O segundo encontro da 12ª temporada do Paiol Literário contou com a presença do romancista e contista Rafael Gallo. O escritor nascido em São Paulo surgiu no meio literário após vencer o Prêmio Sesc de Literatura com o livro de contos Réveillon e outros dias (2012). Desde então, outros dois livros seus foram premiados em importantes concursos no Brasil e no exterior.
Seu primeiro romance, Rebentar (2015), venceu o Prêmio São Paulo de Literatura. Já Dor fantasma (2023) levou o Prêmio José Saramago. Neste ano, o escritor, que vive atualmente em Portugal, voltou aos contos ao lançar a coletânea Cavalos no escuro (Record, 2024).
O Paiol Literário é idealizado por Rogério Pereira e realizado pelo Rascunho desde 2006. O patrocínio desta temporada é da Redecard, empresa do grupo Itaú Unibanco, por meio da Lei Rouanet, e os encontros são online, com transmissão pelo YouTube.
• Aprendizado das emoções
Para mim, a leitura e a escrita foram fundamentais porque fizeram parte da minha formação intelectual e afetiva. Principalmente para alguém, como eu, que era um garoto tímido, tinha muita dificuldade até de se comunicar com outras pessoas, porque eu vivia uma vida muito restrita em certos aspectos. Então a leitura foi uma grande abertura, um grande aprendizado, ver outras possibilidades de vida, outras visões de mundo. Um verdadeiro aprendizado das emoções e da vida como um todo.
• Fruição
A ampliação disso tudo, que nos constitui, que vai nos construindo, vem muito das histórias. Isso tudo é muito rico. É difícil defender que não ter isso na vida poderia ser indiferente. Fora o prazer da fruição, ler uma boa história, uma frase bem escrita, diferente, uma palavra inusitada, tudo isso, para mim, é um aumento da experiência de vida.
• Mesmo caldo
Até hoje não diferencio a literatura de outras manifestações artísticas. Os primeiros livros que eu pegava na biblioteca da escola, gostei mais por conta das ilustrações. Porque gostava muito de ilustrações quando era pequeno. Então, para mim, aquilo tinha uma relação com, por exemplo, desenhos animados a que assistia na tevê. Não era diferente. Ou histórias em quadrinhos. Tudo isso era quase que o mesmo caldo para mim. Manifestações um pouco distintas, porém o que me atraía era o mundo imaginativo, esse mundo criativo, essa possibilidade de criar coisas do inusitado.
• Tudo junto
De uma certa forma até hoje é assim. Passei, ao longo da vida, por esse interesse em desenho, depois muito pela música, especialmente na adolescência e juventude, e hoje sou mais focado na literatura, mas tem sempre esses outros meios criativos que também são muito instigantes.
• Turma da Mônica
Não fui um grande leitor precoce. Aquela coisa: “Com dez anos eu lia Dostoiévski”. Não, com dez anos eu lia histórias em quadrinhos da Turma da Mônica, dos super-heróis da Marvel, porque eu gostava dos desenhos, mas também já estava gostando das histórias, dos personagens.
• Música
Quando começo a crescer e a amadurecer, vou para a música. No Brasil, a música popular é provavelmente a forma de arte que mais vicejou. Uma forma de arte em que o Brasil conseguiu ter uma coisa muito sua, própria, poderosa, com Chico Buarque, Aldir Blanc, Gilberto Gil, Caetano Veloso. Lia as letras deles e adorava. Um poema, uma letra, um livro, um romance… isso tudo para mim fazia parte da mesma coisa.
• Bandeira e Clarice
Só que a literatura foi entrando cada vez mais na minha vida, em especial, por conta da famigerada lista do vestibular. Para mim, funcionou naquela época. Não tudo, teve leituras que eu fiz por obrigação e não gostei. Mas estavam ali Libertinagem, do Manuel Bandeira, A hora da estrela, da Clarice Lispector. Livros que me pegaram em cheio.
• Participar da conversa
Esse é o momento em que falo: “Isso aqui agora vai seguir comigo para sempre”. A partir dessas leituras veio o desejo de escrever. Porque essa criatividade era o meu universo, era a minha conversa com o mundo, eu queria fazer parte da conversa, não queria só receber dos outros, também queria me manifestar. Tanto que, quando eu gostava de música, também compunha, quando gostava de desenho, desenhava. Com a literatura, chegou uma hora em que também queria escrever. Não era um projeto de vida ser escritor, mas uma coisa que foi acontecendo no meio desses interesses múltiplos.
• Paixão
A literatura ter me pegado de vez pela lista do vestibular, tem relação com o fato de eu já ser uma pessoa criativa, imaginativa, um garoto que gostava disso há um tempo. Mas há também uma relação com o fato de eu ter tido bons professores de literatura no ensino médio, eram professores que eu via que gostavam daquilo. Sempre lembro disso quando as pessoas perguntam: “Ah, mas como é que a gente faz para encorajar os jovens a ler, para estimular?”. Não tem nada que estimule outra pessoa a fazer aquilo. Mas quando você vê pessoas que têm paixão pela leitura, isso te contamina também.
• Outros mestres
Também tive um professor de música que foi muito importante. Ele tinha esse lado mais intelectual, mais global, digamos, no sentido de que ele é um professor de música, mas conhece literatura, conhece filosofia, então ele me trazia coisas novas. Acho que me identificava com essas figuras, era como eu queria ser. Por exemplo, mesmo na música, não queria ser só um grande instrumentista. Nunca tive muita paciência para ficar tocando instrumento, estudando. Eu queria fazer uma canção que tivesse uma letra especial, bonita, uma letra sagaz, e tivesse uma ideia, uma visão de mundo diferente. Então tinha um pouco essa visão mais global das coisas.
• Mundos imaginários
Eu tinha uma vida muito restrita, uma vida de muitos nãos. E, de repente, com a literatura, parecia que havia uma liberdade maior, uma invocação à liberdade, em que tudo pode ser diferente, não tem essas regras tão estabelecidas como na vida, não está tão fechado. Mesmo as palavras podem ter outros sentidos, elas podem ser usadas de outra maneira. Podem ser muitas outras coisas, isso sempre me instigou. E o lado composicional também da coisa. Tenho isso com tudo, gosto de aprender sobre cinema, por exemplo, o corte, a posição da câmera, a paleta de cores, como é construída a história.
• Leitura
Hoje em dia há uma coisa que tem me frustrado um pouco. Para mim a literatura sempre foi um terreno de liberdade, mas como ela passou a ser muito central, em termos de ofício, na minha vida — até meu doutorado tem relação com a literatura —, acaba que às vezes eu leio muita coisa por obrigação. E às vezes vejo que estou formando uma fila de leitura, e que é tudo por alguma questão. “Ah, vou ler esse livro por causa do doutorado, porque ele vai ser trabalhado numa certa disciplina; depois dele eu vou ler aquele outro, porque vou fazer um evento num lugar X, e eu tenho que ler por causa do tema, por causa do convidado, alguma coisa assim; e depois eu vou ler um outro, porque me pediram para escrever uma resenha para um veículo, etc.” Percebo que faz tempo que não leio um livro que eu escolhi, e isso me pega um pouco.
• Lendo os contemporâneos
Tenho buscado conhecer mais coisas novas da literatura contemporânea. Tenho lido muito mais a literatura atual, de escritoras e escritores vivos, do que os clássicos. Às vezes até leio um clássico, daquelas lacunas, que ainda não li. Mas tenho lido muito mais os contemporâneos.
• Instigado
E também sempre as leituras por conta do trabalho. Eu sei que tem gente que fala: “Vou escrever um romance e não quero ler coisas parecidas, ou com o mesmo tema, para não me influenciar”. Para mim é o contrário. Eu quero ler o máximo possível sobre aquele tema, ou coisas de linguagem, que eu acho que estão relacionadas, porque aquilo me alimenta, me instiga. A cada trabalho novo que começo, um romance, por exemplo, separo dezenas de livros para ler, por causa do tema.
• Olhar do escritor
O olhar do escritor é inevitável, não tem mais como ler algo sem ter um pouco esse olhar. Mas não entro num livro com essa postura de avaliador, de sommelier. Tento ir mais inclinado a esse lado do leitor, do menino que gosta de tudo e que quer ler uma boa história, uma boa frase, uma boa construção. Mas é claro, o que esse menino vai chamar de “uma boa construção” já é com o olhar do escritor também.
• Escape
O gosto pela literatura aconteceu ao longo da adolescência. Escrevia coisas para me declarar a um amor platônico, etc. Depois fiz algumas incursões, de brincadeira, coisas que não eram nem conto, nem crônica, nem trecho de romance. Já na música, a coisa ia muito para o lado de escrever letras, era algo bastante importante para mim. Mas quando comecei a trabalhar com música, isso virou um trabalho, inclusive porque fiz mais coisas de que eu não gostava do que coisas de que gostava, trabalhando com trilhas, com audiovisual. E aí a literatura começou a voltar como um escape.
• Contos
Comecei a escrever dezenas de contos. E chegou um ponto em que percebi que estava melhorando. Pensei, vou tentar ver como é que me saio se realmente escrever a sério. Se parar e pensar na estrutura do texto e não querer resolver o conto em um tarde, levar um tempo escrevendo. Comecei a ler textos sobre escrita, textos do Cortázar sobre literatura, outros autores pensando sobre escrita, etc. Então comecei a pensar em um livro que tivesse dez contos. Vários livros de contos que eu adorava tinham dez contos.
• Meio editorial
Mas eu não conhecia nada do meio editorial, como funcionava, não sabia quem eram os editores. Eu mal conhecia a literatura atual. Aí comecei a pegar algumas editoras, ia nas lombadas dos livros… vi que tinha a Record, a Rocco, a Companhia das Letras, etc. Então entrava lá nos sites, pegava aqueles e-mails com o endereço “originais arroba editora” e mandava. Claro que nunca tive retorno.
• Concursos
Aí descobri que havia alguns concursos. E pensei, “vou começar a mandar meu livro”. E de novo, mandei para dezenas de lugares e nunca ganhei nenhum. Nem aquelas coisas de honra ao mérito, sabe? Nem no concurso da prefeitura da cidade mais minúscula… tinham 30 nomes no honra ao mérito, e eu nunca estava lá. Eu ia mandando os contos que estavam no livro. Então já estava jogando a toalha. Acho que isso aqui não é para mim, pensei. E aí, o Prêmio Sesc foi o último que tentei. Era o que eu mais queria. Pensei, “esse aqui seria bom, ser publicado pela Record, você faz o circuito, viaja com o Sesc”. Mas mandei já pensando que, se eu não tinha ganhado nem o das prefeituras, não ganharia o do Prêmio Sesc, que era nacional. E no fim eu ganhei. Mas só quando peguei meu livro na mão [Réveillon e outros dias, 2012], lá na cerimônia de premiação, que pensei: “Agora realmente então eu sou um escritor”.
• Mudança no mercado
Lancei Réveillon e outros dias em 2012. Desde então, nesses 12 anos, parece que as coisas mudaram completamente. De Dor fantasma, que lancei em 2023, ao meu livro anterior, que foi Rebentar, de 2015, parece que é outro universo. Comparo com a música: antigamente se lançava um disco, e era uma comoção. Hoje o artista lança no streaming e ninguém ouve falar, talvez só um nicho de fãs. Não é aquela coisa de estreia do clipe no Fantástico, onde todo mundo assistia, no dia seguinte, na escola, no trabalho, todo mundo comentava aquele clipe. Acho que tudo mudou, se pulverizou. Não sei é mais fácil ou difícil hoje, acho que cada época tem seus desafios.
• Outro nó
Para quem quer publicar, hoje os caminhos estão mais conhecidos e acessíveis, há mais possibilidades. O problema é que todo mundo tem acesso a isso. Então o nó passa a ser em outro lugar. O nó não está mais em conseguir publicar, mas em como, uma vez publicado, conseguir que esse livro circule, seja lido e não se perca naquela Biblioteca de Babel que o Borges fala, em que há todos os livros, é infinita, e por ser infinita você acaba não lendo nada. As pessoas hoje também são mais bem informadas. Eu sei porque dou oficinas, e vejo que a pessoa chega à oficina e já sabe tudo sobre quem é quem no mercado editorial.
• Ansiedade
Se antigamente, nas décadas de 1960 ou 1970, publicar um livro era uma realização tremenda para um escritor, hoje você é mais um entre os milhares que também publicaram. E eles não só publicaram, mas são finalistas de um prêmio. E olha só, o ator da Globo fez uma foto segurando aquele livro, isso tudo vai diminuindo você perante esse mundo. Eu digo isso também por mim, também lido com isso, há momentos em que olho e digo, “poxa, podia acontecer alguma coisa melhor comigo”.
• Trama
Para mim o enredo é o personagem e o personagem é o enredo. Uma vez que você começa a desenhar um deles, já começa a te dar a resposta do outro. Às vezes falo isso nas oficinas. Você pode ter aquela história mais clichê, mais batida: uma pessoa ficou presa numa ilha deserta. Se essa pessoa é um bombeiro com um treinamento de sobrevivência na selva, é uma história completamente diferente que seria se esse personagem, que ficou preso ali, fosse um milionário que sempre teve tudo servido para ele, não sabe fazer nada, mas sempre se achou o máximo. Como é diferente se é uma mulher grávida de gêmeos em gestação. Quer dizer, tudo isso vai trazer questões muito diferentes, e vai levar a sua história para lugares diferentes. Então, não tem uma coisa ou outra, é sempre o encontro das duas: enredo e personagem.
• Dor fantasma
Dor fantasma representou um embate meu com o personagem Rômulo Castelo, que é um cara perfeccionista. Acho que as pessoas podem falar mil coisas sobre meu livro, têm todo do direito de não gostar, mas acho que dificilmente alguém diria que o livro é esculhambado, malcuidado, dá para ver o cuidado ali. Mas depois desse livro, acreditei que ia me libertar um pouco disso, quis acreditar por um tempo que poderia tirar um pouco esse rigor, essa coisa obcecada, que é mais forte do que eu. Não sinto que tenho facilidade, nem me sinto particularmente talentoso, aquela coisa de “eu escrevo e é isso que sai, é maravilhoso”. Na verdade, foi muito esforço e até sofrimento. Porque foi realmente um embate e muita insatisfação, muita exigência, muita sensação de que não está bom o bastante, sabe? Então não tenho um relaxamento e um prazer na escrita. Para mim esse prazer é raro. É escrever, escrever, escrever e, de repente, achar uma coisa interessante. Mas a sensação é sempre de que é muito esforço para pouca recompensa. • Fracasso Não quero acreditar que a literatura está fadada ao fracasso, mas ela tem, sim, uma dose bastante grande de fracasso. Acho que é preciso lidar com isso, não o fracasso definitivo, o fracasso último, o fracasso que te abala a ponto de você parar, mas acho que você tem que ter essa resistência mesmo.
• Rebentar
Quando escrevi Rebentar pela primeira vez, achei que tinha feito o melhor que podia. Mas conforme os anos se passaram, e em especial depois de uma grande transformação pessoal que sofri, lá por 2020, 2021, olhei para o Rebentar e comecei a não gostar muito dele. Pensei assim: “Poxa, essa história é muito importante para mim, eu quero muito que ela seja bem contada, mas hoje em dia eu acho que ela não é”. Quando alguém falava que ia ler Rebentar, ou que estava lendo, eu tinha um pouco de vergonha. Metade de mim ficava contente porque a pessoa estava lendo meu livro; a outra metade ficava com vergonha. Sei que muita gente fala, “é primeiro romance, eu também não gosto do meu primeiro livro hoje em dia, mas tudo bem, passa, a gente escreve o próximo…” Mas me importo demais.
• Reescrita de Rebentar
Depois que venci o Prêmio Saramago, minha moral aumentou um pouco e eu consegui convencer a Record a publicar uma nova versão do livro. Essa ideia já me acompanhava havia um tempão. Eu pensava que uns 10, 15 anos depois da primeira edição, se houvesse uma reedição do livro, iria aproveitar para reescrevê-lo. Surgiu essa oportunidade e eu o reescrevi.
• Livros pessoais
Tanto Rebentar quanto Dor fantasma são livros extremamente pessoais. O tema sobre o qual escolho escrever é sempre um assunto que levaria para a minha psicóloga naquele momento. Só que se eu contar essa história sob a minha perspectiva de vida, vai ser um livro muito sem graça, porque não tenho uma vida de grandes feitos. Então encontro alguma personagem que, na verdade, potencialize esse tema, essa questão. Por exemplo, faz parte do Dor fantasma, além de outros temas, a questão da paternidade. Há um espelhamento com o Rebentar na questão dos filhos. No Rebentar, o filho ausente é uma presença absoluta para a mãe; no Dor fantasma, o filho presente é uma ausência absoluta para o pai.
• Depressão
Uma questão que também passa pelo Dor fantasma é que na época eu mudei de trabalho, parei de trabalhar com música, prestei um concurso público e virei um burocrata. Mudei de cidade e fiquei absolutamente infeliz. Tive aí o meu primeiro episódio realmente diagnosticado de depressão, com medicação e tudo. Então eu queria falar também sobre isso, como às vezes você perder a atividade que faz, o ofício com o qual se identifica, te faz perder quem você é. Mas pensei que se eu escrevesse a história de um cara de uns 35 anos, que era a minha idade na época, que passa no concurso público, um concurso em que tem um monte de gente louca pra passar, que seria a glória pra muita gente, e ele fica triste com isso, porque ele tem um emprego agora concursado, garantido, não seria interessante. Acho que ninguém veria essa sinopse na quarta capa e falaria “quero ler esse livro”. Então, um pianista amputado diz melhor sobre essa situação. A ficção diz mais, retrata melhor uma certa realidade do que a própria realidade em si. O material da ficção tem mais potência.
• Ponto de vista pessoal
Já falei algumas vezes que se fosse escrever sobre a situação macropolítica, por exemplo, sobre a extrema direita, esse apocalipse que está acontecendo e tem sido recorrente, provavelmente iria escrever de um ponto de vista muito íntimo. Pegaria aquele político autoritário, que tem um grande poder e que é um cara de extrema direita, e iria entrar na intimidade dele, vê-lo em casa, tomando banho, etc. Dificilmente iria escrever uma análise geopolítica e tudo mais, porque não é como a minha cabeça funciona.
• Período de crise Comecei a escrever Dor fantasma em 2016, e até então eu estava indo em velocidade de cruzeiro: lancei um livro de contos, uns anos depois lancei um romance, e comecei a escrever o Dor fantasma. Minha ideia era publicá-lo e manter esse movimento. Terminei de escrever Dor fantasma no final de 2019 e já entreguei para o editor pensando: “Está acabando o ano, mas pelo menos já entro 2020 com um livro novo na mão”. Só que veio 2020 e tudo parou. Ao mesmo tempo também foi um período de crise pessoal muito grande para mim. Tive uma grande transformação, um período de demolição de mim mesmo. Nesse período Dor fantasma foi deixado de lado. De vez em quando eu fazia uma revisão ou outra e mandava para algumas pessoas lerem. Essas pessoas apontaram erros. E isso também foi muito difícil de lidar, de ver esses erros. E tudo isso foi gerando uma crise cada vez maior. Um buraco onde me meti e era muito difícil de sair. Tanto que passei 2020 e 2021 quase sem escrever. E para os amigos mais próximos eu dizia: “Olha, não escrevo mais, acabou, já vi que não é para mim essa vida”.
• Saramago
E aí aparece o Prêmio José Saramago. Sempre fui um grande fã do prêmio, sei todos os vencedores na ordem, li todos os livros que ganharam, assisti às cerimônias online, etc. Já tinha concorrido com Rebentar e não ganhei. Paciência. Era o sonho da minha vida, mas não ganhei. E eu sabia que o limite de idade era 35 anos. E quando saiu o novo edital do prêmio, em 2021, eu já estava com 40 anos e a única coisa que tinha era um livro não publicado. Quando fui ler o novo edital, para minha surpresa, era para pessoas de 40 anos e com originais. Ou seja, feito para mim. Então disse a mim mesmo que precisava tentar. Dor fantasma já tinha sido recusado por vários editores. Mesmo assim eu o revisei e o mandei para o prêmio. Depois até me arrependi, porque tinha mandado um livro que ninguém tinha gostado e aquela era minha última chance de concorrer ao Prêmio. E no final deu certo, ele ganhou o prêmio.
• Futuro
Estou escrevendo um novo romance. E de novo é um romance com personagens diferentes de mim, mas muito pessoal, muito a partir de uma questão que me deixa desassossegado. É o meu projeto principal agora. Na verdade, também tenho que lidar com o meu doutorado, escrever minha tese. Tem um outro projeto sobre o qual não posso falar ainda, mas que também é um livro — mas é um pouco diferente, já sai um pouco da literatura. Desse romance, posso adiantar que ele lida com saúde mental. Eu mencionei anteriormente a depressão, que entrou na minha vida quando estava escrevendo Dor fantasma, então acho que agora é o momento de falar sobre isso. Agora esse é o meu inimigo, esse é o meu fantasma hoje. É contra ele que quero me rebelar agora.