Marcelino Freire foi o sétimo e último convidado da temporada 2018 do Paiol Literário — projeto do Rascunho, com patrocínio da Caixa Econômica Federal e apoio da Fundação Cultural de Curitiba e do hotel Centro Europeu. O bate-papo aconteceu no dia 4 de dezembro, no Teatro do Paiol, em Curitiba (PR), com mediação do publicitário Sandro Retondario.
Pernambucano de Sertânia, Marcelino Freire nasceu em 1967 e está radicado em São Paulo desde 1991. Influenciado pelo poeta Manuel Bandeira, ainda criança decidiu que seu destino seria morrer de tuberculose, tendo uma carreira literária meteórica e gloriosa. Não aconteceu.
Movido pela teimosia sertaneja, sem deixar que as dificuldades financeiras o impedissem de produzir, Marcelino se dedicou à poesia, ao teatro e, por fim, firmou-se no conto — entre outros, é autor de Contos negreiros (2005), pelo qual levou o Prêmio Jabuti, e Amar é crime (2010), além de ter uma incursão pelo romance com Nossos ossos (2013), que lhe rendeu o Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional.
Na conversa a seguir, o autor do recente Bagageiro (2018) fala da importância do teatro na sua escrita, do impacto que A metamorfose, de Kafka, causou em sua visão de mundo e, entre outros assuntos, discute a atual situação política do Brasil.
• Compreensão do mundo
À luz dos últimos acontecimentos, a gente percebeu que a leitura é fundamental para entender as coisas a nossa volta, analisar muito profundamente o que tem acontecido, perceber quando você está sendo enganado. Lembro que, aos 15 anos de idade, quando li A metamorfose, de Franz Kafka, aquele livro mudou minha vida. Completamente. Gregor Samsa acorda de sonhos intranquilos transformado num inseto monstruoso. Aquele cara, que mantinha a família inteira financeiramente, acorda de repente transformado num inseto. Quem é que fica do lado dele? Só uma irmã, colocando comida por baixo da porta. Quando terminei de ler esse livro, que li em um dia porque queria saber como ia terminar a história trágica daquele personagem, eu era outra pessoa. Quando fui jantar — minha família é muito grande, sou o caçula de nove filhos, mais os agregados, então era muita gente comendo à noite —, silenciosamente me perguntei: “Se amanhã eu acordar transformado num inseto monstruoso, quem é que vai estar do meu lado?”. Observe só: com 15 anos de idade eu não tinha ciência de muita coisa, mas a leitura me abriu uma visão de mundo, alargou minha visão de mundo. A literatura nos ajuda a ler o pensamento das pessoas. Eu estava ali lendo pensamentos. Percebi muito sobre inveja, solidão, opressão. A literatura me deu esse corpo, essa entrelinha. Olhava para a minha mãe, na mesa, e dizia: “Ela vai estar ao meu lado”. Aí olhava para uma prima: “Essa não vai estar ao meu lado”. Estava percebendo o pensamento, a entrelinha do sentimento daquela minha prima, que não era muito boa. Entende o que a leitura faz? Ela dá essas camadas de compreensão do mundo. A partir dali, fui lendo outros poetas e escritores. Acredito que a gente pega na mão dos escritores, sabe? Não sabia que estava precisando do Franz Kafka naquele momento. Peguei na mão dele, durante um bom tempo ele ficou segurando na minha mão, aí me colocou na do Jean Genet. Quando vi, já estava agarrado na da Cecília Meireles. E assim a gente vai suportando e compreendendo a vida nas suas camadas mais subterrâneas. A leitura é fundamental para isso.
• Prematuro
Não tinha água em casa. Sou do Sertão de Pernambuco. Minha mãe saiu de lá com os nove filhos porque não tinha água. Para você pegar água, tinha que caminhar bastante. Para você estudar, tinha que caminhar bastante. Ela queria sair dali, de uma cidade chamada Sertânia. Queria sair dali de qualquer jeito. Ela foi para Paulo Afonso, na Bahia, aonde cheguei com três anos de idade. Nasci de sete meses, prematuro. Minha mãe achou que eu não iria vingar. Na verdade, teve 14 gestações — das 14, nove vingaram. Achava que eu não ia sobreviver. Costumo dizer que nasci de sete meses para poder estudar mais, porque ela ficava dizendo: “Estude, estude, estude”. Acho que ela falou tanto isso que nasci de sete meses para dizer: “Tenho mais dois meses de garantia de compreensão do mundo”. Com essa insistência, de fato comecei a estudar e a ler muito jovem.
• Maldição absoluta
Me deparei com a poesia do Manuel Bandeira aos nove anos. Quis ser aquele poeta. Comecei a escrever poesia a partir dele. Não havia livro. O que havia era a vontade da minha mãe de que a gente estivesse numa escola. Essa luta fez com que eu deparasse com um poema do Bandeira num livro de gramática, e quis ler outros. A professora me viu pedindo Manuel Bandeira, teve sensibilidade e me deu uma antologia. Digo sempre que os professores são bibliotecas ambulantes. Não sabia ela que estava me dando uma maldição absoluta. Me deparei com um poeta pernambucano, um poeta doente, um poeta com múltipla falência dos órgãos, completamente doente, falando de morte o tempo inteiro, e percebi que era isso que eu queria. Acho que, pelo fato de eu ter nascido de sete meses, houve um cuidado excessivo da família — era o caçula, o menino que quase não sobreviveu. Aí deparei com Bandeira, também um homem doente, e disse: “Ah, já sei. Acho que vou ser tuberculoso. Vou morrer de tuberculose aos 24 anos”. Já tinha descoberto a poesia do Castro Alves, então achei que meu tempo de vida era muito curto e comecei a escrever poesia e querer morrer. Cheguei a fazer planos para isso. Lembro que minha mãe me deixava num quarto e, quando ela saía, eu abria um pouquinho a janela para pegar um vento e pegar tuberculose. Augusto dos Anjos morreu tuberculoso, Castro Alves morreu tuberculoso, Afonso de Guimarães morreu tuberculoso, Franz Kafka morreu tuberculoso. Minha sina era morrer tuberculoso. Achava que a tosse, a doença, a anemia seriam muito bem-vindas para a minha trajetória de poeta. Tanto quis que fiquei doente.
• Glória literária
Passei muito mal, uma época. Isso já no Recife, aonde cheguei aos oito anos de idade. Minha mãe me levou à escola e disse: “Quero saber por que esse menino está passando mal na aula de educação física. O que esse menino tem?”. Eu falava: “Tuberculose”. Ela entrou na sala dos professores agarrada na minha mão e foi falar diretamente com a diretora: “Boa tarde. Vim dizer aqui que meu filho está passando mal nas aulas de educação física, mas não é fome. Não é fome, está escutando? Boa tarde”. Porque ela tinha muita vergonha, pelo fato de ter saído de Sertânia, que as pessoas achassem que a gente passava fome lá no sertão. Ela foi verificar o que era, por que eu passava tão mal. Me lembro: era hospital público, fila, sofrimento. Isso eu estava com uns 14 anos. O médico ia dizer, depois de vários exames demorados, o que eu tinha. Digo: “Eita! É agora minha glória literária. Ele vai dizer: ‘Tuberculose. Tem poucos anos de vida’”. Fiquei esperando. O médico disse: “Ele tem sopro no coração”. Digo: “Isso mata?!”. Sopro no coração é muito comum, se você tratar quando é jovem não tem problema nenhum. O coração bate uma hora forte, outra hora fraquinho. Mas isso faz com que você tenha problemas de saúde, fique anêmico e tal. Imediatamente, gostei da ideia. Amei a ideia. Pensei em todos os poetas que li, nenhum morreu de sopro no coração. Serei o primeiro! Tem coisa mais bonita, na minha biografia: “Morreu de sopro no coração, aos 24 anos”? Coisa mais linda! É poético, até. Nunca tive saúde ou músculos para outras coisas. Mas evidentemente estou aqui para contar história.
• Teatro
Descobri o Manuel Bandeira, depois descobri o teatro. Na verdade, descobri o teatro também para me livrar das aulas de educação física. Não sei por que as pessoas corriam tanto para lugar nenhum. Lá no Recife é muito quente. A aula de educação física era colocar você numa quadra e correr ao redor dela, naquele sol absurdo. Então eu ficava correndo e nunca chegava a lugar nenhum. Nunca entendi a serventia de uma flexão. Quando o professor dava as costas, eu deitava um pouco. Fazendo aulas de teatro você era liberado de algumas aulas de educação física. Mas não foi só por isso, não. Achava bonito, o teatro. Tinha ouvido falar e fui fazer. Foi muito importante para descobrir o respeito, a parceria, cumplicidade, amizade. Companheirismo. Solidariedade. Se eu não fosse escritor, seria ator. Uso muito do que aprendi em teatro no que escrevo. Acho a coisa mais linda o ator, no sentido de que ele empresta voz, gesto, corpo, suor — muito sanduíche de mortadela, muito suco Tang para emprestar o corpo, o suor e o gesto para dar vida àquilo que está em estado parado. Aquele texto tem que passar pelo corpo dele inteiro para entregar para o outro, sem nunca assistir ao que está fazendo. Acho lindo demais.
• Entrega solidária
Até hoje, adoro teatro. Escrevo pensando em teatro. Quero muito que minha escrita tenha esse gesto solitário, quando está sendo realizado o trabalho, mas que a entrega seja solidária. O ator tem isso. É um trabalho solitário de composição de personagem, depois tem essa entrega solidária. Quando escrevo, quero que o texto passe pelo meu corpo inteiro. Mesmo. Tenho que defender esse texto no corpo inteiro e devolver, entregar para o outro. A escrita é solitária, a entrega tem que ser solidária. Quem me ensinou isso foi o teatro.
“Como escritor tiro a minha roupa, a roupa dos outros, planto bananeira, faço piruetas pelado, vejo tudo de todos os pontos de vista possíveis.”
• No princípio
Imitava o Manuel Bandeira. Fazia umas poesias. Depois, participei de grupos de poesia na escola. Comecei escrevendo para teatro, também. Descobri “quero ser ator”, mas gostei da escrita. Com 14 anos já tinha peças montadas no Recife. Tinha peça infantil. Produzia. Com 19 anos, já estava produzindo peças, apresentando nos principais teatros de Recife. Aprendi muito com a teimosia sertaneja. Eu ia produzir as coisas. Não tinha dinheiro, nunca tive dinheiro. Aliás, até hoje não tenho dinheiro. Mas tenho muita vontade. Acredito que posso. Mesmo não podendo, passo a poder. Queria acreditar nisso. Queria acreditar que não estaria limitado às dificuldades financeiras da família. Achava que o trabalho coletivo era fundamental para erguer qualquer coisa. Aos 19 anos queria colocar a peça A menina que queria dançar, que escrevi aos 14, em cartaz no principal teatro do Recife, o Santa Isabel. Diziam: “Você tá maluco? Ninguém vai aceitar. De jeito nenhum”. Digo: “Mas eu perguntei pra eles? Vocês já estão colocando ‘não’ na boca do teatro”. Eu era um excelente datilógrafo. Comprei uma máquina de datilografia com o primeiro salário que ganhei de office-boy. Datilografava bem, escrevia bem. Fiz um projeto bonito e levei para o teatro. Adoraram. Era novidade, aquela peça de teatro vinha da periferia do Recife. A gente teve temporada no principal teatro de lá. A atriz que fez essa peça é a Patrícia França, que depois ficou conhecida por novelas na Globo, na Record. Foi a primeira peça que ela fez, e ganhou o prêmio de revelação. Faço as coisas porque não posso.
• Pudor
Descobri que tinha muito pudor para ser ator aos 19 anos. Quando você está fazendo peça infantil, tudo bem. Mas aí tem uma peça que o diretor diz: “Tire a roupa”. E era necessário tirar a roupa mesmo para aquela determinada peça. Não conseguia. Não que, na profissão de ator, seja necessário você tirar a roupa. Mas eu seria um ator limitado. Se fosse preciso fazer uma cena X ou Y, não conseguiria. Comecei a perceber que eu tinha muito pudor. Percebi pelo seguinte, também: muito jovem, acompanhava todos os festivais de teatro do Recife. Ia para a plateia. Assistia a peças adultas. Já era conhecido no meio teatral por causa disso. Uma vez, vi uma peça que me deixou completamente em parafuso, no bom sentido. Todos estavam pelados em cena. Não era aquela peça famosa, Blue jeans. Era algo do Jean Genet. Fiquei impressionado. A partir dali, disse: “Não vou ser mais ator”. Como escritor, não tenho pudor nenhum. Como escritor tiro a minha roupa, roupa dos outros, planto bananeira, faço piruetas pelado, vejo tudo de todos os pontos de vista possíveis. Mas, como ator, não conseguiria. Pronto: acabou minha carreira de ator.
• Força da palavra
Como escritor, penso muito como ator. Quero que a palavra passe pelo meu corpo inteiro e chegue ao outro. Chegue ao outro com a força que a palavra tem no teatro. Sempre que escrevo um texto penso num ator ou numa atriz. Penso: “Esse personagem é isso, essa luz é dessa maneira, ela chega em cena e fala isso, ou está fazendo isso”. Isso me ajuda muito na composição dos contos, tanto é que sou muito adaptado para teatro. Adoro. Porque aí os outros ficam nus por mim. Amo teatro.
• Vivendo a literatura
Chegando ao Recife fui fazer teatro, o curso de Letras, trabalhei em banco. Comecei como office-boy, depois escriturário. Estava trabalhando no banco, ia virar chefe de seção. Era um salário bom. Estava ajudando minha família. Comecei a olhar minha trajetória dentro de um banco: “Isso não vai dar certo”. Desisti. Fiz um acordo, sem contar nada em casa, para a liberação do FGTS. Desisti. Cheguei em casa e falei para a minha mãe. Ela disse: “Meu deus, meu filho! Você deixou o trabalho no banco!”. Digo: “Deixei. O dinheiro da indenização é da senhora. Vou passar uns dois anos pensando em literatura e conhecendo os escritores e escritoras aqui do Recife”. Pessoas que eu já lia, mas estava querendo ter uma vida um pouco mais próxima da literatura. Já estava um tempo no banco e virar chefe de seção me daria um gasto de tempo com coisas que não me interessavam.
• Raimundo Carrero
Deixei o banco numa sexta-feira, o acordo foi feito. Na segunda-feira estava começando a oficina de criação literária do Raimundo Carrero. Era a primeira turma dele. Fui da turma pioneira. Já estava com 20 anos, acho. Foi importantíssimo. Era tudo que eu estava querendo. Acredito muito nessas coisas. Se não tivesse deixado o banco, não teria começado a oficina do Raimundo Carrero, onde conheci amigos que até hoje são importantes para a minha vida. Ali, comecei a mostrar os meus textos, já com muita influência de teatro. Já querendo escrever os primeiros contos. Não era mais poesia. E ali percebi — a oficina é boa por isso — que, quando lia meus textos, eles causavam muita estranheza. Algo do tipo: “Mas pode rimar? Você escreve muito rimado”. Eu disse: “Quem disse que não pode rimar?”. Era muito atrevido. Coisa da juventude. Mas, ora, posso fazer o que quiser! Lembro que dei a resposta imediata: “Não trabalho com rima. Trabalho com ímã. É um sistema magnético. Uma coisa vai puxando a outra”. Vejo que uma palavra está sozinha e fico com o ouvido. Digo: “Daqui a pouco vou ter que arranjar uma companhia pra ela”. Era uma coisa de ouvido, que eu não sabia que tinha de alguma forma herdado da cantoria, do cordel. Não foi algo que visitei muito na minha infância, pois saí muito cedo de Sertânia. Mas a cantoria da casa. A casa nordestina fala muito cantado. Minha mãe falava muito, muito cantado. É um sistema magnético. Cantoria pura. Pegou no meu juízo. Pegou no meu ouvido. As pessoas queriam tirar aquilo que para mim era valioso demais. Eu escrevia dentro daquele registro musical, cantado. Quando cheguei a São Paulo foi melhor ainda, porque as pessoas diziam: “Como é isso que você faz?”. Geralmente não tenho uma história para contar. Tenho uma primeira frase que vai buscando essas palavras a partir desses apelos magnéticos, sonoros. Na oficina, foi bom porque fui encontrando meus pares, mas também tendo que responder questões em torno do que eu escrevia. É fundamental para quem quer escrever, encontrar sua turma. E defender aquilo que você acha potencial na sua escrita.
• Primeira frase
Nunca tenho uma história. Tenho, de fato, uma primeira frase. Ou uma provocação. Às vezes fazem uma provocação para mim, um convite para fazer um conto sobre determinada coisa. Tudo bem fazer um conto sobre determinada coisa, mas tenho que ter a primeira frase. Não tem jeito. Não é com a ideia que vou construir, é com a palavra. Uma palavra vai puxando a outra. Costumo dizer que tenho uma espécie de ouvido ferido. Minha mãe, quando estava muito aperreada, era muito ladainha: “Meu Deus! Meu Deus! Jesus!”. Toda vez que ouço esse registro vocal, essa espécie de aperreio, quero compactuar. É uma espécie de trauma sonoro. Às vezes, ouço uma coisa na rua e preciso escrever sobre. Tem uma história que conto sempre. Eu estava vendo televisão e uma mulher estava sendo flagrada, por esses programas sensacionalistas, dando o filho. O repórter chegava perto da mulher e ela só dizia assim: “Dei! Dei! Dei!”. Ela ia correndo, e o cara correndo atrás. Fiquei muito tempo com esse “dei!” da mulher. Quando fui escrever, pensei no que a mulher falava. Tento em primeira pessoa. Tento em terceira pessoa. Aí foi um momento que disparou, nessas minhas tentativas, quando conjuguei o verbo inteiro. Quando conjuguei o verbo inteiro, ela disparou a falar. Ficou assim: “Dei José, dei Antônio, Maria, dei. Daria. Dou. Quantos vierem. É só abrir o olho. Nem bem chorou, xô. Não posso criar. É feito gato, não tem mistério. É feito cachorro na rua, rato no esgoto. Moço, quem cria? É fácil pimenta no cu dos outros. Aí vem a madame, aí vem gente dizer: arranje um trabalho. Arranje você. Me dê o trabalho, agora. Não sei ler, não sei escrever, não sei fazer conta: José, Antônio, Maria, Isabel, Antônio. Dou nome assim só pra não me perder. Quem mais? Evoé, Evandro. Agora chamem como quiser. O filho depois ganha vida importante. Sei de um que até é doutor sei-lá-de-quê, eu estou pouco me lixando. Menino é para largar mesmo. Agora dizer que dá um peso no peito, a consciência chumbada, que nada, não tem essa. Vem você morar nesse buraco. Vem você dar um jeito no mundo, repartir seu quarto. Nunca. Esse olho é irmão desse. Veja, Maria, pôs Jesus no mundo, filho do Espírito Santo. O Pai largou. Você viu como José sumiu, se evaporou? Maria é que foi lá, no pé da cruz, se arrepender. Eu, não. Eu quero mais é distância. Você ter filho chorando, no seu pé. Fome, está escutando? Fome. O que você faz com a fome, tem remédio”. É esse processo. Vou pensando no que essa mulher está falando, aí vou investigando e o personagem vai ficando em pé. E eu, pensando “luz, câmeras”. Escrevo para não julgar os outros. Escrevo para entender. Compactuar.
• Vexame
Só escrevo porque sou exagerado. Escrevo porque quero dar vexame. Era o que a minha mãe fazia. Minha mãe dava muito vexame, falava demais. Vexames líricos absurdos. Ela falava, falava. Falava e comia uma farofa ao mesmo tempo — é uma farofa que você come com a mão. Ela falava e jogava uma farofa daquela na boca, se engasgava todinha. Era um vexame. Tem uma frase que nunca escrevi, que todo dia à noite ela dizia. Ia entrando para o quatro: “Amanhã não amanheço viva”. Olha o teatro. É teatro puro. E se recolhia. Eu, pequenininho, ia atrás para ver se ela estava respirando de noite. Quando ela acordava — viva, claro —, teatro também, e dizia assim: “Acordei com uma dor”. Minha tia olhava para ela: “Eu também”. Era aquela dor, aquele drama. Sou exagerado nesse sentido. Essas coisas alargadas de palavras, de dor, de sombra. Tudo isso tem na minha literatura. Sou exagerado nessa espécie de registro. Nunca escrevi essa frase da minha mãe, mas ela me deu frases o tempo inteiro. Essas frases me levam à construção da história. Uma palavra vai puxando outra. Dificilmente tenho ideia. Se tenho ideia, tenho que ter a palavra.
• Amanhã a Maria limpa
Recentemente, eu estava numa festa de um amigo, num apartamento, e estava uma zorra — bituca de cigarro, outro amigo vomitou num canto, o outro já foi num sei para onde. Aquela confusão absoluta de final de festa. Aí você está indo embora e diz: “Deixa eu recolher aqui, ajudar”. “Não, não precisa. Deixa que amanhã a Maria limpa.” Veja bem. Deixa que amanhã a Maria limpa. Frase para mim. Mas Maria não veio pra festa. Maria não estava na festa. Mas a gente geralmente faz a festa um dia antes de a Maria chegar, é ou não é? A Maria não estava nem aqui, não veio nem tomar uma água. Quis escrever sobre isso. Descobri que esse conto é todo em diálogo. Está no livro novo, Bagageiro, é todo em diálogo e corto o conto com algumas considerações de coisas que fui lembrando. Como chamo esse livro de ensaios de ficção, então, quando termino aquele diálogo, vem um ensaio sobre lixo espacial, as coisas que a gente vai soltando pelo caminho. Geralmente depois do Carnaval vem uma matéria de jornal dizendo sobre a eficiência da prefeitura que foi limpar, em três horas, todo o lixo que as pessoas deixaram pela rua. Pode ver. Se no outro dia tem lixo, a matéria é diferente. “Prefeitura não conseguiu dar conta. Não limpou.” Mas veja uma coisa. Já vi essa limpeza sendo feita. Não tem instrumento para recolher tudo que nós deixamos pelo caminho, não, enquanto brincamos o Carnaval. Não tem. Também coloquei essa questão atravessando o conto, em que cito os garis, a eficiência da prefeitura.
• Oficinas literárias
Os caras foram com três câmeras e me filmaram em casa, me filmaram no bar onde vou beber [para a gravação de sua oficina de criação literária virtual]. É uma oficina que fica muito próxima de quem a está assistindo. Você pode assistir no celular. Eles me gravaram falando e depois foram editando os capítulos. Agora você pode assistir em qualquer lugar. Gosto muito de coordenar oficina, porque também fui raciocinando muito sobre a escrita a partir do momento que fui conversando com as pessoas que participaram. As pessoas que chegam à oficina estão guiadas pela mesma paixão, então o que a gente conversa é sobre essas paixões, os mesmos problemas, mesmas dificuldades. Vou ali conversando, alertando para isso, alertando para aquilo. Coordeno desde 2003. Tenho muita felicidade em ver muita gente sair dessas oficinas já com uma trajetória firme na literatura. Provoco concursos durante oficinas, de vez em quando, para revelar um autor ou uma autora. Para poder, de alguma forma, ajudar a trajetória dessa pessoa que está querendo colocar o livro para circular. Desses concursos, por exemplos, sugiram Aline Bei, que ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura com O peso do pássaro morto, Sheyla Smanioto, que ganhou Biblioteca Nacional, Prêmio Jabuti, Prêmio São Paulo com Desesterro, Carol Rodrigues, melhor livro de contos Jabuti e outros prêmios com Sem vista para o mar. Estou falando aqui, mas não como resultado. Falo como orgulho por meus companheiros de batalha. O que faço nas minhas oficinas, na verdade, é encontrar meus parceiros de cerveja. Parceiros do crime.
• Amado em cena
O espetáculo Amado foi uma adaptação que fiz para a Rosane Almeida, do Instituto Brincante. Atriz, diretora, bailarina. Ela me pediu uma adaptação em homenagem ao Jorge Amado. Mas foi muito difícil. Eles me ajudaram muito. Por que era difícil de fazer? O espetáculo se chamava Amado, mas não podia falar Jorge Amado, nem Gabriela, nem dizer nada que fizesse referência direta a qualquer trecho da obra dele. Tive uma ideia de fazer todo mundo mudo, do começo ao fim. Brincadeira. Era por conta de direitos autorais, não entendi muito bem. Mas gostei. Me ajudaram muito. É um espetáculo muito circense, muito vivo. Cheio de dança. Escrevi alguns contos específicos. Por exemplo, acho que é no Gabriela que começa com uma grande enchente. Já que começa com uma grande enchente, coloquei uma cena, na peça, que são os personagens pendurados em árvore e a enchente passando. Fui pegando algumas referências e consegui vencer esse desafio.
• No cinema
O Nossos ossos, que é meu único romance no meio desses contos todos, está com roteiro para cinema. Vai virar um longa-metragem. E me convidaram, recentemente, para olhar esse roteiro, dar uns pitacos. Quem está escrevendo é o Paulo Lins. Agora estamos fazendo juntos um novo tratamento desse roteiro. Fora isso, há uns curtas-metragens que fizeram em torno dos meus livros. Televisão, não. Teve aquele especial na TV Cultura, Contos da meia-noite, onde o Walmor Chagas fez uma interpretação de um conto meu e a Beatriz Segall também. Mas para a televisão diretamente, não.
• Redes sociais
Ajuda você a divulgar um trabalho. Mas eu tenho que usar essa ferramenta, não posso ser usado por ela. A pessoa achar que a vida virtual é vida real, aí é complicado. Já estão fazendo da vida virtual uma realidade, daí o que a gente tem visto — resultado de eleições e tudo mais. É preciso usar com inteligência. Não me conformo que um escritor ou escritora hoje, escrevendo agora neste exato instante, não tenha a curiosidade de saber qual é o poeta que está escrevendo em Teresina, Piauí. Não me conformo. Porque tem muita gente fazendo coisa em Teresina, Piauí. E quem está escrevendo na Venezuela? Quem é que está escrevendo em Santiago do Chile, na Cidade do México, com a tua idade? Escrevendo os primeiros livros. As pessoas perguntam para mim por que conheço tanta gente no meio literário. Acho que um astronauta conhece outro astronauta, não é? Então um escritor você vai conhecendo, vendo as pessoas que estão produzindo por aí, interessado nas revistas que estão sendo lançadas, nos escritores que estão surgindo. Não me conformo que a gente não conheça os escritores latinos, africanos. Por que todos os escritores africanos que conhecemos são brancos? Agora estão aparecendo escritoras negras e tal. Isso é uma questão. As redes sociais nos ajudam na busca disso e no contato com outras inspirações, outros parceiros de batalha.
“Escrevo para não julgar os outros. Escrevo para entender. Compactuar.”
• Contos negreiros
Nunca chamo meus contos de contos. Chamo de cantos, no caso do Contos negreiros. Canto primeiro, Canto segundo, Canto terceiro. Contos negreiros é um livro sobre preconceitos. Começo a ver meus livros todos a partir dessa ótica e acho que todos falam de preconceitos. Prejulgar as pessoas. Não me conformo. Escrevo porque não me conformo. Quero entender os absurdos a minha volta. Contos negreiros era isso, um livro sobre opressores e oprimidos. Por que a gente oprime as pessoas? Por que a gente julga o outro? Por que a gente pisa nas pessoas? E me coloco, também, como um opressor. Não estou fora desse barco. Estamos neste mesmo barco a caminho do mesmo inferno. O livro tem esse tipo de jogo de espelho. O canto que foi pontual para o livro, para eu chegar à natureza desse livro, é o Trabalhadores do Brasil. Meu livro Rasif — Mar que arrebenta começa com uma oração para Iemanjá. Um livro pode começar com uma oração? Canto primeiro não digo que seja uma oração, mas uma introdução ao que vem de diálogo, dessa linguagem magnética, essa linguagem cordelizada. Essa ladainha. O Trabalhadores do Brasil é assim: fiquei imaginando o que estariam fazendo as entidades, os orixás, o que estariam fazendo hoje em dia. Foi essa a ideia. Eles estariam trabalhando sem parar, aí quero que a minha linguagem comece a trabalhar sem parar também. O sistema de ímãs começa a trabalhar. Quando encontro esse processo, vou escrevendo.
• Teresina
Fui a Teresina já tem um tempo. A primeira vez foi no Salão do Livro do Piauí. Lá, conheci o Wellington Soares, um agitador, e lembro que uma prática do Salão do Livro era que um artista local, músico, apresentasse a mesa. Antes da mesa, tinha um cantor, cantora, instrumentista local. Na minha mesa, o músico não pôde ir. Falei: “Aqui não há jovens poetas, pessoas que estão produzindo algo?”. Disseram que tinha um pessoal fazendo a revista Acrobata, e sugeri que convidassem os meninos para abrirem a mesa. Assim fizeram. Resultado: deparei com uma revista de arte e cultura extraordinária, feita a duras batalhas em Teresina. Tem a revista Revestrés, que é de arte, cultura, teatro, cinema. Também feita lá em Teresina. O que eu quero dizer é que a revista Piauí não é de Teresina, é do Rio de Janeiro. As revistas de Teresina, no Piauí, são a Acrobata e a Revestrés. Sabemos disso? Não sabemos disso. Quem é que quer saber de Teresina, no Piauí? É uma coisa muito séria isso. Quando deparei com essa cena fiquei apaixonado pelo Piauí. Fui outras vezes. Comecei um projeto, numa época, que circulei com oficinas de literatura. Fiz questão de começar por Teresina. Os laços se estreitaram a ponto de na Balada Literária, que é um evento que organizo em São Paulo há 13 anos, eu homenagear o Torquato Neto no ano passado. E resolvi começar a Balada em Teresina. Foi tão legal, tão bom, que a gente começou neste ano pela segunda vez em Teresina. A Balada Literária é feita há 13 anos a duras batalhas. Quem me ajuda a fazer a Balada, com uma ajuda muito pequena mas que me permite fazer em Salvador, com apoio do Nelson Maca, e em São Paulo, é a Secretaria da Cultura do Piauí. Por ver nisso uma espécie de encontro de coisas que precisam acontecer, coisas que precisam ser feitas. Muita coisa acontece lá.
• Balada Literária
É um evento que fiz para tomar cerveja. Já fui várias vezes como convidado e mediador à Flip. Acho que a Flip deu um conceito de festa muito bem-vindo para a literatura, que é tudo muito chato, chato demais, coisa morta. Esse conceito de festa é importante para a literatura. Tudo bem. Mas uma festa que tem cerveja quente, long neck e cara… Não perdoo. A cidade recebe muita gente, quando vê a cerveja acaba e só tem long neck quente. Moro no bairro boêmio da Vila Madalena, lá conheço as livrarias e os bares, então pelo menos não vai faltar cerveja gelada. Foi isso. Uma motivação muito nobre. Encontrei o dono da Livraria da Vila em Paraty e disse: “Vamos fazer uma festa literária lá na Vila Madalena? Para este ano”. Tenho muitos amigos, fui ligando para um e para outro. No primeiro ano participaram Chico César, José Miguel Wisnik, num bate-papo mesmo, e os lançamentos nos bares. Resultado: já são 13 anos. Não tenho patrocinador. A verba da Balada nem existe. Agora mesmo estou no pós-Balada Literária e o pessoal já está me ligando. Tem gente que pago em suaves e humilhantes prestações do meu próprio bolso. Sei que essa palestra que estou dando aqui vai pagar a palestra de alguém que fez para mim lá na Balada. Mas não deixo de fazer. Pela Balada já passaram de Antonio Candido a Ney Matogrosso, Caetano Veloso, Arnaldo Antunes, Conceição Evaristo várias vezes. Muita gente passou e passa. É uma festa feita de conversas, debates, baladas, rodas de samba. Não é uma festa para multidão. É para beber, encontrar pessoas, ir pra festa, dançar.
• Diversidade
O bom da Balada é que trago autores de Porto Velho. Trouxe um autor de Porto Velho chamado Elizeu Braga, que nunca tinha estado em São Paulo. Hoje ele está viajando o Brasil todo, porque as pessoas conheceram o trabalho dele. Emicida, em começo de carreira, vendendo o CD dele por R$ 2,00, participou da Balada Literária. Esse ano tinha Benito Di Paula com Xico Sá. O bom da Balada Literária é que não tenho pressão de ninguém para me dizer qual autor levar, pressão de a editora dizer “leve esse que tá lançando livro”. Sabe por que Benito Di Paula foi à Balada Literária? Porque sou amigo do filho dele. Não podia pedir ao Benito, que não conheço, então pedi ao filho: “Diz pro Benito ir lá sem ganhar nada”. O Benito foi. Foi uma mesa extraordinária. A Balada também tem muito tempo que leva todos os gêneros sexuais e literários. Já foi a Rogéria lá. Temos o sarau da diversidade todo ano — transformistas, show de drag queen. Tem também o jovem que está com seu fanzine e encontra o Caetano Veloso. Todo mundo ao mesmo tempo. A Balada tem essa cara já há algum tempo, mas é feita a duras batalhas mesmo. Não posso deixar de fazer mais porque a festa já não é minha, mas de quem chega nela.
• Brasil de hoje
Estava acordando, nos últimos dias, com vontade de dormir de novo. Nunca tenho isso, só quando estou meio deprimido. E eu estava meio deprimido pelo clima geral. Pelas brigas que tive que enfrentar, inclusive dentro de família. Brigas. Estou brigando para dizer o óbvio. Você pode não entender nada de política, mas você entende de amor? Você entende de afeto? De respeito? Você receberia em sua casa alguém falando as coisas que essa determinada pessoa falou e fala contra os índios, contra os negros, contra as mulheres? “Ah, não, ele falou brincando.” Você receberia num jantar, na sua casa, alguém que está falando dos seus amigos? Porque eu tenho amigos gays, negros. As mulheres são fundamentais para a minha formação. Para a minha vida. Você receberia na sua casa, para tomar um chope, uma pessoa falando absurdos atrás de absurdos? E está mostrando já, garantindo que não teremos Ministério da Cultura, porque cultura não é importante. Esporte não é importante. Ministério do Trabalho para não poder fiscalizar tantas barbaridades que acontecem pelo Brasil mais profundo de pessoas que trabalham como escravos. Falar dos índios. “Índios”? A maneira como se usa “índio”, “tribo”. Não é tribo, é aldeia. Não é índio, é indígena. Caramba! “Índio”? Falando como se fosse uma coisa de quinta categoria. Das mulheres. Dos professores. Que absurdo é esse?! Expurgar o Paulo Freire da educação brasileira. Uma caça aos comunistas. As pessoas não sabem nem o que é comunista. Vai na natureza do que é ser comunista, para você ver se concorda ou não. É um negócio que foram deturpando, deturpando, deturpando. E essa valorização extrema do que não é utopia, do que não é arte, do que não é respeito, amor, fraternidade. Isso é gravíssimo. A celebração de tudo que não é sentimento. E sistematicamente as pessoas recebendo essa espécie de fuzilamento. Não viram, por exemplo, a campanha que estava na televisão, “O Brasil que você quer”? [da rede Globo] Olhe como a rede de televisão é plural. Ela ouve desde a mulher mais simples de Porto Velho à professora lá do Ceará, ao estudante lá do interior do Paraná. Que coisa mais plural. Para dizer o quê? A mesma coisa. Somos contra a corrupção, corrupção, corrupção, corrupção. Mais segurança, mais segurança, mais segurança. Batendo o martelo, o tempo inteiro, no juízo das pessoas. O que nós tivemos? A celebração do major, do general. Onde é que a gente vai parar? A arte vai ser ainda mais fundamental. A Balada Literária, que é um evento que não tem rédea presa com absolutamente ninguém, vai homenagear Paulo Freire agora em 2019. A partir de já, estou falando do Paulo Freire. Vai ser Paulo Freire, sim. Já começamos a nos articular para essa homenagem. Vejo algumas pessoas dizendo: “Fala isso enquanto pode falar”. Olha, eu faço as coisas que eu NÃO posso fazer. Já faço as coisas que não posso fazer. Quem vai autorizar a falar, o que é isso? Agora é que vou falar. Vou falar muito. Vou falar demais. Aprendi a desobediência completa com a arte. A obediência é ao sentimento, não a isso que está aí.