionalmente e ganhar dinheiro com isso.

• Jornalismo e ficção
O jornalismo acabou me afastando do plano original por um bom tempo. É uma profissão muito apaixonante. A minha carreira decolou rápido. Meu primeiro emprego foi no Jornal do Brasil, nos anos 1980, na última fase dos tempos de glória do jornal. Logo, virei correspondente em Londres. Então não dava tempo, não tinha condições, ou não conseguia, ou não quis [dedicar-se somente à ficção]. Não sei muito bem. Nunca abandonei o projeto, continuava escrevendo. Mas o que eu escrevia não me parecia bom o bastante. E, na verdade, estava fazendo aquilo em fogo muito baixo. A prioridade total era a carreira de jornalista mesmo. Foi só com 37 anos que consegui, finalmente, juntar um livro de contos que me parecia bom, minimamente original, que merecia publicação. Era uma época um pouco mais difícil de publicar. A ideia de publicar era uma coisa complicada, tinha a famosa barreira para se chegar às editoras.

• Estreia literária
As coisas que eu vinha fazendo em fogo baixo não prestavam. Esse livro [O homem que matou o escritor] foi escrito para ser um livro mesmo. Foi escrito conto a conto. Mas rapidamente surgiu a ideia de que aquilo tinha uma coesão, uma ideia por trás, e os últimos dois contos foram escritos já com isso em mente. Assim como outros dois ou três foram deixados de fora por não se adequarem ao projeto. Achava importante ter um livro coeso. Não gosto muito da ideia de juntar e fazer um catadão de contos. Principalmente com livro de estreia. Um livro de estreia tem que dar um recado um pouco mais nítido sobre quais são suas intenções. Fiquei bem satisfeito com esse livro. Teve um clique qualquer, teve um salto de qualidade claro quando eu tinha 30 e poucos anos. Até então, o que escrevia era muito ruim — não é que fosse muito ruim, mas não tinha uma voz própria, estava sempre imitando alguém. O primeiro conto d’O homem que matou o escritor, chamado O argumento de Caim, foi o momento da virada, o conto que, quando escrevi, falei: “acho que é isso aqui, é por aqui o caminho”. É curioso que esse primeiro conto tem como personagem Nelson Rodrigues. E o Nelson Rodrigues é um personagem muito importante d’O drible, também. Muitos anos depois, ele reaparece.

 

“O leitor tem que nascer onde nasce o prazer de ler.”

• Sementes
Tem uma semente d’As sementes de Flowerville [seu primeiro romance] que tinha ficado de fora d’O homem que matou o escritor. Acho que queria ser romancista, na verdade. Os contos, para mim, foram meio que um laboratório de narrativas. Mas não me considero exatamente um contista, não. Gosto mais da tela mais ampla, da história que se desenvolve mais. Se você reparar, os contos d’O homem que matou o escritor já são grandes. Não tem nenhum pequeno. E tem uma novelinha. Acho que já eram contos que estavam tentando crescer — já aspiravam, digamos assim, a uma coisa maior. Um dos contos que ficou de fora d’O homem que matou o escritor também foi a semente d’O drible, que é o conto do Peralvo — o jogador craque, que teria poderes mágicos e tal. Não tinha nem me tocado muito disso, mas acho que aquele momento em que estava escrevendo o primeiro livro foi uma sementeira de quase tudo que veio depois.

Elza
Não encomendaram exatamente uma biografia, mas um perfil biográfico que contasse a história dessa moça [Elvira Calônio, codinome Elza Fernandes], uma história totalmente abafada de uma maneira stalinista, mesmo, pela esquerda brasileira. Inclusive, você encontra nos arquivos públicos pastas com o nome da Elza vazias. Alguém foi lá e destruiu as coisas. Só existe uma foto dela, que é o retrato de quando ela foi presa, feito pela polícia. É uma história que muita gente, até o momento em que comecei a pesquisar, jurava que era uma invenção da direita do Vargas — que a Elza nunca existiu, que ela nunca foi assassinada pelo partido coisa nenhuma, que isso era uma calúnia. Fui procurado pelo editor Alberto Schprejer, que na época estava na Nova Fronteira. É um cara que tem uma história no Partidão, e ele falava: “olha, eu acho que tem um belo livro. Essa história não foi contada ainda, a da Elza Fernandes”. Falei: “é verdade mesmo? Não é uma lenda?”. Eu também achava que era. Ele falou: “é verdade. Acho que dá um puta livro. É uma espécie de anti-Olga, o contraponto da Olga Benário”. E é realmente.

Lacunas
Gosto da ideia de trabalhar por encomenda — da ideia da profissionalização da escrita, do trabalho literário. Não gosto nada da visão mais romântica de ter que ficar esperando a inspiração. A ideia da encomenda, principalmente se ela for acompanhada de um adiantamento polpudo, o que era o caso, me parecia ótima. Só que, muito rapidamente, ficou claro que não dava para fazer esse livro [Elza, a garota]. Era tudo uma grande lacuna, uma coleção de lacunas na vida dessa moça. Ela aparecia de maneira marginal em alguns relatos, em outros livros, no próprio Olga [de Fernando Morais] ela aparece muito rapidamente. Você poderia fazer um livro de não-ficção contando a história dela. Mas seriam 90% contexto e 10% Elza. É um livro que traria pouca novidade.

• Olga e Elza
Elas têm trajetórias que se cruzam, são paralelas em alguns momentos. É bem curioso. As duas primeiro se conheceram, se frequentaram, participaram da mesma conspiração quando o Partido Comunista tentou tomar o poder do Vargas, na famosa Intentona, nos anos 1930. A Olga veio com o Prestes, de Moscou, para isso. E a Elza era a namoradinha do Miranda, que era o secretário-geral do Partido. Era uma menina ingênua, de Sorocaba (SP), analfabeta. Tudo indica que não estava entendendo muito bem o que estava acontecendo. Mas estava ali, era parte daquele grupo. E elas acabaram sendo, as duas, vítimas dos grandes monstros do século 20. A Olga, vítima do Hitler, e a Elza, vítima do Stalin. Indiretamente, é exatamente isso que elas foram. O grande conflito ideológico do século 20, que acabou na Segunda Guerra Mundial, se refletiu diretamente, de forma trágica, na vida de duas mulheres aqui no Brasil. Uma delas é a Elza.

• Romance com bibliografia
Até o fim eu fiz [entrevistas para o livro Elza]. Só que, ao perceber que não ia dar para fazer aquele livro, fiz uma contraproposta à editora que era escrever um romance que tivesse, dentro dele, um monte de pesquisa. É um romance com bibliografia. Gosto bastante da solução. É um livro que acho que tem uma novidade em termos de linguagem e até estrutural mesmo. Porque ele é metade um ensaio, jornalístico-histórico, e metade ficção. A metade que é jornalístico-histórica é muito rigorosa. Eu trouxe documentos inéditos. Tive uma auxiliar de pesquisa, Cristina Zarur, que foi paga pela editora. Ficamos seis meses enfornados em arquivo, entrevistando gente.

• Ficção e não-ficção
O personagem fictício Molina, um jornalista meio atrapalhado mas bem-intencionado, é quem escreve esse relato histórico. Dentro do jogo ficcional, é ele quem está escrevendo aquilo. Mas, no final, eu me senti obrigado a botar uma nota assumindo que, aquilo ali, quem está dizendo sou eu. Porque entrevistei aquelas pessoas. Alguém precisava assumir a responsabilidade. Não podia deixar essa responsabilidade com um personagem fictício. É um livro que tem uma dupla face. Não conheço nada igual. Não estou dizendo que seja espetacular, mas não conheço nada que tenha sido feito assim. Ele é um ensaio histórico e ele é, também, um relato ficcional. E a ficção e a não-ficção ficam o tempo inteiro se desafiando, e se desmentindo, e se reforçando. São dois polos, como se fossem o negativo e o positivo, que movem o livro.

“A escola brasileira não só não ajuda como está atrapalhando à beça.”

• Potência da ficção
Sou um pouco abusado nessa coisa de colocar personagem real dentro da ficção. Gosto disso. Nunca tive nenhum problema com advogados por causa disso. Mas é possível que venha a ter um dia. Boto os caras lá. Tento ser fiel ao que acho que é a verdade humana daquela cena ou daquele personagem. Quando trago o Nelson Rodrigues, ou o Pelé, o Vargas, o Filinto Müller, o Prestes, estou os colocando em situações que foram pesquisadas. Não os estou induzindo a realizar nenhum ato que vá contra suas biografias, ou seus modos de estarem no mundo como figuras públicas. Agora, estou botando eles dentro de histórias que crio com certa liberdade. Essa é a graça do negócio. O imperativo ético, na verdade, é o mesmo que vale pra ficção pura: é você estar tentando ser honesto com aquele material, e estar tentando fazer uma coisa que tenha uma verdade — se não factual, uma verdade humana verificável. Acredito na ficção como iluminadora dos vãos da história.

• Iluminando a história
No caso do Elza, claramente atendia a uma necessidade do material [preencher lacunas histórias com ficção]. Além dos arquivos cheios de lacunas e pastas vazias, outra dificuldade era o fato de que os personagens daquela época já estavam mortos. Quase todos. Havia uma ou duas pessoas. Consegui entrevistar uma velha militante comunista que conheceu a Elza. Uma só. Tinha outra pessoa, mas a família não me deixou conversar com ela, porque parece que já não tinha uma memória boa das coisas. Era realmente ou inventar, ou assumir que aquela história estava perdida para sempre. A ficção, nesse caso, acabou se impondo como um recurso de investigação histórica. Mas acho que isso atende a uma coisa mais antiga em mim, uma convicção de que a ficção tem um papel de iluminar a história. Acho que quando, muito antes do Elza, eu já botava uns personagens reais dentro de ficções, já era um pouco essa intuição, de que esse diálogo podia ser artisticamente rico. Muita gente acha — quando se fala de ficção e não-ficção dialogando, tem um certo preconceito, já encontrei pessoas que pensam assim — que é como se você estivesse submetendo a ficção à lógica da não-ficção, como se estivesse dando um papel subalterno à ficção e dizendo que a não-ficção é mais importante. É quase o contrário. O papel subalterno é o da não-ficção. Não acredito muito na realidade. Acho que a realidade deve ser construída, não é dada. Uma ficção pode contar mais verdades do que uma não-ficção, pode acessar verdades mais profundas do que um relato puramente factual. Acredito mesmo nisso.

• História não basta
Tem muita coisa que o relato histórico não alcança, não dá conta. Se você quiser saber, por exemplo, como as pessoas viviam em Paris, no século 19, não é um historiador que você tem que ler, e sim o Balzac. Para saber como as pessoas se vestem, conversam, como elas se sentem quando são abandonadas pelo namorado. A vida, digamos, pulsa muito mais na ficção. Acho que, por isso, a ficção tem a capacidade de jogar luz em certos recantos que a história não alcança. Daí a graça desse projeto, que no caso do Elza é colocado de maneira mais clara. Mas também existe um pouco n’O drible, isso de você construir um painel histórico e usar a ficção como argamassa para preencher os buracos todos e dar sentido para uma coisa sem muito sentido. A vida é cheia de ruídos e relâmpagos. A ficção é muito mais organizada — dá conta, tem um sentido. A vida real nem sempre tem.

• Elemento surpresa
Gosto de reviravolta, de surpreender, puxar o tapete do leitor. Isso está meio fora de moda, mas eu gosto disso como leitor. Então, tento fazer isso como escritor também. O elemento da surpresa é uma coisa muito menosprezada pela literatura contemporânea. A trama, o enredo, a surpresa que você guarda. Eu e o Ian McEwan somos os grandes puxadores de tapete. Quanta pretensão! É uma brincadeira, porque o Ian McEwan é um cara que leva isso muito a sério e, por conta disso, é encarado com certo desprezo por parte da crítica. É um cara que liga demais para a trama e faz coisas que são artificiais. Como se você trabalhar com trama fosse um artifício que só a literatura comercial pode usar. Quer dizer, a literatura mais ambiciosa, artística, não pode usar isso, tem que se restringir ao trabalho de linguagem. Acho uma ideia errada, uma ideia inclusive danosa à formação de leitores. Mas isso é uma discussão longa.

• Gênese d’O drible
Entre escrever o conto do Peralvo, nos anos 1990, e acabar O drible, foram 18 anos. Claro que não fiquei 18 anos fazendo só isso — fiz sete livros nesse meio tempo, tive dois filhos. Estava bem ocupado, na verdade. Mas O drible eu não consegui abandonar. Desde que escrevi o conto, e decidi não publicar, estava tentando ampliá-lo. O ponto de partida foi: e se a tal magia do futebol da qual os narradores e cronistas gostam de falar, o clichê “a magia do futebol brasileiro”, fosse literalmente magia? E aí surge a ideia desse jogador que é filho de uma mãe de santo, que tem uns poderes mediúnicos e os usa dentro de campo. E é um craque, da geração do Pelé, um pouquinho mais novo que o Pelé. Esse conto, apesar de eu o ter achado muito legal e satisfatório, era uma mera anedota. Isso me desagradava. Achava que o Peralvo, para funcionar como o personagem que ele merecia ser, uma espécie de, sei lá, Macunaíma do futebol, precisava estar dentro de um painel, de um contexto histórico, dentro do Brasil de uma maneira mais explícita. Não era um conto, uma anedota. Era uma coisa de fôlego. Aí, pra fazer essa coisa de fôlego, eu levei muito tempo. Tomei muitos caminhos errados, escrevi muitas páginas não aproveitadas.

“Acredito na ficção como iluminadora dos vãos da história.”

• Ultimato
A princípio, achava que o conto [do Peralvo] ia evoluir para uma novelinha, e aí a coisa foi crescendo mais. Foi uma encrenca danada. Não consegui abandonar. Queria abandonar o livro, esquecer aquilo, porque achava que nunca iria conseguir escrever aquele troço. No final, estava lidando com 50 anos de história do Brasil, tendo que reconstruir o Rio do tempo da bossa nova, reconstruir o Rio da redemocratização dos anos 80, do rock — tendo que dar conta de muito tempo histórico. Era uma receita para o desastre. E aquele troço ficava me enchendo o saco. Virou uma obsessão que tentei esquecer e não consegui. A estrutura dele é muito por conta disso. Tinha muita história, muita subtrama, muitas possibilidades. Um dia, me dei um ultimato: tenho que acabar isso aqui, fique bom ou não. Descobri uma frase do Neil Gaiman: “o que quer que você tenha que fazer pra terminar o que você está escrevendo, faça. Termine”. Falei: “porra, essa frase é boa”. Aí eu imprimi em tamanho grande, colei na parede e terminei. Foi um livro que nasce na edição — uma coisa que gosto de fazer até mais, editar o material bruto, do que de escrever.

• Os narradores
O drible tem três vozes narrativas. É uma coisa que, em geral, passa despercebida. E é para passar mesmo. Acho interessante chamar atenção a isso. Tem uma primeira pessoa, uma terceira pessoa de discurso indireto e tem uma segunda. Começa, e termina, em segunda pessoa: você. “Você” não é segunda, mas faz o papel da segunda, porque a gente não usa o “tu”. É o “você”, se dirigindo diretamente a quem está lendo. Isso não é gratuito. No final, se você parar para pensar, vai entender exatamente por que tem esse percurso por essas três vozes, que são as três vozes possíveis na ficção. Sendo que o “você”, a segunda pessoa, é complicado.

• O drible de Pelé
É a cena que abre e fecha o livro [um drible de Pelé no goleiro do Uruguai na Copa do Mundo de 1970]. Ela acabou sendo realmente estruturante. Mas não surgiu no início do processo, mas lá pelo meio. E não surgiu para ser a cena de abertura. Surgiu como mais uma cena do encontro daquele pai com aquele filho, e eu não escolhi essa cena, exatamente. Ela se impôs. Eu queria falar de uma cena mítica da história das copas do mundo, especificamente do Pelé, e essa cena é meio que óbvia, na verdade. Talvez seja o lance mais famoso do Pelé — com todos os gols que fez, é curioso que ele acaba sendo muito mais lembrado por um gol que não fez. Acho até que o fato de não ter sido gol também contribui para a permanência, porque gera certo inconformismo. É absurdo que aquilo não tenha resultado em gol. É quase como se fosse uma falha moral da realidade. Tem um descompasso entre a estética e a ética. Porque esteticamente é a perfeição, só que não resultou. É uma cena que se tornou eterna também por não ter tido o alívio do gol, a catarse do gol. Ela incomoda. É linda e incomoda ao mesmo tempo. Vi muito essa cena ao escrever. Ela dura seis segundos, e o capítulo tem umas seis páginas. É mais ou menos um segundo por página. O tempo é absurdamente esticado para contar isso, e foi intencional. Essa cena foi uma chave de leitura, e foi uma chave na escritura também. A partir desse momento, consegui o código do livro, que foi justamente quebrar o tempo histórico. O tempo histórico do futebol é quebrado, naquela cena, de uma maneira muito clara, muito eloquente. Ali, você entra num tempo mítico, circular, em que aquele lance vai se repetir para sempre. E futebol tem isso. Acho que alguma verdade um pouco mais profunda do que a jornalística, sobre por que esse diabo desse esporte é tão importante para nós, foi acessada.

• Painel histórico
Foi muita leitura [para conseguir relacionar futebol e nacionalidade n’O drible]. Na verdade, o livro mais importante de todos é O negro no futebol brasileiro, do Mário Filho, publicado em 1947 e ampliado em 1962, que eu sempre recomendo. O Mário Filho é irmão do Nelson Rodrigues, o fundador do Jornal dos Sports, o cara que deu nome ao Maracanã — homenagem póstuma que fizeram a ele. Foi um grande jornalista esportivo brasileiro. O negro no futebol brasileiro é uma saga dos anos de formação do futebol brasileiro, contando uma história de afirmação racial — como o título já entrega, como os jogadores negros, mulatos e pobres do Brasil acabaram se impondo, pelo talento, aos clubes de elite brancos que, no início do século, fechavam as portas para eles. E as histórias dessa assimilação gradual.

• Trabalho teórico
Uma parte mais ensaística que aparece às vezes, principalmente através do Murilo Filho [personagem d’O drible], quando ele começa a pensar, a teorizar sobre o futebol brasileiro, tem a ver com alguns livros que existem por aí. Talvez o mais interessante seja o do José Miguel Wisnik, Veneno remédio. Um ensaio cabeçudão, mas interessantíssimo sobre o papel cultural do futebol nas nossas mentalidades. Acho que esse personagem do velho cronista, do Murilo Filho, que é o pai do Neto, ele é uma versão mais alucinada das teses do Wisnik.

• Em campo
Joguei pelada. Não era muito bom, não. Eu era um centroavante rompedor. Mas era meio fraco, tinha pouco talento. O meu irmão era muito bom de bola, o que é um problema adicional — quando você tem um irmão bom de bola, e você não é, isso vira um problema na sua vida. Eu tinha dificuldade especial com drible. Outros fundamentos, de tanto insistir, acabei dominando. Mas no drible nunca fui bom — a não ser depois, no futebol de salão, que é outra geometria. Mas, no campo, eu era uma negação. Acho que o fato de eu ter feito um romance chamado O drible é uma maneira de compensar isso — uma compensação simbólica por ser meio perna de pau. Essa cultura infantil, adolescente, da pelada acho que ajudou à beça [na inspiração para o romance]. Sempre adorei futebol — sempre vi, torci. Praticamente parava tudo que estava fazendo durante a Copa do Mundo, só pensava naquilo. Meses antes da Copa, eu já estava colecionando a revista Placar para saber tudo. Era realmente alucinado com aquilo.

• Senso crítico
Analisar o que o cara tinha feito para a narrativa funcionar foi uma coisa que diminuiu um pouco, talvez, o prazer de muitas das leituras que eu fiz, porque ela já era, digamos, profissional, muito precocemente profissional. Uma coisa até meio doentia, pode-se dizer, para um garoto ficar pensando essas coisas. Mas isso foi me dando um senso crítico. Não digo que seja um senso crítico que funcione para outras pessoas, é só o meu. Sempre fui muito autocrítico, muito chato comigo mesmo. Não tenho nenhuma dificuldade em jogar fora, matar um personagem, impedir que ele venha à vida. Sei que muitos escritores têm, que se apegam. Cortar é muito difícil. Já eu tenho um prazer imenso em cortar. Sou o Jack, O estripador da edição dos meus próprios textos.

• Reaproveitando
Eu não gosto de jogar personagens fora, prefiro deixá-los num canto. Às vezes, as coisas voltam. No Elza tem toda uma subtrama que era de outra história que eu estava escrevendo e ficou guardada. Não gosto muito de jogar fora, não. Gosto de reaproveitar. Quando você trabalha muito com a ideia de edição, acho perfeito reaproveitar coisas. Tem escritores que não trabalham assim, acham que o texto tem que ser orgânico. Outro dia, conversando com o escritor português Valter Hugo Mãe, ele estava me falando do processo de criação dele, que é uma coisa completamente louca — o livro tem que ser escrito da primeira à última palavra. Se ele chega à última palavra e não está satisfeito, começa tudo de novo. Do zero, sem consultar aquilo. Faz cinco, sete, oito versões do livro, porque aquilo tem que ter uma organicidade. Eu admiro, mas é o exato oposto do meu processo.

• Lugar de fala
Acho um pouco perigoso o caminho que está se tomando hoje de compartimentar o direito às histórias. Se você vai contar uma história de negros, tem que ser negro. Se você vai contar uma história de gays, tem que ser gay. Acho isso um perigo. Uma receita de censura, de autoritarismo. Você deve julgar as coisas pelo resultado. Uma obra de arte só pode ser julgada pelo efeito artístico que ela produz. Por exemplo, o Dom Casmurro é uma coisa extremamente engenhosa porque o Machado de Assis está condenando o Dom Casmurro, está condenando o Bentinho. A pessoa que sai mal desse livro, apesar de a crítica brasileira ter demorado uns 30 e poucos anos para entender isso, é o Bentinho, e não a Capitu. Quer dizer, Machado de Assis está fazendo uma defesa indireta, sutil como tudo que ele fazia, da mulher, e condenando o homem. E ele é um homem.

• Conselho ao jovem escritor?
A palavra-chave é paciência. A gente tem paciência com coisas que consideramos tão importantes que merecem a nossa paciência, nosso carinho. É como ficar cultivando uma plantinha, ou ter um filho e esperar ele crescer. É uma forma de encarar o trabalho literário — talvez um pouco fora de moda, porque a gente vive momentos de aceleração e é inevitável que isso chegue também à produção textual. Não sei se teria a mesma visão se tivesse hoje 20 anos, a mesma visão que eu tinha aos 20 anos em 1982. É outro mundo, principalmente depois do tsunami digital que varre o mundo desde o início deste século. Não saberia dar um conselho a quem começa a escrever hoje. Não ousaria. Os desafios são outros, a linguagem é outra.

• Reescrita e autocrítica
O que posso falar, porque acho isso uma lei válida para qualquer época, universal, é que reescrever é mais importante do que escrever. Realmente acho isso. Qualquer texto reescrito fica melhor. Mesmo que, de tanto reescrever, você volte à versão original. Ainda assim será melhor do que a versão original, porque você vai entender muito melhor por que aquilo é bom. Às vezes você mexe no original e piora, é claro. Tudo que se mexe muito está sujeito a esse risco. A primeira versão pode ter uma espontaneidade que depois se perde. Você começa a trocar palavras e perde a espontaneidade. “Estraguei. Estava bom.” Aí você volta ao que era antes, mas com uma visão muito mais profunda e clara do que é aquilo que você está fazendo. Tem escritores que não gostam muito de analisar, de usar, digamos, o hemisfério mais racional do cérebro no trabalho literário, que seria uma coisa mais de explosão, intuição e tal. Não é o meu caso. Acredito em pensar sobre aquilo, em refletir sobre aquilo, julgar e criticar duramente aquilo que se fez, antes que o mundo o faça. Porque o mundo vai fazer. É muito melhor que você seja um crítico severo do próprio material, porque você vai estar preparado para enfrentar os leões depois. E os leões são terríveis. O mundo não precisa de mais escritores. Tem escritor demais. Uns tão querendo eliminar os outros. É uma guerra, uma coisa horrível — exagerando um pouco. Mas acho que você tem que se armar, tem que se calçar. Estar esperto. Não é uma brincadeira. É um prazer imenso, te leva a níveis de satisfação e de felicidade, e também de angústia e depressão. Tudo muito exacerbado.

• Se puder, desista
Já me perguntaram “qual conselho você dá aos jovens escritores?”, e eu respondi: desista! Se você conseguir desistir. A melhor coisa que você faz é desistir. Agora, é possível que você não consiga desistir, e aí boa sorte! Vai à luta. Porque não é uma atividade muito saudável. Não é uma atividade que dê recompensas materiais, em geral, muito significativas — a não ser para os casos de exceção. Vai ter sempre alguém para dizer que você é um merda, por melhor que você seja. Você vai se privar da convivência com seus entes queridos, vai ficar trancado num quarto. Você vai sofrer terrivelmente porque as coisas que você está fazendo não dão certo, e durante um bom tempo não dão mesmo, até o dia que dão. O dia que isso acontece é uma felicidade muito grande. Se der para desistir, é melhor. Há coisas muito mais legais para fazer com seu tempo. Muito mais saudáveis em termos de vida, de relação com as pessoas. E de ganhar dinheiro, também. A única justificativa que você tem para escrever é não conseguir não escrever.

Paiol Literário

O projeto Paiol Literário, realizado pelo Rascunho desde 2006 em Curitiba, já contou com a participação de mais de 70 autores brasileiros. É um grande acervo sobre a literatura brasileira contemporânea. Os encontros são iniciados sempre com a pergunta: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”.

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