No dia 18 de abril, Ricardo Lísias abriu a temporada 2012 do Paiol Literário — projeto promovido pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba. Lísias nasceu em São Paulo, em 1975. Graduado em letras pela Unicamp, é mestre em Teoria Literária pela mesma universidade e doutor em Literatura Brasileira pela USP. Estreou em 1999 com o romance Cobertor de estrelas, traduzido para o espanhol e o galego. Desde então, colabora com textos de ficção em diversas publicações e é autor de romances, novelas e livros infantis. Durante bate-papo mediado por Rogério Pereira no Teatro Paiol, em Curitiba, Lísias falou sobre seu recém-lançado romance, O céu dos suicidas, a relação entre cultura e educação, vulgaridade na literatura, elementos biográficos na ficção, tematização de assuntos relevantes e espinhosos e a literatura como enfrentamento dos discursos dominantes.
• Contra a vulgaridade
Pra mim, ao menos, a ficção serve primeiro como uma espécie de resguardo do mundo de verdade. Quando quero me afastar do mundo de verdade ou acreditar em outras coisas ou procurar outras realidades e ir atrás de novas perspectivas, sobretudo procurando sofisticações maiores do que o dia-a-dia oferece, eu procuro a ficção. Ela oferece uma espécie de fuga possível, às vezes mais sofisticada, de mais bom gosto, um resguardo contra a vulgaridade, contra o mau gosto diário.
• Bom gosto
Eu sou de família classe média típica de São Paulo, de imigrantes. Meu avô é imigrante libanês. E imigrante que não tem muita coisa a oferecer, estudar e dar escola é, às vezes, bastante importante. Tínhamos uma biblioteca muito boa em casa, cultivada um pouco também pela questão de o mundo árabe privilegiar muito as histórias, desde As mil e uma noites até os narradores contemporâneos. Então, na minha casa a leitura era bastante estimulada. Comecei a ler desde cedo; minha mãe tem bastante bom gosto literário. O autor que ela mais gosta sou eu. O que já indica refinamento. Brincadeiras à parte, ela possuía ótimos livros infanto-juvenis e livros de bastante bom gosto. Fui alfabetizado em casa e comecei a ler por essas obras e, enfim, acho que nunca mais parei. O que mais faço é ler, sem dúvida. A minha mãe acumulava os clássicos. Tanto os clássicos dos contos de fada, por exemplo, os clássicos de Grimm, e os brasileiros também, Monteiro Lobato, e muita coisa mais ou menos da década de 1980, tinha aquelas coleções Vagalume, Para gostar de ler. Enfim, minha mãe tinha tudo e eu li todos. Fiquei sempre em torno dos clássicos.
• Formação de leitores
Minha mãe é professora, então acumulou os dois cargos: mãe e professora. Ela foi professora de escola pública bastante tempo, depois virou diretora de escola. Acho um pouco alarmante a pesquisa [Retratos da leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro, que aponta os professores como os principais responsáveis pela formação de leitores], porque se as coisas ficarem só realmente no âmbito escolar, sem o resguardo familiar, ou pelo menos um resguardo de formação, talvez a escola acabe acumulando demais a função. O professor tem evidentemente um objetivo formador, mas como a família tem o objetivo de resguardo, se não houver o resguardo de base, talvez a coisa escolar se perca pelo caminho. Dentro da realidade brasileira, em um país em que mesmo as necessidades básicas e urgentes não estão resguardadas, alguma coisa que exija mais cultivo e um tempo mais longo de formação e de trabalho fica bastante prejudicada.
• Meios distantes
A vida do livro, do autor, de tudo o que cerca o livro e a literatura, tem melhorado. Talvez estejamos indo rumo à profissionalização. Não sei se isso consegue ter um desdobramento e entrar no mundo escolar, não sei se já há esse desdobramento do meio da produção para a escola. Até porque por enquanto a literatura continua dentro da cultura. Considero a educação mais importante do que cultura, é um grupo maior que a cultura. Quando a cultura conseguir entrar no meio educacional, aí sim teremos dado um passo importante. O meio cultural precisa ser encampado pelo meio educacional, e não tenho visto isso acontecer. Tenho visto acontecer um fortalecimento grande do meio cultural, ou uma profissionalização dos meios artísticos ligados à produção da cultura, mas não a entrada disso na educação. Os professores sempre foram importantes, sem a menor dúvida. Infelizmente, a escola fica tão relegada a um segundo plano no Brasil. Não entendo por que não tem um renascimento no meio escolar, seria algo muito mais importante, violentamente mais importante do que renascimento nas artes e na cultura.
• Caminho natural
Fiz faculdade fora de casa, como aquelas pessoas que têm que morar no interior e em república para estudar. Sempre gostei bastante de ler e escrevia como uma espécie de hobbie. Precisei ficar na universidade durante férias de julho, em Campinas, que é uma cidade horrorosa, e não tinha o que fazer à noite. Então, resolvi escrever um pequeno romance durante a noite, para passar o tempo, e já seguindo um projeto que eu tinha. Como fiz faculdade de Letras, estava mais ou menos em meio a consumidores de literatura. Um colega de sala leu o livro e achou legal, gostou, e me estimulou a mandar para uma editora. Eu mandei e acabaram publicando [trata-se de Cobertor de estrelas, publicado pela Rocco em 1999]. Foi algo relacionado de novo ao meio escolar — neste caso, universitário. Como sempre gostei de ler, gostei de escrever, acabou sendo algo natural. Quando tive a aceitação da editora, foi uma coisa muito difícil. Eu era muito novo, tinha 24 anos. Não sabia nem o que era um contrato, nunca tinha assinado contrato de nada, nunca tinha registrado nada em cartório, não tinha nenhuma noção e eu vivi toda a confusão, todo o entulho que vem junto com a publicação do livro. Depois que a coisa passou, percebi que a melhor maneira que eu tinha para viver, a mais eficaz, era pela escrita, escrevendo. E passei a fazer projetos contínuos a partir dali; desde os 26 anos, ou seja, dez anos atrás, escrevo todos os dias, todas as manhãs. Foi algo levado a partir desse incidente inicial. O primeiro livro não tinha nenhum planejamento, nada de muito concreto. Depois, tudo teve um trabalho sólido.
• Lápis e papel almaço
Sempre que estou escrevendo um livro, sempre que ele já está planejado, eu acordo de manhã e faço toda a parte da obra que tenho planejada para aquele dia. E só começo as atividades diárias quando consigo encerrar aquela parte. Escrevo todo dia, pela manhã. Escrevo a mão e a lápis. Tenho, evidentemente, computador. Escrevo em folha de papel almaço. Quando encerro, uma das tarefas diárias é digitar; a primeira parte da revisão já é feita quando passo da folha de almaço para o computador. É muito lento. O céu dos suicidas tem 186 páginas, o que dá 90 páginas de papel almaço. Eu só não escrevo quando acontece alguma coisa muito ruim que me impeça, algo muito grave mesmo. Pode parecer muito tedioso, na verdade. Mas acho bem legal, pra mim é bem agradável. Isso se dá há mais ou menos dez anos, mas a maioria das coisas eu joguei fora, tudo fica perdido nesse caminho. Escrevi O céu dos suicidas em 11 meses. Todos os dias. Ano passado, não escrevi no dia em que me divorciei e no dia em que meu avô foi internado. Só foram dois dias. Bom, escrevi pelo menos 330 laudas, só sobraram 90. Então, aproveitei um terço.
• Saí correndo
No começo do segundo semestre de 2011, tive uma espécie de incidente biográfico que causou o meu divórcio, que não saiu na revista Caras mas ficou famoso. Ficou famoso porque escrevi dois textos que foram publicados em uma revista de grande circulação [piauí]. Não sei dizer exatamente que tipo de problema, foi uma espécie de problema psicológico mais ou menos grave, e eu faço psicanálise há bastante tempo. Estava bem mal, numa situação bem estranha, e o psicanalista falou: ou você toma remédio ou vai ter que fazer alguma coisa rotineira, que cause esforço. Falei pra ele: bom, mas eu escrevo toda manhã, você quer uma rotina maior que essa, que me cause um esforço? Ele disse que não, tinha que ser um trabalho físico. Então, comecei a correr e escrevi esse conto, enfim, um texto de ficção que foi publicado na revista piauí em janeiro. E agora sou colunista de corrida de uma revista especializada. E estou ficando bastante bom nisso. Não, não muito bom, mais ou menos.
• Ao psicanalista
Metade do livro [O céu dos suicidas] estava feito até esse fantástico incidente. Enfim, tive um colapso visível e o meu psicanalista [Tales Ab’Saber] acabou salvando a situação. Achei que devia o livro a ele, porque a segunda metade escrevi já sob parte do tratamento a que eu estava me submetendo. Meu psicanalista é cineasta e gosta bastante de literatura. Então, resolvi agradecer a ele. O personagem ofende o psicanalista, briga, não faz nada que funcione. Mas o personagem do livro, ainda que tenha o meu nome, não sou eu. E não é um livro biográfico, é um romance, realmente, com quase tudo ficcional. É por isso também que resolvi homenagear o meu psicanalista, para ele não ficar magoado com a violência que eu estava fazendo com a categoria dele.
• Real na ficção
O motor inicial do romance é o suicídio, em 2008, de um dos meus melhores amigos desde o tempo da faculdade. Nessa época, eu estava encerrando outro romance. Eu me vi na situação de ter que continuar escrevendo e não conseguir escrever sobre outra coisa. Tentei escrever sobre o suicídio de maneira não-ficcional, de maneira ensaística, não deu certo; tentei escrever sob o ponto de vista de um suicida, também não deu certo; até que eu consegui essa forma, que é um cara enxergando o suicídio de um grande amigo. Isso é verdadeiro. Mas somente parto de um fato verdadeiro. Posso estar mentindo e ser tudo verdade. Ou pode ser tudo mentira. A vida do autor está sempre no texto, mas ela não está da maneira como as pessoas pensam. Este é o problema: as pessoas ficam tentando achar coisas que estão absolutamente fora… Se você ler o meu livro, e espero que leia, o narrador é nervoso, é inteiramente tenso. Eu não sou uma pessoa tensa, e o narrador é extremamente ansioso. A gente não acha, embora lá esteja, mas tenho que colocar também coisas mais políticas, coisas importantes. Para falar de temas tabus, escrevi dois contos, que foram publicados na revista piauí, sobre um tema mais tabu ainda que o suicídio — o divórcio.
• Leitura simplificada
O principal risco de um livro como O céu dos suicidas é acharem que o personagem é realmente você. Por exemplo, minha mãe acha que todo esse negócio aconteceu de fato, mesmo as passagens em que ela entra e que eu falo para ela: “mas você fez isso?”. “Você não fez isso, isso não aconteceu.” Ela já acha que aconteceu. Então, tem um problema inerente à leitura, de as pessoas fazerem uma leitura mais imediata. Porque uma coisa é fato: se eu escrever e contar o que aconteceu hoje, não é mais o que aconteceu hoje. Tem a mediação da linguagem que modificou tudo. Mas isso não é algo que as pessoas no Brasil dêem conta. A maior parte das pessoas ainda lê literatura como se estivesse lendo a literatura realista, do século 19, do romance realista. Esse é o principal risco da má leitura. Não sei se é uma má leitura, mas uma leitura muito simplificada.
• Apropriar-se do livro
O bom leitor é aquele que consegue trazer o texto para os interesses dele mesmo. E de uma maneira enriquecedora, e não empobrecedora. É difícil, mas não gostaria que as pessoas ficassem buscando o que de fato aconteceu em O céu dos suicidas. A palavra “verdade”, por exemplo, é uma que não deveria ser utilizada nesse meio. As pessoas precisariam tentar procurar — no que eu mais me esforcei — primeiro o aspecto artístico, depois uma questão pessoal delas, não minha. Quando as pessoas lêem literatura, elas precisam esquecer um pouco o autor e colocar elas mesmas como importantes.
• Cruel
Gostaria que as pessoas fossem menos cruéis com os suicidas. Não sei se é isso que eu gostaria que as pessoas lessem no livro, mas o livro foi escrito porque eu achava as pessoas muito cruéis com o meu amigo. Por enquanto, estou feliz com a recepção. Li textos religiosos sobre o suicídio e fiquei muito espantado com o grau de violência com que as religiões tratam os suicidas. Por exemplo, a psicologia está muito mais adiantada nesse assunto do que a religião. Então, nos textos religiosos, que mexem muito com as pessoas, o grau de violência com que os suicidas são tratados é espantoso. Ou o grau de indiferença, as pessoas tentando entender “como ele fez isso com a gente?”, que é uma frase muito falada, “que absurdo”, “que coisa covarde”. Eu não acho que seja covarde. Pelo contrário, acho que é um ato muito corajoso, muito forte; é um ato de força, às vezes, de violência. Gostaria de um pouco mais de compreensão, talvez. Compreensão não é uma palavra boa, porque não dá para saber os reais motivos do suicida. Talvez de menos violência.
• Fundamental à escrita
Concentração e técnica — pelo menos pra mim. Concentração, técnica, nenhuma concessão, radicalismo com a forma, nenhuma concessão com o público, nem com o glamour, nem com o meio literário. Acho que coisas desse gênero. Mas se fosse escolher uma palavra, escolheria concentração.
• Exposição excessiva
Tem uma coisa importante nisso que é o seguinte: o escritor, antes de ser escritor, é um ser humano. Ele tem amigos, tem família… A maior parte dos meus amigos não faz parte do meio literário, não é escritor, não é editor nem nada, é de outro meio, são colegas de escola, colegas antigos. Então, muitas das coisas que os autores fazem estão envolvidas nesses aspectos de vida — conversar com os amigos, saber onde está o irmão, etc. Como alguns autores se colocam eles mesmos em uma espécie de manto sagrado, para se colocar fora da sociedade, acabam construindo pessoas especiais. Tenho um perfil no Facebook e fico fazendo coisas mais ou menos normais, como falar com meu irmão, que mora em outro país. Os autores deveriam realmente se concentrar na redação dos livros. Mas hoje em dia, no Brasil, como a profissionalização está ficando muito grande, como há muitos prêmios literários, muitas oportunidades, muito mais formas de aparecer, de espaços a serem ocupados, eles parecem muito ansiosos — e ansiedade provavelmente é a pior coisa do mundo — por ocupar todos os espaços o tempo inteiro. E aí escrevem em sala de embarque de aeroporto — é a geração sala de embarque. Isso tem causado certo congestionamento.
• Literatura na internet
Eu não leio muito blog. A internet só vai virar uma arte particular quando ela não puder ser impressa. Porque senão ela só é texto chapado, em outro meio. A partir do momento em que forem usados os próprios mecanismos da internet, ela vira uma arte particular. Mas eu nunca achei, no Brasil, coisas em português, que gerassem esse… O que encontro são alguns sites bons. Considero uma coisa boa, por exemplo, a veiculação de conteúdo que pode chegar a alguns lugares que textos impressos não chegariam. Isso é excelente. Divulgação de conteúdo, acho bom, mas produção artística, eu ainda não vejo.
• Leitura fragmentada
Acho isso bobagem. Fragmento na literatura existe desde a década de 1940. O autor que estou substituindo [Ivan Angelo] aqui no Paiol Literário escreveu um romance fragmentado na década de 1970 [A festa], quando a internet era um sonho que nem aparecia. Então, acho que isso é uma constituição de um discurso anterior a saber o que vai acontecer, acho que a internet é tão nova que não é possível saber ainda quais são os resultados que ela pode causar. A internet tem uma importância fundamental, por exemplo, política: nesses espalhamentos de manifestações, chegadas de informações menos chapadas, porque se a gente for depender dos meios de imprensa grandes e tradicionais, só vai receber um lado da história, que é o lado de quem está pagando o anúncio. Nesse caso, da democratização do conhecimento, a internet é excelente.
• Tateando
Aos poucos estamos perdendo a vergonha de sermos brasileiros, ou de dizer que somos brasileiros, muito embora isso, para mim pelo menos, ainda cause bastante constrangimento diante de todos os acontecimentos da história recente. Um governo como Collor é um vexame, Sarney também. Um nome como Sarney é um vexame para a nação; e ainda está lá, só piora a situação. Aos poucos o país tem tentado melhorar um pouco. Como O céu dos suicidas é muito subjetivo, trata da tentativa de uma pessoa de entender o suicídio de outra muito próxima, os aspectos políticos ficaram de lado, mas eles estão ali, latentes. Acho que o Brasil ainda tem um longo caminho. O Brasil forma bons marqueteiros, políticos dizendo que as coisas estão ótimas, melhores. Mas elas não estão tão bem assim, estamos melhorando, talvez um pouco. Mas somos um país ainda tateando em muita coisa. A arte brasileira é uma arte que, em alguns pontos, é uma arte boa, rica. A música, alguns pontos das artes plásticas, momentos da literatura. Nosso grande problema é a política mesmo, os políticos. Um vexame enorme.
• O que me move
A tentativa de entender o que seria relevante. Tentar achar temas relevantes para tratar. Como a produção literária acabou se tornando uma coisa muito importante para mim, não gostaria de perder isso com irrelevâncias. A identificação de temas relevantes é um dos pontos-chave no meu trabalho. Em primeiro lugar, quero fugir da vulgaridade, fugir do dia-a-dia comezinho. Procuro um tipo de discurso que tenha alguma sofisticação técnica, que possa dar conta da relevância que encontro no assunto. Mas o principal é uma fuga da vulgaridade.
• Literatura vulgar
Uma literatura vulgar se caracteriza pela preocupação excessiva com o próprio umbigo, por exemplo, a falta de preocupação com o outro, uma facilidade no discurso, uma facilidade formal muito grande, a tentativa de barateamento da linguagem, a tentativa de barateamento ideológico, a falta de resistência aos discursos dominantes, a covardia de enfrentar discursos realmente fortes, a entrega ao discurso oficial.
• Barateamento
Acredito que há dois tipos de autores. Existe um grupo de autores que se entregou a esse chamado discurso oficial, que é uma literatura cujos livros não consigo ler até o final. Uma literatura de que não gosto nem um pouco é a chamada literatura da violência urbana — a literatura do tiro, do revólver, da facada, de São Paulo está em guerra… Em primeiro lugar porque essa literatura é ideologicamente mentirosa. A cidade de São Paulo, as cidades em geral no Brasil, elas não são violentas dependendo do lugar em que você estiver. Em São Paulo, dependendo do local em que você estiver, é mais violenta que a Faixa de Gaza, isso é um fato; dependendo do lugar em que você estiver em São Paulo, ela é uma cidade mais segura ou tão segura quanto uma da Bélgica. Por que houve então a criação de que São Paulo é uma cidade extremamente violenta — sendo que ela não é em 100% dos lugares? Porque é o discurso que importa à classe média, que é a classe consumidora de livros. A classe média paulistana morre de medo de ser assaltada, seqüestrada, estuprada — todo esse tipo de tragédia, dessa loucura contemporânea, está nos sonhos da classe média. Os autores que se entregaram a isso e acompanham com isso um barateamento da linguagem, são extremamente preconceitos com as classes não-escolarizadas, com as classes baixas. Acho isso uma queda de nível violenta.
• Ensaio
E tem divisão com uma literatura que procura um nível mais alto, um nível de explicações mais sofisticadas, um nível de trabalho de linguagem mais elevado. Aí acredito que temos obtido resultados razoáveis. Cristovão Tezza é um bom autor; O filho eterno é um livro bem importante na literatura brasileira. Há vários autores começando a ensaiar uma resistência a esse barateamento. Julián Fuks, por exemplo, é um bom autor. Acho Bernardo Carvalho, não em todos os livros, mas em alguns, um bom autor. Há vários que tentam fazer isso. Mas como coesão, como literatura formada, estamos muito atrás, por exemplo, de uma escola como a argentina ou mesmo a portuguesa.
• Elemento decisivo
A forma do texto precisa acompanhar a narrativa pretendida. E a narrativa de O livro dos mandarins era muito elástica, se dá em alguns continentes, com acontecimentos bastante longos, historicamente falando, conseqüências muito sérias. Então, precisei ocupar mais tempo, ele era menos pontual. É uma questão de tentar adequar a forma à narrativa. Esse é o segredo de quem é escritor e de quem não é. Porque, por exemplo, técnica, podemos ensinar. Podemos ensinar todo o tipo de técnica narrativa. Só não podemos ensinar o momento em que há alguma coisa dentro da gente que mostra que aquilo deu certo, e que essa folha eu não vou jogar fora, eu vou jogar a da semana passada, eu vou jogar todo o trabalho do mês passado, mas não vou jogar essa daqui. Acho que esse é o grande lance que faz o artista ser o artista e o outro ser apenas o técnico, dotado de técnica. Isso é decisivo. É intuitivo, eu acho.
• Oficinas de criação
Acho ótimo. Em primeiro lugar, tudo que pode gerar um emprego para alguém já é bom, já ajuda em alguma coisa. Em segundo lugar, num contexto como o brasileiro, é bem possível que haja artistas perdidos nos mais diversos cantos e que talvez nunca sejam identificados. E quando, por exemplo, uma biblioteca oferece algum tipo de atividade que faça com que aflore o talento artístico, que pelo menos dê essa oportunidade, isso também é bastante bom. Como técnica é uma coisa facilmente ensinável, isso pode ter um trabalho social bastante importante. Mas o trabalho principal, político e social, é identificar a pessoa. Por isso, acho que a pessoa que estiver conduzindo a oficina precisa ser até bastante honesta para perceber quando está diante de um talento real — que é uma coisa rara, mas precisam ser dadas as oportunidades para que esses talentos apareçam. Porque em outras sociedades, sociedades mais desenvolvidas, é muito mais simples as pessoas conseguirem fazer com que seus talentos apareçam. Fico imaginando quantos são os artistas na periferia que se perdem porque não têm oportunidades de que seus textos cheguem a alguém que leia, porque nenhuma editora vai ler um texto que não seja digitado; e se não estiver em português compreensível, não vai ser lido. Então, se a pessoa consegue acesso a uma oficina, pode conseguir libertar esse talento possivelmente existente. Acho que a questão política é bastante importante.
• Tematizar o suicídio
Sou bastante tímido, mas não quando escrevo. Porque aí consigo me manifestar da melhor maneira. Na arte não cabe timidez e não cabe medo. Antes daqui, apresentei O céu dos suicidas em dois lugares. Em ambos, tive problemas; num deles, quase fui agredido. Mas é um assunto realmente muito difícil — a menos que as pessoas tenham vivido isso muito proximamente, porque aí sabemos qual é o grau de crueldade e de ignorância — também porque é totalmente tratado com ignorância a partir até da ignorância principal, porque simplesmente não sabemos para onde as pessoas vão após a morte, não sabemos o que leva uma pessoa a cometer suicídio. E nunca vamos saber. Tenho a impressão de que isso causa uma dificuldade na cabeça das pessoas que desejam achar explicação para tudo e se desesperam com o que elas não podem saber. E como esse é um dos assuntos decisivos que ninguém vai poder saber, começa a causar esse tipo de reação obscura e violenta. Vivi realmente o problema de enfrentar esse assunto que seria mais ou menos espinhoso. Mas quando o livro chegou à editora, foi tratado tranqüilamente, tem sido tratado tranqüilamente pela imprensa… Não sei qual é a reação do público, mas em uma semana o livro já está esgotado em São Paulo. Então, tem ido mais ou menos bem.
• Enfrentamento
A arte precisa enfrentar realmente os tabus. A literatura brasileira ainda é uma literatura tímida, com exceção de alguns momentos pontuais em que ela é muito ousada. O autor não pode se preocupar com a recepção do seu livro. A recepção é um momento posterior à criação. O livro é o que eu podia fazer naquele momento. Quando terminei O livro dos mandarins, voltei aos meus projetos e percebi que o tema do suicídio voltava o tempo inteiro. Ou seja, se não fosse para escrever sobre esse assunto, não poderia mais escrever. É preciso enfrentar os tabus, realmente. É preciso falar das coisas difíceis, e a arte, a literatura tem um pouco essa função de falar das coisas que os outros discursos não falam e enfrentar o discurso dominante.
• Modos de narrar
Trabalho por projetos. Antes de iniciar um projeto de redação propriamente dito do livro, vou fazendo planejamentos e testes. Esse livro [O céu dos suicidas] é curioso porque cheguei inclusive a publicar alguns testes, alguns textos preparatórios a ele foram publicados no Suplemento Pernambuco. Faço um plano do livro — evidentemente não o plano todo, mas um plano bem avançado do livro —, até que inicio o trabalho de redação. Quando inicio o trabalho de redação, esse plano pode não dar certo. O resultado final é se ele me agrada ou não, se faz parte desse projeto maior que estou tentando realizar. E aí ele precisa caminhar. A figura central é a do narrador. Quando fiz o primeiro planejamento, estava ainda muito voltado à imagem do meu amigo, e havia uma questão psíquica minha que era recair nesse erro de tentar entender o que foi que aconteceu. Então, pensei: vou me colocar no lugar dele, ou de uma pessoa que se mata. Fiz um enorme planejamento, leituras, criei as personagens, estabeleci o narrador, e na hora em que fui tornar todo esse invólucro texto, não consegui. O texto não caminhou, não conseguia gerar a obra. Percebi que o principal motivo era justamente eu estar tentando entender alguma coisa fora do meu campo de possibilidades. Porque no meu livro anterior, O livro dos mandarins, o narrador é um executivo — coisa que eu evidentemente nunca fui. Mas sobre um executivo, posso pesquisar como funciona, posso ler os textos que eles lêem, conversar com eles, saber as razões deles, entrar no mundo deles, espioná-los, uma série de coisas que me faz entrar no mundo deles. Já num assunto bem mais complexo como o do suicídio, não posso, por um impedimento de ordem óbvia. Percebi que simplesmente o assunto não andava. Aí, troquei a voz narrativa por um narrador tentando entender o que está acontecendo não com o suicida, mas com ele. E aí acontece uma série de problemas, ele briga com todo mundo, arruma confusão com todo mundo, apanha muito no livro inteiro, arruma briga sem parar. Quando vi que o narrador já andava, segundo esse novo estabelecimento desse novo plano, é que engrenei. Ou seja, há um momento em que a obra — que é o momento decisivo em que ela passa a ser feita — é feita ou não é feita.
• Inversamente proporcional
Um escritor bem famoso, bem importante, que está sempre na lista para ganhar o Prêmio Nobel, foi convidado para vir a um evento bem importante no Brasil e ele recusou, disse “ah, eu não vou. E o motivo é que não suporto lugar que tenha mais de dois escritores e vocês querem que eu passe mais de uma semana com 40, esses caras são insuportáveis”. Há um problema também de o autor encarnar uma espécie de persona, achando que aquilo vai gerar uma figura literária maior do que ele geraria de fato. Poetas, por exemplo, eles sempre arrumam brigas. Tenho um amigo, que é muito meu amigo, que é completamente maluco como escritor, arruma briga em todos os lugares que pensa que vai ser importante para ele. Então, existe essa questão de o autor assumir uma espécie de persona. Mas vou dizer uma coisa, posso fazer uma aposta e estar errado: quanto mais o cara é teatral, pior ele escreve. Pode escrever isso, pode fazer essa pesquisa que você vai ver. Ou, então, ele entrou em decadência, o que é possível também. E precisa fazer no corpo uma espécie de teatro dos autores. Mas no meu caso não. Porque, como as pessoas saíram de casa, perderam esse tempo, vieram aqui, tento fazer o melhor possível.