🔓 Marília Garcia

"Quando comecei, não tinha ideia de um caminho pré-traçado, planejado minimamente, na poesia"
A poeta Marília Garcia, autora de “Câmera lenta”
01/08/2021

A poeta e tradutora Marília Garcia foi a segunda convidada da 10ª temporada do Paiol Literário — projeto realizado pelo Rascunho, com patrocínio do Itaú, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura. Neste ano, os encontros acontecem online, com transmissão pelo Youtube, e todo conteúdo também fica disponível no site do projeto.

Marília nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1979. Iniciou na literatura, em 2007, com 20 poemas para o seu walkman. Em 2018, com Câmera lenta, tornou-se a primeira mulher brasileira a conquistar o Prêmio Oceanos de Literatura. Engano geográfico (2012), Um teste de resistores (2014) e Paris não tem centro (2015) são seus outros títulos publicados.

Realizado desde 2006, o Paiol Literário já recebeu 73 escritores. O próximo bate-papo acontece em 3 de agosto, às 19h30, com participação do romancista e poeta gaúcho Paulo Scott. A medição dos encontros é do jornalista e escritor Rogério Pereira, editor do Rascunho.

• Mundo interior
A gente escreve, edita, traduz e fala sobre literatura porque lê. A francesa Annie Ernaux diz que o que ela mais gosta é quando as pessoas se identificam com seus personagens. Uma das primeiras questões ligadas à literatura é quase uma espécie de criação de identificação. Quando lemos, na verdade, entendemos coisas que nem sabíamos que existiam. É como criar essas coisas dentro da gente, um espelhamento para dentro. A leitura traz uma espécie de criação de subjetividade. É muito claro nas crianças: minha filha tem três anos e viu o mar apenas uma vez, quando tinha um ano, mas já sabe o que é. Sabe o que é uma baleia. Há uma experiência de mundo devido às leituras que faço para ela. A leitura traz conhecimentos objetivos de mundos que a gente não conhece, não tem contato, e também de sentimentos mais humanos e básicos. É a ideia da criação de subjetividade: você existir como um “eu” que pensa e pode, enfim, viver. Posso ler Anna Kariênina e saber da Rússia do século 19, ver aqueles personagens e ter uma experiência subjetiva e de identificação com questões humanas muito fortes, discursos diversos. Posso criar minha própria vida a partir deles. Meu próprio mundo interno. Acho que a leitura tem que ser um direito para todo mundo.

• Direito à leitura
É difícil dar uma resposta rápida, mas acredito que seríamos um país melhor com mais leitura. As pessoas teriam possibilidade de multiplicar discursos, pensar. Claro que, se mais gente tivesse acesso à leitura, seria por que teve acesso a muito mais coisas antes. Seria outra realidade. Mas acho que sim, por meio da leitura as pessoas poderiam ter maior esclarecimento sobre o rumo do país, por exemplo. Com mais leitura, talvez esse abismo onde fomos parar pudesse ter sido evitado.

• Primeiros autores
Comecei a ler quando adolescente, na escola. Lembro de algumas professoras que foram importantes. Uma de História me deu O barão nas árvores, do Italo Calvino. Depois, em literatura, li Macunaíma. Meus pais não tinham exatamente uma biblioteca de literatura, não eram bem leitores de ficção, mas tinham a coleção vermelha de clássicos da Abril. Lembro de, em algum momento, descobrir aqueles livros. Não foi aí que comecei a fazer uma leitura mais sistemática de literatura, mas lembro muito nitidamente da importância de ler os livros da coleção. Anna Kariênina, O estrangeiro. Gostava de ler, mas não era exatamente uma leitora. Na poesia, também nessa época, comecei com Drummond, Vinicius, Bandeira e Manuel de Barros, que ficou muito em evidência nos anos 1990.

• Letras
Acabei indo fazer Letras, mas não sabia muito bem o que queria com aquilo. Não foi uma escolha muito consciente. Gostava de ler, mas também queria fazer Cinema. Acho que essas coisas são meio por acaso, não se tem muita clareza dos caminhos. Acreditava que no curso de Letras, conversando com outras pessoas, teria uma base na área de humanas. Na faculdade, então, comecei a ler mais sistematicamente, a conhecer melhor. Me formei em literatura de língua portuguesa.

“A leitura traz uma espécie de criação de subjetividade.”

• Rumo à escrita
Antes da faculdade, e no começo dela, fiz os cursos livres da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Eu tinha uma inquietação produtiva que ia mais para a imagem, e não para a escrita. Teve um momento, na época da faculdade, que fui fazer estágio na 7Letras e acabei entrando como editora. Muito nitidamente, foi nesse momento que tomei a decisão de escrever. Na graduação, tive contato com os poetas dos anos 1970 e 80, por aí — Chico Alvim, Ana Cristina Cesar. Na editora, comecei a ler quem estava escrevendo naquele momento, publicando seus primeiros livros — Marcos Siscar, Lu Menezes. Os poetas da 7Letras do final dos anos 90, começo dos 2000, período em que a editora fez uma coleção de livrinhos chamada Moby Dick. Eu já escrevia diários, cadernos, espaços que funcionam como laboratório para pensar e ter a materialidade das palavras, mas o momento que achei que queria escrever foi quando comecei a ler os ultracontemporâneos. E vi, também, a possibilidade de publicar nas revistas. Foi meio natural. De algum modo, a escrita está muito ligada ao trabalho de edição, de leitora.

• Versos e ficção
Uma das coisas que busco como leitora é a narrativa que prende — a ideia d’As mil e uma noites. Entrar em uma história que vai levar para outro mundo, um mundo paralelo, completamente desconhecido, onde você vai aprender de tudo. A leitura abre essa fenda, essa janela, que te leva para outro universo. E na poesia, que tem um tipo de narratividade diferente da ficção, existe a possibilidade daquilo te dizer coisas de um jeito que só poderia ser dito daquela maneira, com aquela configuração. É um jeito próprio, muitas vezes não linear nem muito claro; você só vai conseguir pensar naquelas coisas daquela maneira, dentro do formato proposto — lendo e relendo o poema várias vezes. Acho que tem a ver com isso, a descoberta de vários mundos.

• Encontro às cegas
Quando comecei, não tinha ideia de um caminho pré-traçado, planejado minimamente, na poesia. As coisas foram meio acontecendo, e continuo sem ter muita ideia em relação ao próximo livro. É sempre como se precisasse tatear, pensar, me recolocar em relação ao que estou fazendo. Minha primeira publicação foi a plaquete Encontro às cegas (2001), na coleção de livros artesanais da 7Letras. Treze poemas curtos, os primeiros que escrevi, experimentando, meio sem saber. Um encontro às cegas meu comigo mesma, com a escrita, com o leitor.

• Estreia e influências
No mestrado, pesquisei as Galáxias do Haroldo de Campos. A leitura foi muito intensa. No meu primeiro livro, 20 poemas para o seu walkman (2007), dialogo com muitos autores. Mas o Galáxias, especialmente, determinou bastante o tom da minha estreia — a forma fragmentada, com micronarrativas e pequenas histórias. Depois, nos livros seguintes, cada um tem relação um pouco com o que eu estava lendo, pensando, circunstâncias da minha vida e coisas que foram acontecendo.

• Primeiros poemas
Ao publicar o primeiro livro, comecei a ser chamada para leituras, mas percebi que os poemas não funcionavam em voz alta. Tinham uma estranheza na sintaxe. Não me sentia bem lendo-os. Comecei a escrever outros textos para serem lidos e falados, e o poema começou a considerar outros elementos, como a leitura em voz alta, a relação com o público. Cada livro foi se transformando de acordo com as circunstâncias, nunca tive algo muito planejado.

• No papel
A poesia ocupa muitos espaços, mas sobretudo o papel. Apesar de estarmos vivendo em um mundo ultravirtual, com tantas outras possibilidades, acho que se tem publicado muito livro no papel. É claro que o poema se transforma com todos esses outros lugares e formas de existência — sendo falado, videopoemas, recursos da internet, com sons e imagens. Existe um arsenal de possibilidades para o poema existir e se transformar. Mas ele não deixou de existir no papel, onde talvez mais se transforme, convivendo com todas essas outras possibilidades.

“De algum modo, a escrita está muito ligada ao trabalho de edição, de leitora.”

• O que é poesia?
Não sei definir. Mas sempre gosto de lembrar uma definição do Jacques Roubaud, poeta do [grupo] Oulipo: “O poema diz o que ele diz dizendo”. Acho muito difícil dizer o que é o poema. O que digo é só uma paráfrase, não a coisa em si. Se tento definir, ou dizer o que é, ou dizer o que ele diz, perco o poema.

• Formas de expressão
A poesia e a literatura têm a capacidade de dilatar a consciência do leitor. Cada arte tem uma mídia, uma forma diferente, mas acho que elas se tocam. Vivendo em um mesmo tempo, um escritor e um cineasta conseguem trazer questões afins. Quando uma coisa toca na outra, é possível dilatar, expandir, a visão do leitor — e a nossa própria, também. As artes ganham muito ao perguntar sobre nosso tempo em uníssono, em conjunto, compartilhando — cada uma com sua forma, mostrando um pouquinho de uma janelinha. Talvez uma ilumine um pouco a outra e elas se complementem.

• Mercado editorial
Há cerca de 30 anos, quando a 7Letras surgiu, houve a primeira mudança — a possibilidade de fazer o próprio livro no computador, com um programa. Aí, no começo dos anos 2000, surgiram algumas editoras. Agora, nos últimos cinco, seis anos, houve um surgimento enorme de pequenas editoras — como a Luna Parque, minha e do meu marido, o poeta Leonardo Gandolfi, que criamos dentro de casa. Acho que as mudanças aconteceram por conta das redes sociais, a possibilidade de chegar diretamente nos leitores, fazer um site (com modelos pré-formatados), loja virtual — uma série de coisa. Isso possibilitou o surgimento de muitas pequenas editoras, que também se encontraram por meio do fenômeno das feiras literárias, com muita gente circulando. E, com esse movimento, surgiram não só poetas como traduções. A Jabuticaba, por exemplo, tem traduzido muitos poetas americanos que eram inéditos. A Macondo, também, que tem editado muitos livros de estreantes. Várias outras.

• Boas novidades
Há muitas poetas mulheres, um número enorme. Está uma efervescência, muitas coisas boas. Estou bem curiosa com o livro novo da Ana Carolina Assis, uma moça do Rio — gostei muito de sua estreia, A primavera das pragas. A Ana Martins Marques lançou um livro lindo [Risque esta palavra], muito forte. Tem bastante gente.

• Espírito do tempo
É muito difícil identificar um assunto predominante na poesia contemporânea. Há muitas vozes, muita gente escrevendo. A marca é a pluralidade, não tem um tema. Às vezes também pode ser que, por estarmos muito imersos, não consigamos identificar. Talvez daqui um tempo fique mais claro. Lembro que estava lendo os diários da Sylvia Plath e tem uma passagem engraçada. Ela diz algo assim: “Estou aqui sentada. É verão. Olho pela janela, está chovendo, úmido. Fico tentada a escrever um poema sobre a chuva, mas lembro da carta de recusa de uma editora: quando chove, lá vêm todos os poetas fazendo poemas de chuva”. Acho que toda época tem alguma coisa que a gente vai conseguir perceber ou identificar com o tempo, um Zeitgeist, mas por ora não consigo ver tão nitidamente.

• Tradução
É uma mescla de prazer e sofrimento. Prazer porque adoro, acho que traduzir é ler o texto com uma lupa enorme. É uma forma de mergulhar em seu funcionamento e tentar refazê-lo em português. Acho fascinante, sinto um enorme prazer, mas existe sofrimento porque é difícil. Tradução é tudo que você perde. Em relação à poesia, a gente poderia ter mais liberdade para refazer, ou deveria refazer mais, porque há mais questões, ou questões diferentes, em jogo. Tento me manter fiel ao texto, claro, mas varia ao que exatamente você vai ser fiel.

Foto: Ranato Parada

“A leitura abre essa fenda, essa janela, que te leva para outro universo.”

• Tom do texto
Na tradução, uma das maiores dificuldades é encontrar o tom do texto original em português. Vale tanto para narrativa quanto para poesia. Às vezes, quando se traduz, em português pode soar um pouco alto, elevado, e o texto no original é mais coloquial, ou com palavras mais rotineiras, cotidianas. Na poesia da Louise Glück, por exemplo, que traduzi recentemente, você tem que tomar cuidado para não perder o tom. Os poemas dela muitas vezes repetem palavras simples no meio. É difícil tentar encontrar esse tom. É a mesma coisa na narrativa, gênero que traduzo mais do francês. É uma língua que tem frases superlongas, uma sintaxe muito fechada, questão pronominal — em português, dependendo de como se traduz, pode ficar um texto de tom mais elevado. Em geral, então, uma das dificuldades é essa: tentar ouvir o original e ver como fazer para traduzir essas questões. Cada texto tem um tipo de desafio diferente.

• Louise Glück
O volume da Louise Glück, lançado pela Companhia das Letras, reúne os livros Averno, Uma vida no interior e Noite fiel e virtuosa. A editora da obra foi a Alice Sant’Anna, então ela ficou em contato com as três tradutoras — Heloisa Jahn, Bruna Beber e eu. Mesmo sendo trabalhos distintos — o que justificaria o uso de três vozes diferentes para a tradução —, são da mesma autora. Foi trabalhoso. A própria Heloisa fez uma leitura dos outros livros, do que eu traduzi e do que a Bruna traduziu, e sugeriu coisas. E o tempo todo a Alice, que também é poeta, fez esse trabalho de tentar criar o tom. Tentar perceber quais questões eram específicas de cada livro e quais eram da autora.

• Ana C.
Li bastante Ana Cristina Cesar. Quando eu estava começando a escrever, foi muito importante a leitura da obra dela — não só a poesia, mas os outros textos: ensaios, traduções, cadernos, diários. Um pouco porque, lendo a poesia dela junto desses outros textos, a gente consegue ver o funcionamento de um laboratório de escrita. Os poemas da Pasta rosa, por exemplo, têm uma versão, e outra, e outra. Vão se transformando. A obra dela passou por um caminho de publicação muito singular, porque não foram os textos que ela escolheu. Se esse caminho, por um lado, leva a um tipo de leitura, por outro tem esse ponto positivo de a gente poder ver quase como um ateliê mesmo, uma oficina de escrita. Foi uma autora muito importante para minha formação como escritora.

• Oficinas de escrita
Acho que muitas vezes, não sempre, a oficina de poesia é uma oficina de leitura de poesia. De leitura, possibilidades. Pelos menos as que eu dei. Os oficineiros com quem já conversei também costumam trabalhar com método de leitura — ler com os alunos muitos poemas de épocas e autores diferentes, traduções, depois ler juntos o trabalho dos próprios alunos. É superimportante. Não acho que seja possível ensinar a fazer poesia, mas é possível ler e pensar em conjunto.

“É um país muito triste, esse de agora. Espero que haja tempo e energia para reconstruir as coisas.”

• Poemas musicados
Em 2008, o Rodolfo Caesar fez uma peça musical de um dos poemas do 20 poemas para o seu walkman. Eu disse que os versos desse livro não funcionavam em voz alta, mas ele me convenceu. Fiz várias tentativas de leitura, não funcionava muito bem. Um dia, saímos caminhando e ele colocou um microfone preso na minha roupa. Fui falando o poema, ele foi captando minha voz e os sons do ambiente — como é um livro que fala muito de andar na rua, e os versos se deslocam por vários lugares, fez sentido essa leitura. Depois, em 2019, o Sesc me convidou para fazer um trabalho, junto com o coletivo Capim Novo, para a série Instrumental Poesia. Selecionei sete poemas do Câmera lenta (2007) e a gente montou um espetáculo. Li os poemas, mas eles também tinham uma soprano no grupo, então algumas partes foram cantadas. Foi uma experiência incrível.

• Brasil de hoje
A gente vive um abismo. Nem sei. É difícil seguir em frente com tantos ataques sistemáticos à cultura, à ciência, a tudo que a gente constrói e acredita. E ainda mais com essa pandemia, todo mundo mergulhado num luto gigantesco. É um país muito triste, esse de agora. Espero que haja tempo e energia para reconstruir as coisas.

• Pandemia
Minha filha não tinha nem dois anos quando começou a pandemia. Não temos família perto, então realmente afetou muito minha vida. Ela voltou para a escolinha há pouco, mas todo esse tempo passamos com ela, em casa, sem nenhuma ajuda. Acho que ainda não tivemos tempo de dimensionar tudo. Com relação à escrita, quase não consigo produzir. Claro que também não tenho mais tempo nenhum por conta da situação toda — também tenho problemas de doença na família, enfim, uma série de dificuldades. Não estou conseguindo escrever quase nada. Tenho material para um livro de textos que foram escritos antes da pandemia. Volto, mexo um pouco nesse material, mas não tenho nada novo.

Paiol Literário

O projeto Paiol Literário, realizado pelo Rascunho desde 2006 em Curitiba, já contou com a participação de mais de 70 autores brasileiros. É um grande acervo sobre a literatura brasileira contemporânea. Os encontros são iniciados sempre com a pergunta: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”.

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