Marçal Aquino

“Escrever é a grande alegria que descobri no mundo.”
Marçal Aquino. Foto: Matheus Dias
01/01/2008

Marçal Aquino encerrou a temporada 2007 do Paiol Literário, projeto realizado pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba. A partir de uma pergunta inicial — qual a importância da literatura na vida cotidiana? —, Aquino falou do início como leitor numa fazenda no interior de São Paulo, de cinema, de seu processo criativo, de sua intensa paixão pela literatura, entre outros assuntos.

• Inutensílio
Eu não acredito que a literatura seja capaz de transformar o mundo. Não é para isso que ela serve. Acredito que a literatura transforma quem gosta de literatura; gera um sistema em que quem escreve e lê com paixão não consegue viver sem. Mas é um “inutensílio”, como diz o Manoel de Barros a respeito da poesia. A literatura é um “inutensílio” e isso é cada vez mais evidente neste mundo onde tudo é pragmático, tudo tem sentido definido. Seria uma pessoa completamente diferente, se não tivesse tido contato e o encantamento pela literatura. Eu tenho a impressão de que seria uma pessoa menos feliz. Isso é definidor do que eu quero no mundo. Acho que todo mundo está aqui numa tentativa de tornar esse vale de lágrimas menos pesado. A literatura é uma dessas janelas através das quais podemos vivenciar experiências. Mas esse objetivo é pessoal, absolutamente pessoal; não é para a massa. Costumo dizer que hoje a literatura se aplica a uma seita. Há muita igreja com mais fiéis do que leitores de literatura. E ninguém consegue me desmentir, porque é o seguinte: a tiragem média de um livro é de 3 mil exemplares. Isso significa que há 3 mil potenciais interessados em literatura, dos quais 1,5 mil são escritores. Portanto, sobram outros 1,5 mil. Destes, 700 são jornalistas que, às vezes, são obrigados até a ler, mais os professores. Então, deve ter uns 300 neguinhos que não têm nenhuma veleidade literária, mas que adoram literatura. É com essa gente que eu quero falar; é com essa gente que tenho prazer de dialogar; e sou feliz assim.

• Contar histórias
Eu sempre quis ser escritor. Venho de uma casa onde não havia nenhuma tradição em literatura. Nasci numa fazenda em Amparo, no interior de São Paulo, onde vivi até os seis anos. Sou herdeiro direto das estórias orais, dos causos contados longe da televisão. Na fazenda não havia energia elétrica, então, à noite o pessoal se reunia à luz de lampião para conversar. Por isso, digo sempre que o meu interesse é contar histórias, pois aprendi o mundo ouvindo histórias. Comecei a ler história em quadrinhos; fiz a transição para a literatura e em determinado momento — não sei por que razão —, achei que queria escrever, achei que aquilo me fazia feliz. E comecei a fazer minhas histórias, mas sabia que isso não era uma profissão. Por volta dos quinze anos, escrevia poemas à mão em um caderno e já percebia claramente que não dava para viver daquilo. Mas o que eu queria fazer era escrever. Então, descobri que o jornalismo poderia ser uma saída. Nunca quis trabalhar numa outra mídia que não fosse a impressa; sempre gostei de texto. Tive chance de trabalhar em rádio, em televisão, mas nunca topei. Sempre preferi ficar no jornal impresso, hoje um dinossauro caminhando velozmente para a extinção, mas eu também vou para a extinção; então, iremos juntos. Vamos legar um mundo sem jornal impresso, muito mais triste, em minha opinião. Tive a felicidade de trabalhar no Jornal da Tarde, um jornal que num certo momento dava grande importância ao tratamento literário das notícias.

• Concisão e realidade
Comecei como revisor, fui repórter, redator, subeditor. Deixei o jornalismo como subeditor no Jornal da Tarde. Fiz de tudo: polícia, cultura, geral, esportes. Ao contrário da maioria dos escritores com quem mantive contato nas redações, nunca achei que o jornalismo atrapalhava minha literatura. Os escritores-jornalistas reclamam muito de que o fato de lidar com o texto 24 horas por dia acaba esterilizando o texto literário, e perde-se um pouco o tesão pela coisa. Para mim é ao contrário: primeiro, o jornalismo definiu a coisa da concisão; sempre amei a concisão. O escritor que mais admiro no Brasil é o Graciliano Ramos; impossível pensar em um escritor mais seco, mais conciso. Então, fui trabalhar numa coisa que de certa maneira poda o texto, não deixa adjetivar; foi um treino importante para mim. Outra coisa, mas secundário, é lidar com a realidade. O meu trabalho como repórter me ensinou a olhar, treinou meu olhar, foi importante para mim como escritor.

Mentir
A ficção é mentira. Olhar para o mundo e mentir. É uma delícia poder mentir. O jornal também mente. Fico preocupado quando leio os jornais, porque sei que estão mentindo fortemente. O grande barato da mentira na literatura é convencer o leitor de que aquilo é verdade. A coisa que mais me realiza é quando alguém se aproxima e pergunta: “Isso aqui aconteceu mesmo?” Significa que a minha mentira está bem contada.

• Realidade e conversa alheia
É inevitável utilizar as minhas experiências como jornalista na literatura. O ponto de partida é o real. Em 1991, escrevi o conto Matadores, que acabou virando filme. O texto nasceu de uma reportagem que fiz na fronteira Brasil-Paraguai. Passei uma semana entrevistando pistoleiros e fiquei fascinado com aquilo, porque o pistoleiro era muito diferente daquele que o cinema americano nos ensinou a ver. O matador brasileiro era muito diferente e achei que aquilo era um bom motivo para investigar com a ficção. Daí, então, é mentira: parte de um dado do real e imagina algo que possa ter acontecido. A literatura tem essa mágica. Ela tem uma coisa que — na falta de um nome melhor — chamo de lógica narrativa. Uma vez que o escritor põe esta lógica em movimento, começa a se assustar com a realidade, como a realidade comprova aquilo; é a coisa visionária e antecipatória da literatura. A intenção é ser influenciado pelo real e a partir dele bolar histórias, ficção. Faço isso diariamente. Conto até com certo pudor essa mania de ouvir conversa alheia. Sou o rei da conversa alheia; não consigo pensar em alguém que gosta mais de conversa dos outros do que eu. Adorava quando antigamente a tecnologia era menos avançada e havia linha cruzada. Quando chegava ao Rio de Janeiro era uma maravilha. Você tirava o telefone do gancho e já estava falando; eu ficava só ouvindo. Por que espionar uma pessoa? Porque se você vai conversar com alguém, imediatamente ela assume uma máscara. Sou muito curioso pelo outro. Digo sempre que tudo que não presta me interessa. Dia desses, estava andando na rua, e vi um casal brigando — a menina era muita mais jovem que o cara. Ela disse: “Danilo, você me desfrutou”. Achei aquilo pura poesia. Pensei: vou seguir os caras. E saí atrás do casal para saber por que eles estavam brigando. Fui andando e esqueci aonde ia; perdi meu rumo e na melhor parte da história, eles entraram num edifício, fecharam o portão e eu fiquei para fora. Como solucionar isso? Bolei uma história. Esse é o trabalho do ficcionista. O melhor emprego para mim seria de ascensorista — eu ouviria só um pedaço da história e completaria o resto. Não poderia ser jamais aquele escritor fechado em casa. Mas existem escritores que conseguem construir coisas geniais sem sair do próprio quintal.

Marçal Aquino. Foto: Matheus Dias

O mais mentiroso possível
Isso já me trouxe muitos problemas. Por exemplo, o Beto Brant resolveu fazer um filme do conto Matadores. Quando começamos a trabalhar no roteiro, alguém foi ao Paraguai para procurar locação e voltou apavorado. E disse: “De onde você tirou esse nome? O cara existe”. Sem querer, eu tinha gravado o nome do chefão do tráfico — um cara poderosíssimo que certa vez tirou até a Rede Globo do ar na região da fronteira Brasil-Paraguai. Era uma cara que mandava matar a distância. E eu, muito ingênuo, esqueci desse lance e botei o nome do cara na história; no roteiro, mudamos, é claro. Fui conversar com o advogado dele, pois precisávamos de uma autorização para filmar em certa região, ele me disse: “Deixa eu ler o livro; quem sabe meu cliente apóia vocês”. Eu falei: “Vou te mandar um exemplar, pode deixar”. Está esperando até hoje. Então, evito a menção direta; prefiro que aquilo me provoque uma reflexão, me provoque a ficção. Tento fazer o mais mentiroso possível.

• Violência no cinema
O público está pedindo isso. Nas quatro últimas grandes bilheterias brasileiras — Cidade de Deus, Carandiru e Tropa de elite e Dois filhos de Francisco (este não é policial, mas é um caso de polícia) — há o predomínio da temática da violência. Ninguém fica pirateando o filme da Xuxa na proporção que foi pirateado Tropa de elite, por exemplo. Estima-se que são 12 milhões de cópias. Eu duvido desses números. No Brasil, tudo é chutado, tudo é muito chutado. Como assim, 12 milhões? Então, sabemos quem são os piratas, vamos prendê-los. Agora, há um interesse do público em ver esse Brasil. Acho isso pobre. O cinema é muito mais que isso. O cinema que me interessa hoje está longe disso. A minha única passagem tocando diretamente nesse assunto, embora não tenha sido modismo, foi em 2000, com o filme o Invasor, que toca nessa coisa real. No livro, eu queria discutir a violência. Eu pensava muito em como quem mora nas grandes cidades estava se habituando com a violência. Eu via coisas horrorosas durante o dia. Na rua onde eu morava, a polícia cercou um cara e deu duzentos tiros nele. Olhei e pensei: “Isso tem que sair nos jornais amanhã”. Saiu uma notinha. Essa banalização da violência estava me preocupando. A origem do Invasor é discutir um pouco essa questão. A partir de Cidade de Deus [o filme] há toda uma seqüência. Aí já é o cara querendo faturar. Não é à toa que a Globo está negociando uma série do Tropa de elite, como já negociou Cidade dos homens. Isso é muito pobre. Pessoalmente, tenho consciência de não tratar a violência como fetiche. Se o roteirista é bem-sucedido com um filme sobre violência, todo o diretor que falar de bandido vai chamá-lo para fazer o roteiro. Recentemente, alguém me ligou e me disse: “Olha, não quero que você escreva o roteiro. O problema é o seguinte: tenho um bandido na história que está mal formulado; quero que você venha formular o bandido”. Há uma demanda por ver no cinema isso que se vê diariamente em qualquer cidade. As emissoras, as televisões, por exemplo, estão interessadas naquilo que dá público. O José Padilha [diretor de Tropa de elite] foi sondado por três emissoras de TV pra fazer uma série.

• Responsabilidade e espertalhões
Para o escritor, nenhum tema deve ser tabu. Caso contrário, não merece definir-se como escritor. Se ele tem tabus com alguns temas, deve deixar para a Zibia Gasparetto baixá-lo depois de morto. No entanto, o escritor tem responsabilidade; tem de pensar em que mundo vive. Não existe essa história de escrever fora do seu tempo. Por mais que pense que pode estar fora do seu tempo, não está. Pode-se escrever literatura à la Balzac hoje, mas o autor será de alguma maneira produto do seu momento. Então, o escritor não pode se furtar a dar o seu testemunho. É importante separar quem está tentando fazer arte, tenta refletir, provocar indignação de quem está só a fim de faturar. O cara olha e diz: “Cidade de Deus tem cinco milhões de espectadores, vamos fazer um Cidade de Deus disfarçado”. O documentário Ônibus 174 é um dos filmes de maior sucesso fora do Brasil. É dirigido pelo José Padilha, por coincidência o mesmo diretor do Tropa de elite. Ele lida com um material gigantesco daquele seqüestro do ônibus no Rio de Janeiro e vem o Bruno Barreto fazer uma ficção em cima do ônibus 174. Eu disse: “chama de Ônibus 171”, porque isso é golpe. A ficção não pode tratar desse assunto, não existe nenhum aspecto desse episódio que não esteja desvendado pelo documentário do Padilha. Há um pouco de tudo. Há o espertalhão, o cara que quer faturar e que não tem responsabilidade nenhuma. Há o bispo da Record [Edir Macedo], que ofereceu milhões para o Zé Padilha montar uma série. Quer dizer, o negócio é faturar.

• Os mistérios do mercado
É profundamente triste perceber que alguns escritores estão sendo manipulados a pensar que o mercado é o senhor. Quantos escritores vivem hoje de literatura no Brasil? São pouquíssimos; não existe um mercado. Há uma caixa preta na história literária brasileira que terá de ser aberta. Num mercado em que os livros têm tiragens médias de 3 mil exemplares (estas tiragens não vendem; é ilusão achar que vende, até porque há o imenso número de analfabetos, o livro custa caro, entre outras desculpas), vêem-se gigantescas movimentações. Editoras estrangeiras estão chegando como se aqui fosse o Éden. Tem algo de estranho e o escritor é o último a saber das coisas. No entanto, enxergo como positivo o escritor não conseguir viver de literatura, pois lhe permite fazer os livros que tem vontade. Eu nunca aceitei a tutela do mercado. Eu nunca quis a tutela do mercado até porque a considero ilusória. Muitos editores me procuram e dizem: “Olha, você não acha que está faltando um livro sobre um determinado tema?” Eu digo: “Pode até estar faltando, mas não sou eu que vou escrever”. Conheço escritores que ficam ali tentando entender o que o mercado está querendo. É uma ilusão. Se o entendimento do mercado fosse dessa maneira tão translúcido, não existiriam fracassos. Nem no cinema, nem na literatura, nem na música. É impossível sondar o mercado de antemão. As editoras tentam, começam a olhar com mais atenção para determinado livro que fez sucesso. Olhando-se a lista dos mais vendidos, parece que está acontecendo algo em Cabul. Penso: “Cacete! Tanta coisa acontecendo aqui, por que se pensar tanto em Cabul?”. É isso. Num primeiro momento, pensei que era o exotismo do lugar, mas não é. Na verdade, é o modismo. Há uma nova edição de O caçador de pipas, com carta do autor [Khaled Hosseini] para o leitor brasileiro. Picaretagem. Desculpa-me quem gosta. Defendo que se deve ler Júlia, Bianca, Sabrina; deve-se ler bula de remédio. Deve-se ler tudo. Agora, é uma pobreza ver Cabul de acima a baixo na lista dos mais vendidos. Nem Cabul sabe disso.

Celebridades
Hoje, o escritor (a voz do escritor) não tem peso nenhum. No conceito social das coisas, o escritor é o último a falar. E escritor fala muita merda também. Como todo mundo. Você é chamado para falar porque, de certa maneira, a imprensa acha bonitinho ter um escritor opinando. Os jornais ligam para mim diariamente para perguntar sobre tudo. Hoje também há essa coisa de cultuar muito as celebridades. Recentemente, vivi uma situação ridícula. Estava na fila de autógrafos da biografia do Tim Maia, do Nelson Motta, quando de repente uma cantora que conheço chega e me dá um beijo, me cumprimenta. Imediatamente, todos os fotógrafos me cercam e começam a me fotografar. A cantora se afasta e eu continuo sendo muito fotografado. Finjo que não é comigo, mas não tem jeito. Em seguida, vem o cara com um bloquinho: “Como é o seu nome mesmo?” Eu viro e digo: “José Sebastião”. Ele diz: “Seu nome não é José Sebastião”. Eu digo: “É José Sebastião. Você está me fotografando e não conhece meu nome? Bota José Sebastião”. Então, sai no jornal, na revista: “José Sebastião e fulana”. Eu acho ótimo. Isso é a prova de que o que interessa é outra coisa. Não tem nenhum fundamento.

• Corno na internet
Estamos na era da indústria cultural, da sociedade do espetáculo como nunca vimos. Há os escritores que gostam disso, se dão bem. Quer uma coisa mais — como é que se chama isso? — onfalofilia (o culto do umbigo) do que o blog? Fico fascinado por isso. Não sou dessa geração, sou um dinossauro. Tenho fetiche com o livro. Eu cheiro o livro. Gosto de livro. Não sou de ir à internet buscar blog para ler. Uso a internet apenas para e-mail e pesquisas em geral. Outro dia, minha filha me disse que havia três comunidades sobre mim no Orkut. Ela me mostrou o comentário de uma menina: “Marçal Aquino, um corno”. Eu falei: “Como ela sabe que sou corno? Que história é essa?” A história é a seguinte: ela foi obrigada a ler um livro meu no fim de semana, pois caía na prova do colégio. Então, ela perdeu o fim de semana e para se vingar escreveu “Marçal de Aquino é um corno”.

• Incômodo e prazer
Escrevo à mão em cadernos. É uma idiossincrasia, não tem nada de extraordinário; é apenas um vício. Não viajo sem meu caderno. Já tive bloquinhos ao lado do criado-mudo. No meio da noite, acordava e anotava alguma coisa, mas no outro dia não entendia minha letra e ficava desesperado. Aprendi que quando uma idéia é forte, ela volta, fica na memória, te incomoda. Pode-se acordar no dia seguinte completamente vazio, mas se aquilo for realmente efetivo na sua vida, vai aparecer. Já me peguei com cadernos antigos lendo coisas que escrevi do mesmo jeito cinco anos depois. Ou, então, não tenho imaginação nenhuma, escrevo sempre as mesmas coisas. Há esse risco. Quando o escritor escreve, é incomodado pelos temas, pelos personagens. Não conheço nenhum escritor que não seja incomodado. Ele é achacado, é acossado por essas coisas. Não é à toa que alguns escritores dizem que é uma doença. Não acho que seja doença; é frescura falar isso. É bom e ruim. O momento da escrita é o de maior prazer. Suponho que não exista momento de maior prazer do que aquele de colocar na página o que está criando. No entanto, é ao mesmo tempo um sofrimento, pois se é obrigado a abdicar de uma série de outras coisas. Existe uma exigência física da literatura. É preciso sentar e ficar horas escrevendo. Não acredito em inspiração. Acho bacana quem acredita. No meu caso, não tem nada a ver com a inspiração. Sento para trabalhar e considero a literatura trabalho. Posso ficar dez horas em cima de um texto e amanhã jogar fora, mas vou lá novamente e tento me satisfazer com aquilo. Sou o meu primeiro leitor e quem deve ser agradado sou eu. Não tem o leitor ideal, não penso em crítica, em mercado, no meu editor, em ninguém. A única obrigação do escritor é consigo mesmo. A única pessoa que ele tem que agradar é ele mesmo e isso é difícil, porque em algum momento você tenta escrever o livro que gostaria de ler. O livro que você acha que não existe. Isso pode soar megalomaníaco e louco. Nada impede o escritor de não escrever nada. Ele tem diante de si uma tela ou página em branco e pode escrever o que quiser. É um momento de absoluta liberdade. Prefiro não pisar em cima das minhas pegadas. Procuro me afastar de coisas. Não consigo escrever imediatamente após acabar um livro. Há um período que chamo de nojo. Fico uma temporada só lendo os outros porque se for escrever, continuarei aquele mesmo livro, o mesmo personagem, o mesmo tom. Em geral, fico no mínimo seis meses sem escrever nem bilhete para namorada.

Marçal Aquino. Foto: Matheus Dias

• “Ela tinha”
Tenho um grupo de quatro/cinco escritores que lêem os inéditos e oferecem sugestões que acato ou rejeito. Em geral, acato e são sugestões muito bem-vindas porque o escrever em si é obrigatoriamente solitário. Às vezes, há uma distorção de alguma coisa que você não percebe. Quando lancei meu primeiro livro e peguei um exemplar — uma emoção que talvez não se repita, embora todo livro pronto seja uma vitória —, abri-o ao acaso e vi “ela tinha”. Odeio cacófago. “Ela tinha”, que merda, perdi a vontade de reler aquele livro. Estragou o livro para mim. Então, passo para os amigos pegarem o “ela tinha” e outras bobagens mais que cometo com freqüência. Uma época, trabalhei dois anos num livro que achava que era o grande livro da minha vida. Quando terminei de ler, sabia que era fraco; você tem essa consciência. Para não jogar fora aquele esforço, passei para um grupo de amigos — um deles considerou-o meu melhor livro; esse, risquei como amigo. Os outros foram lá e falaram que talvez não fosse a hora, dá mais um tempo, deixa amadurecer e eu entendi o recado. Esse é um dos textos que abandonei.

• Literatura infanto-juvenil
Para mim, escrever literatura infanto-juvenil foi um desafio. O Fernando Paixão, editor da Ática, me encomendou um livro para a coleção Vaga-lume, que eu não conhecia. Quando recebi o desafio — naquela arrogância de achar que é bom: “se escrevo para adulto, para criança é moleza” —, resolvi topar a empreitada. Havia um prazo para entregar o livro, que era mais desafiador ainda. Em sessenta dias, tinha de entregar o original. Eu tinha o dia inteiro livre, pois trabalhava à noite no jornal, e me parecia impossível não produzir um texto juvenil trabalhando cinco horas por dia. Mas quando fui ver o que era a coleção Vaga-lume, a coisa me pareceu um pouco mais complexa. Ao fim, escrevi A turma da Rua Quinze, que se tornou best-seller. A primeira edição de 80 mil exemplares vendeu em 6 meses. Gostei da experiência porque me pareceu muito desafiador conseguir interessar o leitor que não tem o hábito da leitura, atrair esse leitor, seduzi-lo. Contei uma história que me seduziria como leitor, se tivesse aquela idade. Lembrei dos livros e autores que lia na época: Tarzan, do Edgar Rice Burroughs, Rafael Sabatini, Jack London, Monteiro Lobato. Queria aquele espírito de aventura. Adorei fazer literatura juvenil, acredito que dei uma contribuição em algum momento. Conheço uma menina que se tornou escritora por causa daquele livro. Mas considerei encerrada a minha participação e não é dinheiro que vai me fazer voltar. Uma coisa que prezo em literatura, e acho que todo escritor deve prezar acima de tudo, é a liberdade de escrever só aquilo que se deseja, quando quiser, do jeito que considerar melhor. Qualquer outra coisa é falcatrua, é fraude. Muitas vezes, tentam tirar essa liberdade porque dizem: “Tem uma linguagem, uma temática que precisam ser observadas”. Neste caso, prefiro ir para casa e continuar ganhando dinheiro de maneira diferente, para que a literatura seja realmente o território da liberdade, ou então não vale a pena.

Voz própria
O Augusto Massi resolveu fazer uma antologia de contos na CosacNaify dos meus dois primeiros livros — um material com mais de vinte anos. Foi interessante reler aquilo, mas eu queria mexer. Não toquei naquilo porque não teria sentido. Sou muito diferente hoje do escritor que era, se é que posso falar isso sem soar pretensioso, há vinte anos. Melhor ou pior? Não sei. Uma coisa é certa: aquilo não me encanta mais. Eu olho e digo “legal”, mas sei de onde veio isso. Sei quem eu estava lendo na época. Tem todas essas coisas. O interessante é quando se identifica uma voz. Claro, amparada por todos os caras que lia, que amei, que me marcaram. Não existe autogênese, não existe essa possibilidade. Nenhum escritor se forma sozinho. Escritor só se forma lendo. Naqueles primeiros textos me parece mais evidente de onde são as fontes, quem são os meus pais naquele momento e hoje é meio escuro o negócio. Eu tenho vários pais, mas eles não se apresentaram no cartório. Então, posso falar numa voz própria.

• Leituras
Adoro ler e sou curioso. Antigamente, ia até o fim, lia livro ruim pra cacete, lia até o fim. Ficava puto com o autor, mas lia até o fim. Hoje, o autor tem 40 páginas para me convencer. Outro dia, estava relendo, tentando reler um livro. Não vou citar o autor porque ele está vivo e é meu amigo. Tentava reler o livro porque todo mundo fala bem, mas eu acho o livro uma merda. Tentei ler e sofri muito. Daí, peguei o livro de novo após dez anos. Sou uma pessoa diferente, sou um leitor diferente e comecei a sofrer o mesmo problema. Chegou uma hora que falei “não vou ler mais esse cara”. Virei a página e tinha uma marquinha no mesmo lugar em que tinha parado na outra vez. Você tem de saber do que gosta. Gosto de muita coisa. Leio muito os brasileiros; a literatura estrangeira, leio numa escala muito menor. Há autores que você não leu direito. Fora o “problema”, que acontece com qualquer um que após os 40 anos, da releitura. Tem hora que não arrisco e vou reler o autor de que gosto. Uma encarnação só é pouco para tantos livros. Então, a gente faz o possível.

• Início sem orientação
Eu lia muito quadrinho; tinha caixas e caixas de gibi. Achava livro muito chato porque tinha pouca figura. Já gostava muito de cinema. Um dia um amigo me levou um livro do Tarzan. Não sabia que existia um livro do Tarzan só de texto. Resolvi ler e descobri o mundo. Era muito diferente do gibi e era muito melhor porque se passava aqui dentro [da cabeça]. Não estava mostrado, não estava desenhado. A partir daí, fui gradativamente deixando de lado o quadrinho e mergulhando no universo dos livros. Não tinha orientação nenhuma. Li Moby Dick aos 14 anos; em seguida, peguei o Nietzsche. Você fica pirado. Mas é muito chato porque você perde muito tempo lendo uns caras que não têm nada a ver. Tive orientação com uma professora no colegial. Estava com 17 anos e tive uma professora que percebeu que eu gostava de escrever e de ler. Foi um eixo para mim, uma espinha que me fez perder menos tempo. Porque quando não se conhece, se lê de tudo. Aos 16 anos, li O despertar dos mágicos. Alguém conhece isso? Isso é o primeiro livro de auto-ajuda que se tem notícia. Eu freqüentava a biblioteca de Amparo e o bibliotecário entendeu errado. Por conta de eu ter emprestado determinado livro, ele achou que eu gostava de determinado tipo de leitura. Então, li um pouco de tudo. Foi bom e ruim. Ruim porque perdi muito tempo. Por outro lado, descobri autores que talvez pouca gente conheça e vão morrer no anonimato. Considero esses autores tão importantes para mim quanto, por exemplo, o Rubem Fonseca, que descobri por acaso. Estava numa feira de livro e um vendedor me disse o seguinte: “Você gosta de literatura brasileira?” Eu estava comprando livros de autores brasileiros contemporâneos. Ele me disse: “Eu tenho uma coisa, mas não posso mostrar aqui para você”. Como se fosse revista de mulher pelada. Eu achei ótimo. Entrei num cantinho e ele me mostrou Feliz ano novo, que estava proibido. Eu comprei e fiquei louco por aquilo. São descobertas que se faz meio às trombadas.

• O túmulo de Kafka
Ganhei um prêmio literário e era muito dinheiro e não tinha o que fazer com ele. É sério; parece mentira falar isso, mas não sabia o que fazer com a grana. Queria fazer algo significativo porque era um dinheiro importante que ganhei com literatura. É muito estranho ganhar dinheiro com literatura. Dá até a impressão de que é um dinheiro indevido. Então, resolvi visitar o túmulo do Franz Kafka. Quando cheguei a Praga, me surpreendi porque não foi fácil achar o túmulo do Kafka. Me mandaram para um cemitério judeu no centro de Praga [o Straschinitz]. Um cemitério lindíssimo superarborizado, é um ponto turístico. Achei magnífico fazer essa homenagem ao Kafka. Tempos depois, li que o Philip Roth fez a mesma coisa, a mesma loucura de viajar para visitar o túmulo do Kafka.

• Experiência no teatro
Já escrevi para teatro e me arrependi amargamente. Não é uma linguagem que domino. Talvez seja a grande linguagem; talvez seja o grande desafio da linguagem. O teatro tem uma coisa fantástica: o texto está lá, mas ele vai se transformando diariamente. Toda noite, o texto vai ser posto à prova de forma diferente. Não adianta, uma peça é diferente a cada encenação. Então, do ponto de vista de potencialidade, talvez o teatro seja maior que a literatura e muito maior do que o cinema. Na minha experiência com o teatro, fiz dois esquetes em São Paulo. Quando vi esses esquetes encenados, fiquei muito aflito porque notei que estava tudo errado, queria mexer na fala. Não foi uma experiência bem-sucedida. Olho o teatro com grande respeito.

• Editar um livro
Sou de uma geração que se convencionou ser chamada de “marginal”. Fazíamos nossos próprios livros com mimeógrafos. Publiquei um negócio chamado “Tira gosto poético em São Paulo”, um livrinho intitulado A depilação da noiva no dia do casamento. Nenhuma editora queria aquilo, então nós pagávamos do próprio bolso e vendíamos para amigos, etc. Depois, publiquei um volume de poemas em Campinas, que tinha sido recusado por várias editoras. Aí, atravessei dez anos tentando publicar um livro de contos, porque sou formado na década de 70, época de ouro do conto brasileiro. Li todos os contistas brasileiros e logicamente na hora de escrever, escrevia contos. O problema foi que na década de 80 o conto ficou maldito. Ninguém queria conto. Então, fiquei dez anos tentando publicar esse livro. Conselhos para escritores: se acha que escrever é importante, é importante na sua vida, deve ser muito importante também ler. Não consigo dissociar uma coisa da outra. O escritor tem de ler. Não acredito em escritores que não lêem. Eu já vi escritores que dizem: “Eu só li um livro na minha vida”. Mentira. Não existe escritor que não leia. Como é possível escrever se não se é violentado pela literatura? Se não se permite que a literatura entre em sua vida e a transforme? Eu não conseguiria escrever. Quanto a publicar, não tenha angústia e tenha perseverança. Não é um não de uma editora que vai fazê-lo achar que é o último dos escritores e não é o sim que vai fazê-lo achar que é o melhor dos escritores. O ideal é acreditar naquilo que faz. Se for recusado e desistir, é ótimo porque significa que ele não é um escritor. Hoje, acho, é mais fácil publicar o primeiro livro do que no meu tempo. Pelo menos há mais editoras. Há também uma revolução tecnológica que facilitou a edição de um livro. Ouso dizer que há mais editora do que escritor no Brasil.

Marçal Aquino. Foto: Matheus Dias

• Filiação literária
Todos os grandes escritores têm uma filiação definida. Alguns desses escritores superaram seus modelos, seus pais literários, mas houve um pai literário que despertou a vontade de escrever. Como pensar na escrita sem ser leitor? Só no Brasil aconteceu uma loucura dessas. O cara faz literatura na internet e não lê. O Brasil é um país estranho. No Brasil, o traficante cheira, a prostituta goza, o bicheiro joga e o código de barras tem de ser digitado. Esse é o Brasil, um puta desafio, é um desafio do cacete.

• Crítica literária
O problema é definir o que é crítica literária. Nos cadernos de jornais, há resenhas. A resenha é meramente uma peça informativa, é quase um release sobre o livro. Já ajuda, porque diz pelo menos o que é o livro, há uma orientação. Crítica com profundidade sobre a minha obra, li pouquíssima. Tem duas dissertações de mestrado sobre o Invasor. Uma delas, eu não entendo; leio aquilo e não entendo. A menina enxergou umas coisas lá que… Deus ajude. É fogo, porque ela me entrevistou e em determinado momento tive a impressão de que eu era um charlatão. Ela me perguntou: “Você é mesmo o autor do livro tal?” Em geral, o autor é a pessoa menos indicada para falar sobre a própria obra. Porque ele não sabe; se ele sabe, é um impostor, porque está instrumentalizando aquilo que faz. Acho isso muito estranho. Claro que você tem consciência do que está fazendo. A boa crítica — seja rebarbativa ou elogiosa — é aquela ilumina as coisas para o autor. O crítico falar mal do meu livro, desde que seja com categoria; eu concordo, acabou.

• Território das incertezas
Sou o rei do livro começado. Tenho vários livros começados. Tenho cadernos guardados e, de vez em quando, resolvo queimar um daqueles cadernos e dou uma olhada para ver o que tem. Às vezes, acho um começo de conto promissor e o termino. É uma diversão porque, às vezes, o começo tem sete/oito anos e conto aquela história hoje. Conheço escritores que, para iniciar um romance, fazem uma escaleta de tudo que vai acontecer no livro. Se eu fizer isso, não escrevo o livro. Em geral, sei muito pouco sobre aquilo que vou escrever. Isso é um método ou uma falta de método brutal, mas vou no escuro. Às vezes, chega ao meio e não sei para que lado ir. Até hoje, tenho sido mais feliz do que infeliz com isso porque chego ao final do meu livro como leitor, sem saber o que vai acontecer. É assim que sei fazer literatura. Uma vez o Luiz Fernando Emediato me convidou para participar de uma coleção: “Você tem um livro?” Fui para casa e peguei dezesseis contos que não tinha terminado; selecionei onze e terminei; em três meses, tinha um livro pronto. Então, nunca vivi a experiência do embate com aquele livro que não quer sair da frente. Se tento escrever alguma coisa e não funciona, não vai a lugar nenhum, abandono sem dor na consciência. Se a coisa é poderosa, se é forte o suficiente para permanecer, ela volta. Não tenho essa coisa do bloqueio criativo, nunca sofri disso. Escrevo sem um guia, sem uma coisa previamente definida. Prefiro o risco à certeza de saber tudo sobre a história. Literatura é o território das incertezas. A Bolsa de Valores tem mais certezas do que a literatura.

• O valor da literatura
Escrever é a grande alegria que descobri no mundo. Quando me perguntam se não penso em abondonar a literatura, respondo: “Vou abandonar o que me faz feliz? O que me dá felicidade como leitor e escritor?” Nesse mundo das coisas concretas, a literatura foi o que mais me deu felicidade. Para mim, a literatura é necessariamente exercício de paixão. Uma vez, meu pai entrou na minha biblioteca e falou: “Isso deve valer algum dinheiro”. Eu olhei para ele e disse: “O senhor não faz idéia de quanto isso vale”.

Marçal Aquino
Nasceu em Amparo (SP), em 1958. Jornalista, trabalhou como revisor, repórter e redator nos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde. Atualmente, trabalha como jornalista free-lancer. Escreve ficção adulta e juvenil, faz roteiros para cinema. É autor de O invasor, Faroestes, O amor e outros objetos pontiagudos (Prêmio Jabuti 2000), As fomes de setembro, Miss Danúbio (Prêmio do Concurso de Contos do Paraná), Cabeça a prêmio, Famílias terrivelmente felizes e Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, entre outros. Também escreveu os roteiros dos filmes Matadores, Ação entre amigos, O invasor, Nina e O cheiro do ralo.
Paiol Literário

O projeto Paiol Literário, realizado pelo Rascunho desde 2006 em Curitiba, já contou com a participação de mais de 70 autores brasileiros. É um grande acervo sobre a literatura brasileira contemporânea. Os encontros são iniciados sempre com a pergunta: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”.

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