No dia 5 de setembro, o Paiol Literário — projeto promovido pelo Rascunho em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba, o Sesi Paraná e a Fiep — recebeu o escritor catarinense radicado em Curitiba PAULO VENTURELLI. Nascido em Brusque (SC), em 1950, filho de operários, Venturelli começou a se interessar por livros graças a um professor que lhe disse: “quem quiser ser inteligente na vida, precisa ler pelo menos um livro por semana”. Quando fez o antigo científico, em Jaraguá do Sul, começou a escrever uma coluna em um jornal da cidade. Publicava contos, poemas e algumas resenhas. Em 1974, mudou-se para Curitiba para cursar Letras na Universidade Federal do Paraná. Em 1976, publica seu primeiro livro, Asilo de surdos, uma coletânea de poemas de diversos autores, ainda em mimeógrafo. Em seguida, outras duas coletâneas de poemas, Sala 17 (1978) e Sangra: cio (1980). Seu primeiro sucesso é de 1993, Admirável ovo novo, livro infantil. É autor ainda, entre outros, de O anjo rouco e Introdução à arte de ser menino. Venturelli é professor de Literatura Brasileira da UFPR. Na conversa com o jornalista Rogério Pereira no Teatro Paiol, em Curitiba, ele falou de sua formação como leitor, seu ingresso na literatura e por que considera que a literatura pode mudar o ser humano. Leia a seguir os melhores momentos do bate-papo.
• Formação
Venho de uma família pobre. Meus pais eram operários. Não tive na infância o privilégio de ter contato com os livros. Meus pais consideravam livros um gasto totalmente desnecessário na vida de operários. Se eu tivesse tido livros na infância, teria vivido em um paraíso. Teria sido amado — o que eu não fui na infância. Na infância, só recebi surra, porrada, rótulos extremamente negativos. Se os meus pais tivessem me educado com livros, teriam feito um gesto profundamente humanitário. Eu teria descoberto coisas que só fui descobrir muito mais tarde e teria sido um escritor muito mais avançado do que sou hoje. Acho que perdi muito tempo na vida. Se eles tivessem me educado com livros — não é culpa deles, porque eram pobres e não tinham condições de fazer isso —, a minha vida teria sido realmente um paraíso. Talvez seja uma idealização minha, mas uma brincadeira que eu fazia muito quando criança era subir numa goiabeira muito alta no quintal de casa. Ficava sentado no alto numa forquilha da árvore olhando a vila operária. Achava aquilo extremamente grande e imaginava coisas. Se ao invés disso, tivesse tido a oportunidade de ler, talvez tivesse criado uma inteligência muito perspicaz, teria criado uma sensibilidade muito profunda e teria tido uma infância humana.
• Descoberta
Fui alfabetizado com as histórias de Charles Perrault, que me abriram um horizonte mágico, fantástico, cujas sensações tenho até hoje. Mas o momento de insight, de ruptura, que vai mudar a minha vida toda, se deu no ginásio. Estava no que hoje equivale à sexta série, quando o professor de português falou que quem quisesse ser inteligente deveria ler pelo menos um livro por semana. Aquilo deu um tóim na minha cabeça. Eu era um menino extremamente tímido, gago, magrinho. Era morbidamente introvertido, não me enturmava com ninguém. Estava naquele mundo imenso, em um colégio interno com mais 450 meninos, todo mundo desesperado para jogar futebol. Eu era uma negação no futebol, não sabia e não tinha interesse em jogar. Me sentia a quinta roda da carroça. Quando o professor disse que era preciso ler pelo menos um livro por semana para ser um indivíduo inteligente, decidi agarrar isso como causa de vida. Pensei que a única escapatória que eu tinha na vida era tentar ser inteligente. Estou tentando até hoje. Comecei a ler religiosamente. Outro conselho dado por esse professor foi que ao terminar de ler um livro, não deveria devolvê-lo para a biblioteca. Releia o livro. Você já sabe a história, já matou a curiosidade sobre a história e reler ajudará a ver como a língua funciona. A língua é como uma máquina montada. Observe como os parágrafos são montados, como as frases são construídas. Comecei a fazer isso. Isso me desenvolveu uma intuição intrínseca muito grande, sensibilidade lingüística e, obviamente, criatividade.
• Nascimento do escritor
De tanto ler, de tanto me debruçar sobre a leitura, chegou um momento em que percebi que a minha cabeça estava grávida de idéias, que precisava colocá-las para fora. Acho que é ali que nasce o escritor. O primeiro texto de que lembro ter escrito foi aos treze anos: um soneto dedicado a minha mãe. Fiz um soneto como se deve, todo comportadinho, rimado. Deveria ser um horror, mas tudo bem. Ao mesmo tempo, os meus textos começaram a aparecer nas aulas de redação como textos bem escritos, que eram lidos nas outras salas como exemplos. Na hora do recreio, a piazada vinha comentar comigo a respeito. No começo foi um pavor. Me senti um judeu em um campo de concentração, pelado, em plena madrugada nevoenta. Mas depois, de tanto falarem, de tanto me rotularem como poeta, a encherem meu balão, comecei a acreditar que era verdade. Estava recebendo uma aprovação social pela primeira vez na vida. A minha família nunca me deu aprovação nenhuma. De repente, me descobri fazendo alguma coisa da qual as pessoas gostavam. Vinham falar comigo e tiravam elementos daquilo para comprovar que aquilo era bom. Então, pensei: “Bom, vou embarcar nessa. Acho que está dando certo”. Decidi conscientemente ser um escritor.
• Na cidade grande
Meu pai teve problemas em 1964. Ele era líder sindical e, com a ditadura, não podia mais pegar emprego em Brusque. Precisamos nos mudar e acabei indo morar com a família em Jaraguá do Sul. Lá, tive a petulância de pedir para o dono do jornal local para ter uma coluna e publicar contos, poemas, resenhas de livros. Comecei por ali, mas tudo muito timidamente ainda. Queria ir para uma cidade grande para seguir o meu sonho da carreira literária. Como eu era capiau do mato, tinha medo de ir para São Paulo ou Rio de Janeiro. Acabei fazendo a inscrição para o vestibular em Curitiba. Gostei da cidade. Naquela época, Curitiba era bem diferente de hoje. Era uma cidade razoável, que considerei que era do meu tamanho e eu do tamanho dela.
• Desilusão
Vim a Curitiba para fazer Letras, achava que o curso formava escritores. Sempre somos ingênuos na vida. Não sabia que Letras matava o interesse pela literatura. Comecei o curso e em alguns meses me desiludi. Achei um horror tudo, as aulas de literatura com esqueminha no quadro. Romantismo é isso, realismo é isso, isso e isso. Aquilo começou a me apavorar. Será que universidade é isso? Apesar de tímido, eu era meio adolescentão ainda, já tinha lido um bom bocado na vida e comecei a enfrentar os professores. Comecei a colocar professor contra a parede e a achar que aquilo não era aula de literatura. Eu queria outra coisa. Aí, começaram uns atritos que duram até hoje, apesar de eu ser professor lá também. Resolvi ir embora para São Paulo para fazer a ECA [Escola de Comunicações e Artes] ou Letras na USP. Naquela época, tínhamos uma professora de uma dessas duas escolas que nos dava aula de semiótica. Fui conversar com ela. Falei que pensava em me mudar para São Paulo porque não estava gostando do curso de Letras em Curitiba. Ela me desaconselhou, disse que o problema não era geográfico. O problema era do sistema educacional brasileiro, ditadura militar, censura. “Não adiantará nada. Você encontrará a mesma nheca lá”, disse-me ela. Já que não adiantaria nada, fiquei por aqui mesmo.
• Primeiro livro
No final de 1974, ano em que chego a Curitiba, vou morar na Casa do Estudante Universitário, a CEU. Foi uma experiência absolutamente radical na minha vida. Lá, pela primeira vez, encontrei pessoas que tinham o mesmo interesse que eu, outros garotos escrevendo, interessados em arte, em teatro. Formamos uma turma e começamos a discutir textos, teatro. A turma começou a fazer teatro e tivemos a idéia de fazer uma semana de arte na CEU. A partir daí, começamos a agitar a cidade, a universidade. Me tornei o chefe do departamento cultural, todo artista que aparecia por aqui, eu levava para a CEU para um bate-papo. Isso proporcionou uma agitação na Casa do Estudante e começamos a ser perseguidos como comunistas. Soltavam bombas na porta de nossos quartos, escreviam panfletos contra nós. Para começar, todo mundo da nossa turma era tachado de viado, porque estávamos tentando lidar com arte. E todo mundo era comunista. Começaram problemas de prisão, de ameaças, telefonemas anônimos e essas coisas que nos davam ainda mais gás para pensar que estávamos no caminho certo. Desse grupo surgiu a idéia de um livro de poesias — o Asilo de surdos (1976 — em parceria com Arnaldo César Machado, Edgar Yamaguami e Zeca Correia Leite), um livro que pertence à chamada geração mimeógrafo. É um livro totalmente artesanal, rodado todo em off-set no mimeógrafo. Fizemos cem exemplares e uma noite de lançamento na Casa Romário Martins. Um acontecimento extraordinário. Aí eu já tinha um livro publicado, um livrinho mixuruca, mas que já dava para um narciso não morrer de fome. Esse grupo foi se desenvolvendo. Logo depois, publicamos Sangra: cio (antologia de poetas integrantes do Movimento Sala 17), o Paulo Leminski já participava desse grupo mas ainda não era o Leminski que se tornaria mais tarde. Ele estava engatinhando. Depois publicamos Sala 17, que era um catatau de poesias com 17 autores. O grupo foi se desenvolvendo, mas eu já não tinha muito esse espírito de grupo. Começaram a aparecer manipulações, interesses outros, desvio de grana.
• Carreira solo
Me desvinculei do grupo e passei um bom tempo sem publicar livros, só publicava em jornais e revistas. Em 1989, sai o meu primeiro livro solo, infantil entre aspas, chamado Admirável ovo novo [o livro ganhará reedição pela Positivo]. A partir daí a coisa deslanchou. A idéia surgiu numa noite em que voltava do bar Cometa, que reunia a intelectualidade de Curitiba. Saí do bar embriagado em direção à CEU e, quando estava indo pela rua Riachuelo, vi um grupo de menores abandonados, todos encurujadinhos naquele cobertor marrom ou cinza típico. Fiquei olhando para aquela garotada e imaginando que história poderia contar para eles. Essa história ficou fervilhando na minha cabeça. Queria escrever uma história para criança, mas não tinha a menor idéia de por onde e como começar. Qual seria a linguagem adequada? Eu tinha vários contos, alguns publicados, e vários escritos e inéditos. Um desses contos era o Admirável ovo novo. Uma amiga leu e me aconselhou a publicar o conto como livro infantil. Eu disse a ela: “Será que dá?”. Ela disse que era só eu isolá-lo dos outros textos, ele tem a sua autonomia própria e pode funcionar muito bem para crianças. Nessa mesma época, eu tinha uma amiga que trabalhava no Colégio Medianeira [escola tradicional de Curitiba], a Sandra Braga, cujos irmãos criaram a editora Braga. Ela me perguntou se eu tinha alguma coisa para criança. Lembrei desse conto, apresentei-o e foi publicado. A partir daí foram surgindo outros, mas tudo no acaso. Não foi uma pré-determinação: “Vou fazer isso como infantil ou como juvenil”. Foi um acaso dos acasos, mas acabou dando certo. O livro foi muito bem, foi adotado em várias escolas, começou a me dar uma certa visibilidade no cenário da cidade, do Estado e outros livros foram saindo. E estou nessa luta ainda.
• A importância da literatura
Tenho que fazer certa volta para responder qual é a importância da literatura e de ler. Partirei de uma afirmação que já é lugar-comum no meio acadêmico: a alma do texto literário é a sua dialogocidade. Isto é, um texto literário dialoga com “n” linguagens do mundo. Nenhum texto literário vem do nada, é obra da pomba gira, do Pentecostes, da inspiração ou de outras bobagens ridículas. Um texto literário é fruto de muitos outros textos. O autor é o sintetizador de tudo aquilo que leu ao longo de sua vida. Por isso nem é apropriado chamar o autor de autor, porque um livro sempre tem muitos autores. Se você pensar em um bolo com várias camadas e fizer um corte, perceberá as camadas constitutivas desse bolo. Em um texto literário acontece mais ou menos a mesma coisa. Ele tem múltiplas camadas que são formadas pelas múltiplas vozes que a mente do escritor absorve ao longo da vida e joga na hora de escrever. Estou convicto de que literatura é a melhor ferramenta para ler e entender o mundo. A literatura é um meio de contestar tudo o que está aí. É na literatura que você pode arriscar fórmulas absolutamente novas, comportamentos novos, criaturas novas que vão contra todos os paradigmas, contra todos os modelitos prontos da nossa sociedade. A literatura tem esse dom de nos tornar inconformados, em primeiro lugar, com nós mesmos e, em segundo lugar, com tudo o que vemos por aí. A literatura só é literatura se efetivamente inquietar, arrancar a casca da ferida, jogar vinagre em cima e ainda cutucar com a agulha. A literatura não tem a função de colocar você no colo, cantar uma canção de ninar para você dormir. Para isso tem um monte de bagulhada sendo produzida no mundo para você acreditar nos seus sonhos. A função da literatura não é essa. É te espetar, te pegar pelo braço, te incomodar, te fazer pensar, porque nada mais no mundo nos faz pensar hoje em dia. A literatura tem na sua essência essa capacidade de me levar a me rever. Por isso, James Joyce falava que quando você termina um livro, você é diferente de quando começou lê-lo. Então, você tem que reler o livro porque você é um outro cara, tem que reler, em um eterno contínuo. Essa é a função primordial do literário: te abrir a cabeça para outras perspectivas, te dar outros contornos do mundo para se perceber e perceber o outro de uma outra maneira e a partir daí tomar posturas. Não é a literatura que vai mudar o mundo, provavelmente, mas como dizia o Mario Quintana, “a literatura muda pessoas e pessoas mudam o mundo”.
• Sair do senso comum
Quando se está lendo um livro — e aí penso essencialmente em uma narrativa —, você não lê só um livro e sim múltiplos livros ao mesmo tempo. Se estiver lendo um romance, estará lendo também sociologia, psicologia, história, urbanismo, sexualidade, ideologia. A mente do leitor é provocada a entrar em contato com todas essas linguagens e isso acaba estimulando-a, estimula a inteligência e a própria sensibilidade do leitor. O ato de ler é importante porque o leitor se expõe a essa multiplicidade de vozes e sai do senso comum.
• Democratizar a literatura
É impossível distender esse ato de resistência — que é a literatura —para a grande massa. A grande massa está conformada a pastar a grama que o sistema lhe dá e está feliz com isso. É só ver como os pastores enriquecem com as besteiras que pregam. Mas é possível democratizar esse absoluto prazer, essa absoluta ruptura que o ato de ler representa. É possível trabalhar como formiguinha, distendendo isso para um maior número de pessoas. Quando vou ao campo de futebol e vejo aquela multidão apaixonada, penso: “Por que essa cambada não está com um livro na mão? Está todo mundo aqui torcendo por esse time capenga, que não merece o mínimo esforço nosso, mas estamos incentivando o time, torcendo, brigando, suando a camisa. Por quê?”. Há razões sociais que levam o ser humano a ser um torcedor de futebol do time X, Y ou Z, mas não há razões sociais que levem alguém a ser um leitor. Há um sistema político e ideológico por trás de tudo isso que é difícil romper. Não podemos esquecer que somos ainda um país colonizado. Em um país colonizado não há interesse em que as pessoas leiam. Temos um sistema educacional terrível. As crianças são obrigadas a ler determinados livros. A esmagadora maioria dos professores não é leitora. O grande problema da educação é o professor e não o aluno . Se o professor fosse um leitor convicto, com paixão pelo livro, com leitura diária, encontraria uma fórmula. Ela é individual, não existe fórmula pronta, e se ele achar, vai transformar em leitores pelos menos alguns alunos de cada turma. Fiz isso a minha vida inteira, esforcei-me ao máximo para isso, encontrava fórmulas para cada turma a cada momento. Trabalhei de suar a camisa para encontrar meios, puxar o fio da meada para pelo menos uma percentagem da turma se tornar leitora.
• Professor
Acredito na possibilidade de mudar as pessoas. Lutei a vida inteira por isso. Sou professor desde 1978, demorei uns dois anos patinando até encontrar o meu caminho: ser professor de português. Até descobrir que a minha função em sala de aula era tornar a garotada leitora. Minha função era torná-los leitores. A partir daí, deslanchei em um trabalho que deu bastante certo, modéstia à parte. A partir do momento em que você é leitor, você encontra autonomia de pensamento. Um livro que não te muda é um livro que não vale nada ou foi mal lido.
• Academia
É difícil dizer se a academia tem saída. Ela está cimentada em certos valores. A academia brasileira (os cursos superiores de Letras) é praticamente toda pós-estruturalista, o que é uma visão absolutamente redutora da literatura. E é por esse viés que se analisa, que se critica, que se orienta. O resultado final é que saem as turmas formadas sem terem efetivamente uma formação adequada em termos de literatura e de análise literária. Isso demorará muito a mudar. A academia gosta de lidar com o mundo pronto. Ela não gosta de mudar, de arriscar. Não por acaso se trabalha muito pouco com autores contemporâneos. Preferem-se os grandes clássicos que já estão definidos. Dar um peso para um autor que ainda está transitando é um risco muito forte que a academia não quer correr. A academia é absolutamente narcisista. Não se transita com a sociedade, não se transita com o ensino médio, com o primário (agora é fundamental), não se transita com a própria sociedade. Fica todo mundo fechado no mundinho, fazendo esqueminhas de análise, dando aulinhas esquemáticas e o resultado está aí. Será muito difícil mudar isso.
• Massificação
Vivemos hoje em uma sociedade que esmaga o indivíduo, é uma sociedade de pasteurização do indivíduo em que todo mundo tem que ser igual, se veste igual, fala igual, querem as mesmas coisas. A literatura também trabalha na modulação da individualidade do sujeito. Quando você encontra um personagem, esse personagem no texto é inteiro, com todas as suas complicações e simplificações. No encontro com esse personagem, é possível encontrar chaves para a sua identidade. Aí, você sai dessa bovinização generalizada, perpetrada pela sociedade de consumo. Lendo constantemente, você absorve esses elementos e pode se constituir em um sujeito com uma visão própria, um discurso próprio, uma percepção própria da sociedade, diferente dessa massificada e transmitida principalmente pelos meios de comunicação. Se pensarmos, por exemplo, na música, que tipo de música estamos ouvindo hoje no Brasil? É esse tal de “sertanojo”, que é uma barbárie musical. O Adorno já falava que o jazz era uma barbárie para o ouvido. Imagine se ele ouvisse os “gritantes” hoje no Brasil! Esse processo de massificação dessa música é enfiado nas pessoas goela abaixo e as pessoas acabam indo no embalo e achando que gostam disso. Talvez umas três ou quatro até gostem, mais a maioria vai no embalo por um determinado modismo. Isso acaba nivelando tudo por baixo. É extremamente prejudicial para a própria sensibilidade do indivíduo. Quem é que hoje se dá o tempo de ouvir uma sonata de Mozart? Ah, mas isso é chato, é tudo igual. E na música “sertanojo” nada é igual a nada, né? É tudo originalíssimo.
• Resistência
O ato de ler é essencialmente importante por isso. É um ato de resistência a essa colonização da mente, a esse denominador comum ao qual somos obrigados a nos submeter no dia-a-dia de nossas vidas. A leitura do texto literário pode e deve ser profundamente produtiva como um ato no qual o leitor diz: “Eu quero ser eu, ter o meu discurso, a minha visão de mundo. Quero ter a minha sensibilidade, não quero ser arrastado por essa onda”. Desde o escritor, quando escreve um determinado texto, até chegar ao leitor, todos acabam sendo enfeixados no que chamo ato de resistência, de ato contra a barbárie. Estamos em um século totalmente tecnologizado. A cada dia a tecnologia avança mais, mas a cada dia algumas características humanas estão ficando esquecidas. Não adianta você ser um exímio apertador de parafusos se não tiver três elementos que são fundamentais: a sensibilidade, a intuição e a criatividade. Esses elementos são dados profundamente pela arte e, de maneira muito especial, pela literatura. A literatura ajuda a desenvolver a intuição e a intuição é extremamente necessária neste mundo globalizado em que tudo vem pronto, que não é preciso se fazer mais nada. Tudo está dentro de uma razão sistêmica extremamente escravizadora e esse pensamento intuitivo acaba sendo esquecido. A sensibilidade e criatividade acabam esquecidas. Isso tudo envolve o ato de leitura, o ato das pessoas desenvolverem o possível potencial de ser humano. No fundo, devemos ler para sermos humanos.
• Romance
Acho que o gênero mais completo da literatura continua sendo o romance. O gênero romanesco, pela sua própria natureza, é um gênero onívoro, ele devora o mundo e dá mais conta das possibilidades. O romance, por ser uma narrativa mais longa e mais complexa, talvez dê mais conta de trazer inquietações para o leitor. Ele normalmente tem um trabalho de linguagem muito apropriado àquilo que está sendo contado. Acho importante destacar que o que interessa no romance ou na literatura de maneira geral não é o enredo. O enredo é secundário. O que interessa em um romance é o trabalho com a linguagem, com a visão de mundo, com a prospecção que é feita no ânimo dos personagens. E isso o romance tem tempo seqüencial para fazer e faz muito bem. Os grandes romances da humanidade são um tremendo lastro de experiência e de reflexão sobre a vida. Quando você mergulha nesses romances, tem a possibilidade de viver uma outra vida. Isso é também interessante na literatura. Ela nos tira desse mundinho feijão com arroz que somos obrigados a viver no dia-a-dia. Levantamos cedo, corremos o dia inteiro, vamos ao trabalho, chegamos em casa, colocamos a bunda em um sofá e vemos um plimplim da Rede Globo, uma telenovela mixuruca. As pessoas vêem isso porque todo ser humano necessita de ficção. Ninguém agüenta viver vinte e quatro horas por dia de cara com a realidade. Precisamos alargar nossa experiência, nosso cotidiano. Precisamos alargar o nosso ser. A literatura, em especial o romance, faz isso.
• Preferências
Eu gosto de romances que mergulhem fundo no personagem, que não contem praticamente uma história, isso é secundário, mas que analisem esse personagem a fundo, seus dramas e suas neuroses, aquilo que mal e porcamente poderíamos chamar de romance psicológico. Esse é o meu gênero especial. É um tipo de escrita — e aí eu cito um escritor inglês contemporâneo, o Patrick McGrath [no Brasil, a Companhia das Letras já publicou A doença de Haggard, Manicômio, Port Mungo e Spider]. O pai dele foi diretor de um manicômio, a família morava na instituição, ele conviveu com tudo isso e escreve romances nessa linha que são verdadeiros estudos da mente humana. São personagens altamente torturados, profundamente desequilibrados, com doenças que a medicina e os remédios não dão conta. Ele vai fundo ao âmago desses personagens, faz aquele corte longitudinal a que me referi e isso me dá um prazer imenso porque me ajuda a me conhecer. Outra paixão fulminante na minha adolescência foi o Ernest Hemingway, mas pelo lado contrário. Ele não tinha o aprofundamento do personagem, mas eu gostava da agilidade com que narrava uma história. Aquela linguagem quase jornalística, quase telegráfica, me encantou de muitas formas. Depois acabei encontrando Sartre, Albert Camus, Thomas Mann, o grande Machado de Assis. Hoje em dia, o escritor que mais me traz essa bagagem é o João Gilberto Noll. Aqueles personagens andarilhos, completamente sem norte e sem sul, completamente perdidos no tempo e no espaço e que acabam sempre, ou quase sempre, em uma decadência física absoluta, que acabam até mudando de sexualidade. Esse texto, que é quase neobarroco, me encanta muito por isso. Ele traz personagens problemáticos e isso para mim é fundamental. Me obriga a olhar para dentro de mim, a me conhecer melhor.
• Hábitos
Quando não tenho aula, leio o dia inteiro. Quando tenho aula, volto para casa e leio. Não tenho um critério para a escolha de autores, é meio aleatório, às vezes, uso a intuição. Quando sai um livro do João Gilberto Noll, do Bernardo Carvalho, da Adriana Lisboa, do Nuno Ramos ou do Nelson de Oliveira, compro e leio na hora. Os demais vão ficando na pilha da prioridade e aí leio sem ordem, não há critério. Escrevo normalmente pela manhã. Levanto, ando na esteira, tomo café, tomo banho, desço à biblioteca, sento à minha mesa e aí o meu método é o método nenhum. Às vezes, estou sem nenhuma idéia. Então, abro livros e leio trechos, poemas. Abro os cadernos onde anoto trechos de livros que achei importantes. Abro um livro aqui, outro lá, deixo vários abertos e vou lendo de forma absolutamente espírita, mediúnica, fazendo a aquela coisa enlouquecida. De repente, vem um insight, uma idéia, uma palavra ou uma imagem, que desperta o processo criativo e então acabo escrevendo três ou quatro textos por dia. Às vezes, não escrevo nada, depende. Não há um processo rigoroso. O que é rigoroso é o processo de ler. Se fico um dia sem ler, pareço-me com o viciado sem droga. Fico meio alucinado, em crise de abstinência.
• Fetiche
Os livros lidos, eu guardo na biblioteca. Tenho um apartamento só para livros. Prefiro comprar livros para dar de presente a emprestar os meus. Eu leio, releio, trileio. Tenho livros que já li mais de dez vezes. Cada vez que leio, é uma coisa nova. E sou fetichista. O livro para mim é um objeto erótico. Gosto do formato, do cheiro, gosto do papel. Gosto do tato. Leio o livro sem quebrar a lombada. Por isso, não empresto nenhum. Deixo o livro como saiu da livraria, meus livros parecem que não foram lidos. Gosto de preservá-los virgenzinhos. Eu risco tudo, escrevo, grifo, mas a lombada é sagrada, não pode ser quebrada. Ainda não tenho um leitor eletrônico. Comprarei um por questão de espaço. Não tenho mais espaço. Não sei como é que vou me virar com essa tecnologia, alguém terá que me orientar. Mas acho que aprendo.
• Satisfação com a produção
Se estivesse satisfeito com a minha obra, seria um hipócrita, porque aí já teria parado. A insatisfação me leva a produzir sempre mais, a procurar chegar a um ponto melhor, mais adequado. Nunca releio o que está publicado. Se reler, a canetinha neurótica já começa a trabalhar. Tenho o impulso de reescrever e não gosto de reescrever o que está publicado. Acho que é como um filho que está no mundo. Dar uns retoques aqui e ali, tudo bem, mas reescrever tudo acho complicado. Mas não estou satisfeito com minha obra não. Recentemente, tive uma experiência dessas. O Admirável ovo novo será republicado [pela editora Positivo]. Fui reler o texto para dar uns retoques e até perguntei ao editor [Marcelo Del’Anhol] se ele tinha mesmo convicção de que o livro deveria ser republicado. Fiquei um tanto quanto insatisfeito com o livro. Achei que estava fora de esquadro. Mas o editor garantiu que o texto está bom. Veremos o que vai acontecer. Deis uns pequenos retoques. Ele me deu também alguns conselhos e acabei aceitando, mas nunca me dou por satisfeito. O Admirável ovo novo, que são 24 páginas, me deu quatro anos de trabalho. Demoro muito para finalizar um texto exatamente por causa dessa minha insatisfação. Tenho muita coisa escrita que não publiquei ainda e que talvez nunca publique.