No dia 7 de maio, o Paiol Literário — projeto realizado pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba — recebeu o escritor, jornalista e produtor musical Nelson Motta. Nascido em São Paulo, em 1944, Motta é autor, entre outros títulos, de Vale tudo, uma bem-sucedida biografia do cantor Tim Maia, e do best-seller Noites tropicais, que vendeu mais de 75 mil cópias. No gênero policial, publicou Bandidos e mocinhas e O canto da sereia, além do romance Ao som do mar e à luz do céu profundo. Numa conversa com o escritor e jornalista José Castello, mediador do encontro, e com o público que compareceu ao Teatro Paiol, Nelson falou sobre suas obras e ambições literárias, comemorou o sucesso de seu trabalho, criticou o culto à celebridade no Brasil, discorreu acerca da diferença entre poesia e letra de música, debateu os rumos da política americana atual e relembrou seus tempos de comentarista do programa de tevê Manhattan Connection. Confira abaixo os melhores momentos do bate-papo.
• Visãozinha de mundo
A literatura foi fundamental para a minha formação profissional e ética, para a formação dos meus valores. Ela entrou na minha vida com muita força. Sempre fui um leitor compulsivo, desde criança. Li os vinte volumes da enciclopédia Tesouro da juventude; lia romances infanto-juvenis, A ilha do tesouro, Tarzan, essas coisas todas. E, sobretudo, li o Monteiro Lobato inteiro. Com treze anos, li meu primeiro livro adulto, Gabriela cravo e canela, de Jorge Amado. E aquilo foi uma coisa de louco. Causou um impacto tremendo na minha vida. Era um outro mundo, um mundo cheio de cores, de paixões, de sensualidade. Foram dois os livros que me marcaram nessa época, Gabriela… e O encontro marcado, de Fernando Sabino. Essa foi a minha entrada na literatura. Só com esses primeiros autores, eu já tinha uma visãozinha de mundo bem organizada. Monteiro Lobato, por exemplo, dava tudo isto: a mitologia grega, o petróleo, a sabedoria, a vida no interior, o Brasil. Esses autores estavam mostrando o nosso país.
• Mudar quem manda
Com dezesseis anos, li Albert Camus pela primeira vez. Li O estrangeiro. E aquilo também teve um grande impacto na minha vida, nas minhas idéias. Depois, fui ler várias coisas dele. Hoje, aos 63, acho que a literatura muda o mundo, sim. Não como um jovem talvez imagine, acreditando que um livro pode mudar o mundo, transformar as pessoas, promover uma revolução. Nisso, eu não acredito e acho que nunca acreditei. Mas há esta possibilidade: a de mudar as pessoas que mandam, que decidem, que tomam decisões, que realmente podem transformar a vida das pessoas. Um pedaço de um livro, conceitos e valores de outro — acho que isso vai formando um caráter, um jeito de ser, uma ética pessoal que norteia cada um em sua relação com seu trabalho e sua família, com o Estado, com os partidos, com a sociedade em geral. […]Assim, acho até que a literatura me deu mais do que a música. Na minha vida, na minha formação, ela teve mais importância do que a música.
• Entretenimento e profundidade
Eu não tenho a menor pretensão de mudar o mundo com a minha literatura, nem um pouquinho. Faço uma literatura de entretenimento, uma literatura pop. Minha grande ambição é alegrar, divertir as pessoas, emocioná-las um pouco, esclarecer uma coisa ou outra. É para isso que eu rezo literalmente, todo dia, antes de escrever: para que meu trabalho possa alegrar, divertir e esclarecer. Não tenho pretensões. Já é muito quando consigo isso com meus livros. Fico feliz da vida, não ambiciono mais. Já é muito difícil você conseguir essas coisas. Muita gente que quer fazer arte não consegue sequer fazer um bom entretenimento. E, às vezes, naquilo que tem o espírito de entreter com leveza, você também encontra arte e profundidade.
• Chapa branca, tarja preta
Eu adorava o Tim Maia. Desde que o conheci, tive grande admiração artística por ele. E um absoluto fascínio pessoal. Era meu personagem favorito. Era tão engraçado, tão surpreendente e inteligente, tão livre, anárquico e libertário. Um personagem único. […] Quando me dispus a fazer sua biografia, fiz questão de dizer isto claramente: Vale tudo seria o livro de um amigo, de um fã. No primeiro capítulo, ele e eu aparecemos abraçados, em Nova York, na maior intimidade. E, com um prólogo assim, imaginei que as pessoas falariam: “Ah, esse troço vai ser uma furada. O cara é amigo escancarado do Tim Maia, vai protegê-lo, só vai falar a favor dele”. Teve até uma repórter que me perguntou: “O senhor não acha que o seu livro vai ficar muito chapa branca?”. E eu falei: “Minha filha, o Tim Maia é tarja preta, não tem jeito”. Por isso, as pessoas se surpreendem quando começam a ler o livro. Elas vêem, ali, as maiores barbaridades do Tim Maia. E isso é uma prova de respeito à integridade do biografado. O Tim era um cara apaixonado pelo excesso. Excesso de talento, de peso, de sexo, de droga, de loucuras, de tudo. Ele era excessivo e eu fui fiel a ele. Ele podia ser um bandido, como é em vários momentos do livro, podia ser extremamente mesquinho com um amigo, um músico, um empregado, uma pessoa humilde. Mas, ao mesmo tempo, era de uma generosidade incrível. […]É claro que, se meu livro fosse muito ruim, ele não teria andado. Mas já saí com este handicap maravilhoso: tratava-se da biografia de um personagem muito querido e, sobretudo, muito divertido.
• “A mentira da mentira”
Nesta nossa cultura de celebridades, tudo se nivela. É um escritor famoso, é um ex-BBB, é um não-sei-o-quê, é uma atriz-modelo-manequim. Tem uma ótima da Regina Casé, num baile de carnaval. Ela falava assim: “Pô, todo mundo aqui é atriz, modelo e manequim? E as piranhas? Onde estão as piranhas?”. Essas celebridades vagabundérrimas — e muitas são célebres somente por serem célebres, nada além disso — são uma coisa careta e picareta. Hoje, todo mundo é politicamente correto. Qualquer artista, o mais vagabundo de todos, tem a sua responsabilidadezinha social, ajuda com uma coisinha aqui e outra ali. O Tim falava: “Eu odeio a hipocrisia porque ela é a mentira da mentira”. A mentira da mentira. Então, vejam o sucesso de um personagem como ele, Tim Maia, nessa cultura careta, repressiva e completamente desfigurada. Um marginal, um anárquico, um libertário total. Um cara que fez o que quis na hora que quis, que não estava preocupado, que dizia o que queria e pagava suas contas. Ele pagou caríssimo por sua liberdade, mas não ficou botando a culpa em outras pessoas, em uma herança maldita, em um partido, no Brasil, nos americanos. Não: ele viveu do jeito que quis e pagou o preço. Acho maravilhoso um personagem com tanto inconformismo social ser tão bem aceito pelas pessoas. Mesmo um público mais conservador, gente de família ou da minha idade, não se assusta com as barbaridades que escrevi no livro. São coisas de louco, inacreditáveis. E ninguém fala: “Pô, mas esse Tim Maia era um bandido!”. Ninguém fala isso. Porque ali está a integridade de um ser humano e de um grande artista. Mas, do jeito que a coisa vai, essa coisa repressiva e careta de hoje em dia, daqui a pouco vão falar bem assim: “O Tim Maia era um drogado que fazia música de vez em quando”.
• O outro lado da onipotência
Não pude fazer esse livro quando eu queria, em 1998, logo depois da morte do Tim, porque havia um problema judicial com seus herdeiros. Só dez anos depois fui escrevê-lo. Em 2007, já com o Google e o Yahoo, recursos com que eu nem sonhava na época. Isso facilitou muito o meu trabalho. Juntei todo o material que eu tinha, enfiei tudo no meu laptop e fui embora. Fiquei três semanas em Salvador, escrevendo o dia inteiro. Como conheci bastante o Tim Maia, eu também conhecia o seu jeito de falar, sabia como ele agia. Depois, de lá, fui para Recife, onde fiquei mais duas semanas. Só fui mudando de praia. No final do verão, eu já tinha escrito quase 400 páginas e fui terminar o livro em Amsterdã. Outras duas semanas. Passei por Lisboa também, uns dez dias. Fui até lá lançar um livro, mas fiquei por conta do Tim. Meu trabalho rende mais quando estou fora de casa. Então, escrevi esse livro todo praticamente em seis meses. E foi só alegria. Eu já tinha escrito três livros de ficção antes de escrever Vale tudo. E olha: com ficção, você fica louco. Várias vezes, você pensa: “Esse troço não vai terminar, essa merda não fecha nunca, eu vou desistir disso”. Há muito sofrimento. Você tem uma liberdade absoluta diante da tela do computador. Ali, você põe uma manada de elefantes, põe o fantasma do Jânio Quadros, põe o que quiser. A tela aceita tudo. Você não precisa de lei de incentivo, de produção, de microfone, nada. Agora, quando você embatuca, ninguém pode ajudá-lo. É o outro lado dessa sensação de liberdade e de onipotência absoluta que escrever nos dá.
• Um problema
O Tim Maia é o sonho de qualquer ficcionista. Quem é que vai inventar um personagem como ele? Até estou enfrentando um problema para escrever de novo. O que eu vou fazer agora? Outra biografia? Pior: uma ficção? Onde é que eu vou inventar um personagem melhor que o Tim Maia? Vou voltar para a música. Está na hora de voltar para a música.
• Minhas referências
Eu ouvia João Gilberto em um rádio de pilha. Minha geração pegou toda essa transição do velho Brasil, do Brasil derrotado para o Brasil Bossa Nova. E quando falo em Brasil Bossa Nova, falo também do Cinema Novo, do Teatro de Arena de São Paulo, dos poetas concretos, do Hélio Oiticica, da Lygia Pape, do Ferreira Gullar e de várias outras manifestações. Foi nessa época que surgiram os primeiros livros do Dalton Trevisan, os grandes livros do Guimarães Rosa. Um amigo meu falava: “Época boa. Todo ano você esperava um disco novo do João Gilberto e um livro novo do Rosa”. Mas não sou saudosista, não. Já acho um privilégio ter participado de tudo isso. O meu romance — que também é o meu livro de que mais gosto — Ao som do mar e à luz do céu profundo se passa exatamente em 1960, em Copacabana, no exato momento da transição desses maravilhosos anos JK para o governo Jânio Quadros. E Jânio Quadros era a antítese de JK. Era udenista, denuncista e careta, perseguia funcionários públicos, proibiu briga de galo, proibiu o biquíni, proibiu concurso de miss, proibiu corrida de cavalo. E era um bebum também. Era inacreditável, era um hipócrita, um moralista. Foi terrível cair naquele obscurantismo janista. Ao mesmo tempo em que o Rio de Janeiro deixava de ser a capital do Brasil. Os personagens do meu romance são uma turma de garotas e garotos de rua, de 17, 18 anos, e que estão virando adultos justamente nesse momento em que o Rio deixa de ser a capital federal. Então, esse livro é metade história: história de Copacabana, do Rio de Janeiro, das músicas, dos hábitos e da moral da época. E a outra metade dele é ficção, é minha imaginação. São tramas e histórias de amor e amizade, ritos de passagem que vão se entrelaçando nesse momento de transição. São as referências que eu tenho.
• Minha mãe mandou
Minha mãe sempre me diz: “Meu filho, escreva sobre o que você conhece”. Ela é minha primeira crítica. Tem 88 anos. Fuma, bebe e lê. Gosta de música. Tocou piano a vida inteira. Seu nome é Cecília, mas todo mundo a chama de Xixa. Minha primeira leitora. Mas ninguém precisa se assustar quando eu digo que ela fuma e bebe. Fuma uns cinco cigarrinhos, toma dois uisquezinhos. Nunca vi minha mãe bêbada, nunca a vi fumando muito. Eu falo para ela: “Mãe, talvez essa seja a sua missão, a missão da moderação”. Sendo moderado, você pode tudo. Até fumar e beber com 88 anos. Pois ela lê um livro por dia, praticamente. E lê Bukowski. Lê tudo, sem o menor preconceito, e eu vou mandando os capítulos dos meus livros para ela, como se fossem um folhetim. E ela os comenta. Sobre um dos meus livros, ela falou: “Tem muito sexo, tem sexo demais”. E não era uma coisa moralista, não. Porque ela adora. Ela só achou que aquilo estava demais. Fui ver e ela tinha razão, estava demais mesmo. […] Quando lancei o Noites tropicais, eu já tinha escrito outros livros. Sobre Nova York, sobre futebol. E minha mãe me falou: “Mas são livros de jornalista, não é? Se você quer ser escritor mesmo, tem que escrever ficção”. Daí, quando lancei O canto da sereia, escrevi: “Para minha mãe, que me mandou escrever este livro”. É a dedicatória.
• Inteligência musical
Paulo Francis falava: “A inteligência média de um músico é comparável a de um profissional de tênis”. E é verdade. Há muitas exceções. Há músicos inteligentíssimos. Mas ele quis dizer que o músico tem outro tipo de raciocínio. O músico lida com silêncio e com som. A partir daí, são mundos abstratos, intervalos, harmônicos. Então, para isso, eles são inteligentíssimos. Mas para quase tudo mais é complicado. Prefiro conversar com escritor.
• Na hora certa
Eu sonhava em ser escritor profissional, morria de inveja de quem era. Queria que alguma editora me contratasse, me pagasse um salariozinho para eu ficar só escrevendo. Mas isso, para mim, teria sido um desastre. Eu não estava pronto, não estava preparado. Nada disso teria dado certo. Foi como tinha que ser, mesmo: eu, ali, com quase 50 anos. E ainda tenho muito tempo. Escrevi cinco, seis livros e espero escrever muitos outros. Mas gosto de manter esse relacionamento com pessoas de fora. Por exemplo: tenho um programa de rádio, dirijo uns shows por aí. Só que estou meio fora desse negócio de música. Até já estava começando a freqüentar rodinhas literárias, mas isso também é muito chato. As pessoas repetem os mesmos assuntos.
• Sem alma de repórter
Gosto muito de jovens. Tenho três filhas, de 27, 32 e 37 anos. Então, peguei várias gerações feitas. Gosto de ser questionado, de questionar minhas certezas. Eu me divirto bastante com isso e acho que, no fundo, isso até melhora os meus livros. Opinião da Xixa: “Meu filho, não vá se meter a escrever sobre o que você não conhece”. E tudo o que ela falou está certo, ela tinha razão. Já minha amiga Patrícia Melo, grande escritora, fala que a melhor coisa de ser escritor é que você pode eleger um assunto sobre o qual não conhece nada e dizer: “Meu livro vai ser sobre isso”. Então, você ganha um pretexto para estudar um assunto que não conhece. Foi o que ela fez com o mundo da música clássica quando lançou aquele seu livro magnífico, Valsa negra. E mergulhou tanto que acabou casando com o John Neschling, o maestro inspirador do livro. Mas, por enquanto, estou mais com a Xixa do que com a Patrícia Melo. Eu não tenho essa alma de repórter, nunca tive isso de querer fuçar, de ser o primeiro a saber das novidades.
• Um vulcão
Eu estou neste impasse: sou vítima do sucesso do Tim Maia. Adoro escrever. Anoto umas idéias de vez em quando. Tem um livro que comecei a escrever e que era para ser uma biografia do Glauber Rocha. Isso ainda no final dos anos 80. O Zuenir Ventura, meu professor e querido amigo, também começou a escrever uma biografia do Glauber, mas não terminou. Coitado. Toda a pesquisa que o Zuenir fez na Europa, ele deixou num táxi. E o táxi foi roubado com tudo dentro. Eu falei para ele: “Isso é um péssimo sinal, viu?”. Volta e meia, tenho pensado nisso. Mas não quero fazer uma biografia do Glauber. Quero fazer uma falsa biografia, com um personagem de ficção, um falso amigo do Glauber, contando a história. Eu já levantei muita coisa, fui à Bahia, cheguei a fazer entrevistas. Mas, se eu fizer o livro, vai ser assim: uma coisa meio ambígua. Estou gostando é de música. Voltei a fazer umas letras. Fiz letras para o João Donato, que eu amo. E aceitei muitos convites para dirigir shows este ano. Vai haver muita coisa sobre os 50 anos da bossa nova. […] Mas, quanto à biografia do Glauber, não dá para fazer uma biografia muito estruturada. Ele era um vulcão, um personagem. Vamos ver, vamos ver. Ainda está cedo. Vamos esperar.
• Moças na França, pizzas na Itália
A classe média americana é abominável. Eu detesto, sempre detestei aquilo. Aquele american way of life, aqueles valores americanos, aquela hipocrisia americana, aquela coisa sexual e careta, é tudo uma hipocrisia. Tenho uma grande admiração pelos Estados Unidos, mas pelo lado do empreendedorismo, da liberdade, da cidadania, da liberdade de expressão. Foi lá que aprendi a trabalhar, foi lá que aprendi a ética do trabalho. Tenho grandes amigos americanos, mas o americano médio é detestável. O americano médio não vê nem o noticiário nacional. Os americanos que moram lá no Iowa, lá no Texas, esses de quem o Bush fala que são os “verdadeiros americanos” — por serem iguais a ele —, são os seus eleitores. Esse tipo de americano vê o seu jornal local, o seu Ohio TV, e, quando entra o nacional, ele já muda para o beisebol. Pega um saco de pipoca e acabou. Todo mundo com seus dois carros na garagem. Os caras trabalham das nove às cinco e sua única ambição é a aposentadoria. É lógico que eles trabalham muito, cada um faz a sua parte, e isso é admirável. Há um grande respeito à lei, ao direito, à ordem. Lei é lei para todo mundo. Mas imagine esse cara que não está interessado nem pelo que acontece no país dele, que só está interessado pelo que acontece na sua cidadezinha. Brasil? Ele nem sabe onde é. Tem americano que não sabe onde é a França, onde é a Alemanha, a Bélgica. É uma ignorância assombrosa, a do americano médio. Então você vê esse George Bush, que não por acaso é o presidente dos Estados Unidos. Esse homem foi eleito com 50 anos de idade. É de uma família da aristocracia americana, riquíssima. E nunca teve a curiosidade de sair dos Estados Unidos, de ir a Londres, de comer umas mulheres em Paris quando era jovem, de ir para o Japão, para a Itália, comer umas pizzas. Nunca. A única viagem que ele fez foi ao México — e com péssimas intenções, porque ele tem um passado negro, não é? Então, você vê um cara desses, que acaba sendo presidente dos Estados Unidos, mas que nunca quis ir a Veneza, à China, a Bali, sei lá. Nunca teve a curiosidade. Brasil? Só interessa a ele na medida em que o Brasil interfere de alguma forma na indústria americana, na exportação americana, na segurança americana.
• Jaba, quanto falta?
Eu já estava havia nove anos nos Estados Unidos. E já estava de saco cheio daquilo lá. Toda a minha família já tinha voltado para o Brasil. Então eu me perguntava: “O que é que eu estou fazendo aqui?”. E ainda tive uma intuição maravilhosa. Pensei: “Essa eleição vai dar merda…”. E deu. Fiquei nos Estados Unidos durante os anos Clinton. Foi maravilhoso. Oito anos pacíficos. A maior prosperidade da história americana. A tecnologia, a explosão da internet. E o Bill Clinton, de quem eu sou fã. Eu parava para ouvir os discursos dele. Daí veio um governo republicano e não deu outra. Quando o Bush foi eleito, eu já estava no Brasil. E foi na hora certa. Eu já estava incomodado e de saco cheio no governo Bill Clinton. Imagine quando entrasse esse George Bush com tudo aquilo que veio com ele, com a direita cristã, toda aquela barbaridade. Então, foi ótimo. Voltei por isso. No Brasil, ainda fiz durante algum tempo o programa Manhattan Connection. Mas era muito chato gravar no Rio. Você só ouve o que os caras estão falando pelo fone. E aquele estúdio vazio: o câmera em você e você ouvindo o pessoal falar. Você não vê a reação dos outros. Se você fala alguma coisa, não vê como o cara reage. E o pior de tudo: quando eu morava nos Estados Unidos, eu lia jornal americano e revista americana, via filme americano e me interessava pelo comportamento dos americanos. Quando voltei a morar no Brasil, eu me interessei novamente pela cultura brasileira, pelo dia-a-dia brasileiro. Tinha informação pela página internacional e só. Para fazer o Manhattan Connection, eu tinha que passar a semana inteira lendo jornais americanos na internet. Ou seja, estudando, fazendo o dever de casa, só para ter alguma coisa que falar na sexta-feira. E isso é muito chato. E ainda fiquei uns meses a mais porque o Arnaldo Jabor também fazia o programa no Rio. E ele, que é mais mercenário do que eu, falava: “Pô, fica aqui comigo. Pelo menos eu não fico sozinho com esse câmera, aqui, no estúdio”. Depois, eu ia irritando o Jabor. Nos últimos programas, como não uso relógio, eu perguntava: “Jaba, quanto falta para acabar?”. E ele: “Faltam 40 minutos”. E eu, logo mais: “Jaba, quanto falta?”. “Trinta e sete”, ele dizia. “Jaba, quanto falta?”, eu de novo. “Porra, pára com isso”, ele falava. “Assim demora ainda mais e esse troço não acaba nunca!” No final, já estava assim. Estava na hora de sair, eu não agüentava. O Jabor ficou lá, ó. Mercenário árabe.
• Preferidos
Adoro todos os livros da Patrícia Melo. Um fracasso retumbante — para mim, inexplicável — foi o clássico Matador. Mas vieram depois Valsa negra, Inferno, Elogio da mentira. Do Marçal Aquino, eu li tudo. É um escritor que jamais me decepciona. Pelo contrário, sempre me surpreende, estou sempre esperando um livro dele.
• Letra não é poesia, é música
Não leio poesia há muito tempo. Agora, depois de anos e anos, ganhei um livro do João Cabral, A educação pela pedra, que eu já tinha lido centenas de vezes na juventude. E o reli com prazer. Mas, da poesia, me desliguei bastante à medida que fui mexendo cada vez mais com letra de música. São coisas muito diferentes. A letra até pode eventualmente ser poesia, mas não é para ser. Pode ser poesia, mas em casos excepcionais, de letristas que têm uma grande formação poética — Chico e Caetano, basicamente. Mas eles são poucos, não é? Esse não é o normal. Há letristas que amo tanto quanto o Chico e o Caetano, como o Djavan, o Jorge Ben Jor, o Luiz Melodia. São autores de letras aparentemente estapafúrdias. Tem aquelas onomatopéias do Ben Jor, que não fazem sentido. Tem aquelas letras do Djavan, a letra de Talismã, eu adoro aquilo. Aquilo é música, é pura música. Letra de música, antes de ser letra, tem que ser música. Ela tem que soar bem.
• Meu pecado literário
Saramago é um escritor de que gosto muito. Adoro Mario Vargas Llosa, li sua obra inteira. Gabriel García Márquez, também, li tudo, do primeiro ao último. De Jorge Amado, li a obra completa. De Rubem Fonseca também: li tudo, tudo, tudo. Um escritor extraordinário. Desses latinos, desses espanhóis, de Manuel Vázquez Montalbán, gosto muito. E gosto dos americanos. Para mim, talvez o maior escritor vivo seja o Philip Roth. Também adoro o Gore Vidal. E essa literatura misturada com jornalismo, feita pelo Tom Wolfe, gosto muito dela. E da beat generation também. Jack Kerouac, William Burroughs. Li muito esses autores, durante certa época da minha vida. Mas meu pecado literário é adorar o John Grisham, que é muito esculhambado. É um fazedor de best-sellers. E o homem sabe escrever muito bem. Ele me dá o que muitas vezes eu quero em um livro: uma história em que eu fique grudado. Nas suas histórias de tribunal — o Grisham era advogado —, ele mostra muito da escrotice da vida americana, das lutas pelo poder que sempre se resolvem nos tribunais, porque lá ninguém faz nada sem um advogado. É um reflexo dos Estados Unidos. Ele tem um livro maravilhoso, O testamento, que se passa todo no Brasil. Então, não me envergonho de dizer que gosto muito do John Grisham. Ele é infinitamente melhor do que o Paulo Coelho — que é meu amigo querido. Eu o adoro, mas o Paulo sabe que não leio os seus livros e fica por isso mesmo. E a gente se dá otimamente bem.
• 1968 e as grandes ilusões
Estou louco para ler o novo livro do Zuenir Ventura [1968 — O que fizemos de nós]. Ele é o meu mestre e meu grande amigo até hoje. Em 1968, eu era presidente do centro acadêmico da minha faculdade. Já estava com a cabeça no jornalismo e era colunista do jornal Última Hora, do Samuel Wainer. Então, acompanhei tudo. A passeata dos cem mil — um momento de grandes ilusões. Você tinha a certeza de que a mobilização popular seria suficiente para derrubar aquela ditadura. “A ditadura está caindo de podre”, diziam. “É só empurrar que ela cai.” Imaginem: havia um controle absoluto do Exército. Órgão de segurança, tudo. Controle total. E eu achava isto: imagina se esses caras são loucos o suficiente para ir atrás do Vladimir Palmeira e do Zé Dirceu? Pelo amor de Deus. Havia muita empolgação naquela época. Mas a política foi mesmo o centro de tudo naquele 68. A música era totalmente secundária. Passou a ser vista como um instrumento de ação política. Músicas participativas, músicas sociais, música e metáfora. O teatro, o cinema. Aquele foi um momento de grande florescimento artístico no Brasil, mas que não tinha necessariamente a ver com a política. Havia o trabalho do Grupo Oficina, com o Zé Celso, uma completa renovação do teatro; o trabalho do Hélio Oiticica, da Lygia Pape e da Lygia Clark com o neoconcretismo. Essas eram formas avançadas de arte, que tinham pouco ou quase nada a ver com o momento político. Já o momento político era mais que de liberdade, era anárquico. O que se invejava era a anarquia. “Isto está tudo errado, vamos acabar com tudo isso e começar de novo. Está tudo errado: a escola, a família, o trabalho, o sexo.” Tudo isso era dito com aquela fabulosa pretensão da juventude. Eu tinha 24 anos e acreditei em muitas bobagens como essas. E não vou dizer que não foi lindo acreditar. Foi. Mas quando veio o AI-5, aí sim, aí nego caiu na real e viu como é que aquela coisa toda funcionava. Mas sempre impliquei muito com essa intromissão, essa cobrança política. Fiz letras políticas também, uma vez ou outra. Mas essa quase obrigatoriedade de você trocar os valores literários, que são valores de caráter permanente, por valores de caráter momentâneo, de conveniência política? Você submeter a arte a isso? Nunca aceitei essa coisa. Acho que é um atraso de vida. Quanto melhor for a arte, mais bonita, mais empolgante, mais inteligente, mais política ela será, porque vai criar e formar melhores cidadãos, cidadãos que sabem dos seus deveres, que sabem respeitar o próximo, que sabem agir na vida.
• Se der mole, o ser humano apronta
Sou totalmente a favor da liberdade absoluta de expressão. Fui contra o ocorrido com a biografia do Roberto Carlos [Roberto Carlos em detalhes, de Paulo César Araújo]. Escrevi dois artigos contra isso. Acho que é um livro extraordinário. E acho que a liberdade de expressão é um direito fundamental que as pessoas têm. Isso funciona nos Estados Unidos e na Europa, no mundo civilizado. Em um estado de direito, a liberdade de expressão é absoluta. Mas a contrapartida disso é assumir a responsabilidade pelo que você está dizendo. Se você vai aos Estados Unidos, se você vai usar a liberdade de expressão para caluniar uma pessoa, para inventar uma mentira, você vai quebrar, vai falir, vão lhe tomar até a sua casa. Eu acredito nisso. Acredito que, se você der moleza, o ser humano vai aprontar. Então, a liberdade de expressão é tudo. Quem viveu 20 anos na ditadura sabe o valor que ela tem, a pluralidade de expressão. No Brasil, todo mundo diz o que quer e o que não quer. Em qualquer lugar, há milhares de jornalecos pequenos, médios e grandes. Há a revista Veja, a TV Globo, as emissoras pequenas do interior, os sites, os blogs — muito mais lidos que os jornais, hoje em dia. Então, essa é uma sociedade de que gosto, em que todo mundo fala o que quer e se responsabiliza pelo que diz. Isso é que é o mais importante.