No dia 10 de dezembro, o escritor mineiro Luiz Ruffato, autor de livros como Eles eram muitos cavalos e Inferno provisório, encerrou a terceira temporada do Paiol Literário, projeto promovido pelo Rascunho em parceria com o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba. Durante o bate-papo com seus leitores ― mediado pelo escritor e jornalista José Castello ―, Ruffato falou sobre a importância de sua cidade natal, Cataguases, em sua obra literária, comentou sua opção pelo tema do proletariado, opinou sobre a atual situação da literatura brasileira e discorreu acerca de seu trabalho como antologista. Confira abaixo os melhores momentos da conversa.
Nadar de braçada
Outro dia, eu estava numa mesa, em São Paulo, e aprendi mais uma coisa. A gente sempre aprende coisas, não é? Não sou lacaniano, nem sou psicanalisado, mas aprendi que, nos seminários de Lacan, ele se guiava pelo “não saber”. Achei isso tão interessante. Porque, se ele se guiava pelo “não saber”, eu, que sou um estúpido, posso nadar de braçada. Então, vou começar por aí. Não tenho nenhuma dúvida de que a arte, de uma maneira geral, e a literatura, de uma maneira particular, podem mudar o mundo, sim. E até me surpreendo um pouco quando vejo colegas dizendo que a literatura não serve para nada. Porque, se a literatura não serve para nada, para que fazê-la?
Nem tudo era melhor
Mas não é uma ingenuidade achar que a literatura serve para mudar o mundo? Acho que não, e vou dizer por quê. Quando eu tinha 12, 13 anos talvez, morava na melhor cidade do Brasil: Cataguases, no sul de Minas. Não sou eu que acho isso, não. Todo mundo fala; eu só repito. E a minha família era muito pobre. Minha mãe, analfabeta. Meu pai, semi-analfabeto. Eles foram para Cataguases porque aquela era uma cidade industrial havia cem anos, uma cidade industrial de tecidos. Foram para lá para que os filhos tivessem uma vida melhor que a deles. Outra coisa que sempre ouço dizer é que tudo antigamente era melhor. Acho um grande reacionarismo dizer que tudo no passado era melhor. E uma das coisas que todo mundo diz que era melhor era o ensino público. “Não, porque o ensino público de antigamente era fantástico.” Mentira. O ensino público era fantástico antigamente para os ricos. Os pobres não tinham acesso ao ensino, nem público e nem privado.
O segundo pipoqueiro
A gente morava na periferia de Cataguases, e eu estudava num colégio ruim. Não estudava no melhor colégio da cidade. Uma vez, eu estava trabalhando com meu pai na Praça Santa Rita, a segunda mais importante da cidade. Meu pai era pipoqueiro ali. Ou seja, meu pai era o segundo pipoqueiro mais importante da cidade, não era nem o primeiro. Então, numa noite, lá na praça, a gente trabalhando, as pessoas saíram da missa — o momento mais importante para quem vendia pipoca. Eu estava ali, ajudando meu pai, quando alguém chegou e disse: “Nossa, que menino inteligente”. Além de bonitinho, eu era inteligente, é verdade. E aí ele me perguntou: “Você está estudando?”. “Claro.” “Onde?” E eu: “No Ginásio Comercial Antônio Amaro”. E ele: “Por que você não estuda no Colégio Cataguases?” — que era um ótimo colégio. Daí, meu pai disse: “Não estuda porque lá não tem vaga. Todos os anos, vou lá e não tem vaga. Só tem vaga para o pessoal da classe média da cidade”. E o homem falou: “Imagina, ano que vem você pode me procurar que eu vou arrumar vaga para o seu filho”. Mas ele não conhecia o meu pai. Na segunda de manhã, meu pai ficou esperando por ele, atocaiando o homem. E lhe disse: “Vim aqui porque você falou que ia arrumar uma vaga para o meu filho”. O homem ficou um pouco constrangido e acabou arrumando a vaga para mim no ano seguinte. E fui estudar naquele colégio.
7.ª I
Até, então, eu estudava à noite no Ginásio e trabalhava de dia. Na época, se não me engano, eu trabalhava como operário têxtil numa empresa de algodão hidrófilo, a Apolo — que fabrica um algodão conhecido, aquele de passar Merthiolate —, e mudei completamente minha vida. Fui estudar de manhã, tive que parar de trabalhar para estudar e, quando cheguei lá, não consegui me adaptar de forma alguma. Porque aquele era um mundo completamente diferente do meu. Primeiro, porque fui estudar na 7.ª I. Nunca vou me esquecer daquela 7.ª I, porque eles falavam que era a 7.ª I dos idiotas e incompetentes. Todo mundo que tinha tomado pau no ano anterior ia para a 7.ª I. E a 7.ª I era formada por meninos e meninas filhos de gente importante da cidade. Naquela época, eu era adolescente, malucão e tal, e não conseguia me adaptar. Então, todos os dias — era um colégio lindíssimo, um projeto do Niemeyer —, eu descia na hora do intervalo, para o recreio, e ficava encostado nas paredes, para ninguém me ver.
Um massacre
Numa dessas vezes, eu andando encostado pelas paredes, caí na biblioteca do colégio. Era uma excelente biblioteca (acho que ninguém a freqüentava) e, no que caí, a bibliotecária me disse: “Você quer um livro, não é?”. Eu me assustei, não falei nada e ela entendeu aquilo como um sim. Me deu um livro e falou: “Leva para você ler”. Na minha casa, sempre se disse que se alguém lhe pedir alguma coisa, você tem que fazê-la. Então, levei o livro e fui ler. Aí, passei mal, porque aquele foi o primeiro livro que li de verdade. Aquele livro se passava numa região da Rússia e a história se passava exatamente no inverno. Ou seja, 20 graus abaixo de zero. Cataguases é tão quente, mas tão quente que, quando as pessoas morrem e vão para o inferno, só estranham a comida. O calor é o mesmo. Agora, imaginem: eu, naquele verão, lendo um livro que se passava 20 graus abaixo de zero. Até hoje, acho que eu não conseguiria pronunciar os nomes dos personagens. Eram russos. Eu não conseguia pronunciar nem o título do livro. Inclusive, depois descobri que eu falava o título do livro completamente errado. A história era violentíssima: um massacre de judeus na região de Odessa. Duzentos mil judeus. E Cataguases era uma cidade pacatíssima. Quando morria alguém lá, era uma data. Fulano de Tal nasceu no ano que mataram Fulano de Tal. Era tão incomum que aquilo virava um evento. Então, juntando isso tudo… Passei muito mal lendo esse livro, fiquei com febre. E o devolvi. No que devolvi, a bibliotecária perguntou: “Você leu?”. E eu falei: “Li”. “Ah, então gostou, não é?” E deu outro livro para mim. Peguei e fui ler. Então, naquele ano, fiquei o tempo todo assim. Pegava um livro, lia, devolvia, pegava, lia, devolvia.
Baque profundo
Foi a primeira vez em que descobri existir um mundo além de Cataguases. E por que foi a primeira vez? Porque nas minhas férias — de meio e de final de ano —, como a gente era muito pobre, minha mãe só nos deixava ir para a casa da fazenda do meu avô. Para não ter despesas naqueles meses. Férias de verão e de inverno. Então, eu ia. Aquela cidade ficava a 70 quilômetros de Cataguases, pertinho, e isso era o mais longe que eu tinha ido. Quando eu tinha seis anos, fui a uma cidade muito mais longe, quando meu pai teve uma tuberculose. Naquela época, a tuberculose ainda não era tratada ambulatoriamente. E eram aqueles os dois lugares aonde eu tinha ido. Só fui conhecer praia com 17 anos. Daí, levei um susto. Puxa, existe um mundo maior, não é? Eu via aqueles Atlas de geografia, aqueles países todos, mas aquilo, para mim, era algo abstrato. Não era concreto. E comecei a desconfiar que existissem lugares melhores do que Cataguases. Até hoje não sei se isso é verdade, mas passou pela minha cabeça que pudesse ser. E foi isso que aconteceu. Foi um baque profundo. E, no final daquele ano, saí do colégio. Tomei pau, evidentemente. Não consegui me adaptar e voltei para o colégio antigo. Voltei a trabalhar. Voltei a fazer tudo de novo.
Um monte de Ruffatos
Saí do colégio e larguei de ler. Estudei no Senai. E, quando fui trabalhar em Juiz de Fora como torneiro mecânico, procurei um curso na universidade. Eu tinha 17 anos. E me lembrei de todo aquele ano, de toda aquela mudança completa, e pensei: “Não quero ser igual ao meu pai, ao meu irmão que trabalha em Diadema. Não quero ser igual àquelas pessoas que moram no meu bairro”. Não porque eu desprezasse o que elas faziam, mas porque eu via a vida que elas levavam. E falei: “Quero ser diferente. Eu quero para a minha vida algo que não é isso”. Sempre pensei que, se a literatura conseguiu fazer isso não só comigo, mas com um monte de gente, isso é mudar o mundo, é mudar a sociedade. A sociedade é feita de um monte de Ruffatos, de Castellos, etc. e tal. Portanto, acho que é possível. Você vê, por exemplo, que há projetos, lá em São Paulo, de ensinar música clássica em favela. E, de repente, saem de lá meninos que nunca tinham ouvido música clássica para fazer um estágio na Alemanha, na França. Por quê? Porque aquilo muda a vida das pessoas.
Escritor de corpo inteiro
Eu não escrevo com a cabeça. Sou um escritor de corpo inteiro. E o que é ser um escritor de corpo inteiro? Eu não tenho celular, não tenho máquina fotográfica, eu não tenho nada disso. E não é porque eu não tenho, porque eu não gosto. Além de eu não gostar, tem aquela piada de japonês: “E daí, como foram as suas férias?”. “Não sei, ainda não revelei o filme.” Para mim, sempre foi fundamental ouvir. Quando você ouve, na verdade não está só ouvindo. Você está registrando muito mais do que a audição. O que você está registrando é o momento, o clima. São as coisas que estão acontecendo à sua volta. Então, o escritor, para mim, tem que ter essa noção. Comecei velhíssimo na literatura, aos 37 anos. Então, até eu iniciar, é evidente que eu não sabia que seria escritor.
Voltar a ler
Quando fui para a universidade, eu trabalhava de torneiro mecânico, e não podia largar o emprego. Eu tinha que me sustentar. Então, como passei no vestibular, tinha que trabalhar como jornalista. Já no segundo dia, comecei a trabalhar no jornal Diário Mercantil. Não como repórter. Raras vezes trabalhei como repórter. Com essa dificuldade que eu tenho de lidar com as pessoas, sempre arrumei uma maneira de estar dentro da redação trabalhando como redator ou editor, que era muito mais fácil. Então, quando fui para Juiz de Fora, voltei a ler. A biblioteca da Universidade Federal de Juiz de Fora, na época, era muito ruim, não sei se melhorou. Acho que melhorou, porque está entre as melhores universidades do Brasil. Mas, na época, não era uma biblioteca boa. E eu me refugiava nos sebos. Só que, por uma coisa fantástica, livros que tinham saído havia dois, três anos já estavam nos sebos. E comecei pela literatura contemporânea, lendo quem estava publicando naquela época. Toda a literatura da década de 70 eu li na década de 80.
Tudo novo
Tudo que eu lia era daquele momento. Como era uma literatura que falava do meu tempo, de coisas que eu estava vendo, pensei: “Quem sabe eu também possa falar sobre alguma coisa?”. E comecei a me interessar. Só que minha formação escolar e cultural era péssima, até hoje é muito ruim, cheia de lacunas. Então, eu sentia muita dificuldade. Primeiro, eu tinha que preencher aquelas lacunas. Passava os finais de semana estudando Física, Química, Biologia, História. Queria entender aquelas coisas que eu nunca tinha visto de verdade na minha vida. E aí, quando consegui fazer isso, conheci umas pessoas que estavam num movimento interessantíssimo da época. Elas faziam uma poesia militante. O primeiro sábado do mês era chamado de Varal da Poesia em Juiz de Fora. As pessoas publicavam uns livretozinhos, e eu participava de algumas discussões. Para mim, era tudo muito novo. E comecei: “Pô, esses caras da minha idade estão escrevendo”. Daí, passei a me interessar finalmente por escrever. Falei: “Um dia, eu quero escrever. Mas sobre o que eu quero escrever?”.
Um mundo esquecido
Eu não sabia sobre o que escrever. Pensei, pensei, pensei e falei: “Poxa, quero escrever sobre o que eu conheço. E o que eu conheço? Eu conheço a vida operária. Minha vida foi passada dentro da fábrica. Eu convivi com o meio operário”. Lá pelo dia 15 de dezembro, em Cataguases, até hoje ainda é assim: um alvoroço. A cidade recebe muita gente de fora. Porque aquelas pessoas todas que foram morar em outra cidade, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro, voltam, nessa época do ano, para rever a família, para apresentar a mulher e os filhos aos familiares. É um momento estranhíssimo, em que Cataguases vira outra cidade. Para mim, era um sonho. Todo mundo chegava com novidades. “Pô, Fulano de Tal comprou uma televisão para a mãe dele.” Aquele era um momento absolutamente mágico. E falei: “Vou escrever sobre isso”. Era o que eu conhecia. “Mas, para fazer isso, tenho que ter um projeto. Primeiro, vou estudar tudo que já foi publicado sobre isso no Brasil, para entender.” E levei um susto, porque não tinha sido publicado nada sobre isso no Brasil. A rigor, não. Nós temos, sobre o mundo ou a vivência operária — vamos exagerar um pouco —, O cortiço. É uma obra-prima. Não é bem sobre isso, mas vamos colocá-lo nessa categoria. Mais à frente, você tem outro livro, do Armando Fontes, chamado Os corumbás, que também trata disso. Esse bem mais, porque é uma história que se passa numa indústria de tecidos em Aracaju. Estranhíssimo. E depois, no final da década de 70, tem um autor que eu adoro e que até virou meu amigo: o Roniwalter Jatobá. Ele também escreveu sobre isso. Você tem esses três momentos. E daí algumas pessoas dizem: “Imagina, Jorge Amado escreveu sobre isso”. Não escreveu. Escreveu sobre militância política, que é outra coisa. Você não tem um autor que tenha se debruçado sobre esse tema e discutido a vida dessas pessoas.
Fora, romance burguês
A literatura brasileira é pródiga em bandidos, ela tem uma tradição desde o personagem de Memórias de um sargento de milícias, que é um malandro. Inclusive, isso deu uma imagem absolutamente esquisita para a população brasileira. Até hoje, algumas pessoas transformam o bandido em alguém romântico, idealizado, bacana, glamouroso. Isso, para mim, é um desastre, porque é tão exótico quanto as mulatas do Jorge Amado. É a mesma coisa. O que a Europa, hoje, consome de literatura e arte brasileira é, nesse sentido, tão exótico quanto o Jorge Amado de outro momento. Então pensei: “Vou ter que começar do nada. Esse é o meu tema, é isso que eu quero trabalhar”. Daí, eu tinha outro problema, muito mais difícil de resolver — e por isso demorei tanto a escrever efetivamente. Porque, se eu tinha o tema, eu não tinha como escrever sobre este tema. Como escrever sobre esse tema usando a forma do romance burguês? O romance burguês foi concebido como o instrumento de um modo de vida. Uma visão de mundo. E se eu queria escrever sobre o proletariado, sobre a vida operária, essa forma seria uma contradição.
Pistas de Machado
Tinha que haver um caminho. E, por incrível que pareça, quem me ensinou esse caminho foi Machado de Assis. E como? Machado é um escritor extremamente generoso, porque ele não só escreve maravilhosamente bem, como diz para você: “É possível escrever assim também, é só ler os caras que eu li”. E ele fala: “Meu filho, vai ler o Sterne, o Xavier de Maistre, o Balzac”. Ele dá umas pistas. E fui pelas pistas dele. Comecei com o Sterne, que tem dois livros maravilhosos: A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy e Uma viagem sentimental através da França e da Itália. Esses livros são uma desarrumação completa da forma do romance. Já o Xavier de Maistre tem um livro absolutamente brilhante, o Viagem à volta do meu quarto, em que, no momento em que as pessoas viajavam pelo mundo inteiro, para escrever sobre todas aquelas coisas exóticas, ele mostrava que era possível escrever sobre o seu próprio quarto. E minuciosamente escreveu sobre o que havia no quarto dele. E tem o Balzac, que começou a colocar “coisas” dentro do romance, estranhíssimas, coisas que não eram para estar dentro de um romance. Eram para estar dentro de um livro de política, de sociologia, de história, e não dentro de um romance. Daí, descobri isso e, depois, um pouco mais atrás, o livro mais pós-moderno da literatura de todos os tempos, o Dom Quixote.
Conheço o cheiro dos meus personagens
Inferno provisório é uma tentativa de escrever uma romance coletivista que não tem personagens principais. Seus personagens esbarram uns nos outros em várias histórias, e eu tenho que saber, por exemplo, se algum deles vai ter problemas com tranqüilizantes, tenho que saber da sua história pregressa. Porque não faz sentido ele simplesmente ter problemas com tranqüilizantes. Ele tem que ter um motivo para ter problemas com tranqüilizantes; e eu tenho que conhecer a biografia dele. Então, conheço a biografia de cada personagem. Eu poderia descrevê-los fisicamente. Por exemplo, se Fulano de Tal namora uma menina, eu sei se ela é mais baixa ou mais alta que ele, e o quanto mais alta ou mais baixa ela é. Preciso ver essa personagem. Por isso, falo que escrevo com o corpo. É nesse sentido. Conheço o cheiro deles, sei que tem personagens que não gostam de tomar banho, e outros que gostam. Aliás, tem uns que se enchem de perfume, o que é um horror, o que é tão ruim quanto não tomar banho. Sei o tipo de música de que eles gostam, tenho uma trilha sonora do Inferno provisório. Chama-se Trilha sonora do Inferno provisório. São as músicas que os personagens ouvem. Porque, como a série vai de 1950 até 2000, sei, para cada um dos seus volumes, o espírito que estava por trás daquele momento. Inclusive, uso demais a internet. Por exemplo, tenho um cuidado histórico: se o personagem está fumando um Hollywood, pode ter certeza absoluta de que, naquele momento, existia o Hollywood. Você pode pesquisar.
Sem tumba
Aquele ditado ― “Não tenho onde cair morto” ― para mim serve perfeitamente. Eu não sou de São Paulo. Moro lá, mas não tenho nenhum parente em São Paulo. Nem próximo, nem longe. Estudei em Juiz de Fora, mas Juiz de Fora não é minha cidade. Em Cataguases, só tenho uma irmã. Minha família não é de lá, meu pai e minha mãe já morreram. Rodeiro, onde minha mãe nasceu, é uma colônia italiana. Também não é minha cidade. E o cemitério de Rodeiro é horroroso, não quero ser enterrado lá, de jeito nenhum. Então, não tenho onde cair morto mesmo. Para mim, vai ser um grande problema quando morrer. Não sei para onde me levarão.
Cataguases em Portugal
Em 2009, tenho um compromisso com a Companhia das Letras: entregar o livro da coleção Amores expressos. Fui para Lisboa só para escrevê-lo e, então, com certeza vou me dedicar a ele nesse primeiro trimestre. Ele já está bem encaminhado, mas acho que vai ser um pouco frustrante, porque não consigo sair do meu universo. Então, escrever sobre Lisboa, para mim, é escrever sobre um personagem de Cataguases em Lisboa. Daquelas pessoas que vão tentar a vida em Lisboa e não sabem nem onde fica Lisboa. Simplesmente falam para ele: “Lá em Lisboa parece que o pessoal tá ganhando uma grana”. E ele vai e se perde. Como poderia acontecer em São Paulo ou no Rio. Então, a minha Lisboa não é a Lisboa de cartão-postal, com certeza.
O melhor momento da nossa literatura
Estamos vivendo um momento que é de extrema efervescência. Os caminhos são os mais diversos possíveis e está acontecendo tanta coisa que você nem sabe o que realmente está acontecendo. Hoje, por exemplo, a gente é capaz de olhar para trás e ver que, em 1979, existiam pessoas, em diversos lugares do Brasil, escrevendo algumas coisas muito próximas, mas que naquele momento não sabiam disso. Então, acho que talvez possa estar acontecendo mais ou menos a mesma coisa hoje. Embora a gente tenha mais acesso agora do que naquele momento, é possível que algumas pessoas estejam mais ou menos no mesmo caminho. Não conheço esse caminho específico, mas acho que estamos vivendo o melhor momento da literatura brasileira. Há autores que estão com suas obras em construção, todos estamos, e essas obras caminham para algum lugar, um lugar bem bacana. Alguns escritores vão ficar pelo caminho, como na década de 70. Muitos ficaram pelo caminho, mas muitos conseguiram produzir uma obra importantíssima, uma obra de fôlego, uma obra que, com certeza, vai ser estudada ao longo do tempo. E acho que vai acontecer a mesma coisa hoje. Não gosto de dar nomes porque seria leviano, sou um ignorante, gosto de acompanhar tudo muito de perto, mas acompanho aqueles que estão mais ou menos próximos de mim. Acabei de voltar de Manaus e descobri que lá há uma editora enorme chamada Valer. Nunca tinha ouvido falar nela. O nome é péssimo, a idéia é “vá ler”. Mas se escreve Valer. É uma editora que tem muitos títulos. Deve ter mais de cem títulos publicados em diversas coleções. Há uma coleção de resgate da literatura amazonense, importantíssima. Publicou O inferno verde, de Alberto Rangel, numa reedição lindíssima. Publicou uma antologia da poesia amazonense. Um negócio fantástico. Agora, imagine que Manaus, uma capital, tenha uma editora desse porte e que a gente nunca ouviu falar disso. E tem gente escrevendo lá. Imagina nos outros lugares do Brasil. E nos interiores do Brasil. Eu não estou falando que exista algum gênio no interior do Brasil que esteja produzindo e que ninguém conheça, acho difícil, mas acho que existem pessoas que estão produzindo e a gente não conhece. Por ignorância ou falta de acesso, enfim. Então, vamos ter muitas boas descobertas ainda.
Antologias
Um momento que, para mim, é essencial, é o de tentar através do meu trabalho dar a conhecer outras possibilidades de leitura. Então tenho feito muitas antologias. Fiz essas duas antologias de mulheres em um momento em que se falava da Geração 90, mas não se falava sobre as mulheres da Geração 90. Então, a minha intenção foi a de exibir um pouco o trabalho delas. Evidentemente, elas não precisavam que eu fizesse isso. Mas eu fiz, organicamente, organizei essas antologias. Depois, tentei apresentar uma outra reflexão, que foi uma coleção pela Língua Geral, do Rio de Janeiro. O primeiro volume foi uma antologia sobre a questão da homossexualidade. Muitos falam que é uma antologia gay. Não é uma antologia gay. Eu acho que essa questão é muito importante. Sendo literatura, quem a produz pode ser negro, homossexual, mulher, o que quer que seja, mas é literatura. Acho que, à medida que você coloca um adjetivo nessa literatura, na verdade você a está, de certa maneira, discriminando. Mas é importante que você fale que foi um homossexual quem a escreveu. Se chama Entre nós. Uma antologia que tem até Machado de Assis. Os machadianos ficaram aborrecidíssimos comigo: “Imagine, nunca Machado de Assis escreveu sobre a questão da homossexualidade”. Claro que escreveu. Tem um conto lá chamado Pila de Orestes que é uma discussão lindíssima sobre esta questão. E pega Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles, Caio Fernando Abreu. Quer dizer, pega uma gama de autores que discutem essa questão.
Chamada nos intelectuais
Vai sair, no primeiro semestre do ano que vem, um volume sobre a questão do negro. Então, de novo, não é uma antologia afro-brasileira. É uma antologia em que contistas ou escritores discutem a questão da representação do negro ao longo da história da literatura brasileira. Eu acho que é a minha maneira de tentar contribuir para um debate público. Infelizmente, talvez, a única coisa que a gente tenha hoje, muito mais medíocre do que se tinha na década de 70, era o intelectual participando de debate público. E acho que o intelectual, principalmente o brasileiro, não devia renunciar a essa discussão.
O fim da picada
Me entristece profundamente quando as pessoas falam: “Ah, a minha literatura tem influência do cinema”. Acho o fim da picada, porque o cinema nasceu da literatura. A gramática do cinema é toda literatura. Os grandes cineastas aprenderam a filmar lendo literatura. O escritor fala assim: “Então, ela depositou o copo em cima da mesa”. Isso é um movimento de câmera. Então, toda a gramática do cinema foi baseada na literatura. Acho estranhíssimo que hoje alguns autores falem assim: “Ah, minha influência é o cinema”. Isso é ridículo. Porque, na verdade, ele está dizendo o seguinte: “A minha literatura é subliteratura, é literatura do cinema”. É uma confusão entre o que é visual e o que é cinematográfico. Por exemplo, às vezes acho que a minha literatura é visual, mas não é nem um pouco cinematográfica. Nem um pouco. Por quê? Porque ela é literatura. Com certeza, ela não veio do cinema, embora eu adore cinema. Mas os meus cortes, as minhas transgressões formais, não são do cinema. São da literatura. Vejo as minhas cenas, mas as vejo não como cinema. Como literatura. Porque ela é mais complexa. Porque o cinema mostra e a literatura sugere. Então, a literatura, nesse sentido, é mais rica, pois dá ao leitor a possibilidade de uma participação muito maior que no cinema.
Nunca uma relação passiva
Você pode ver um filme sem muito prejuízo comendo pipoca e tomando refrigerante, atendendo ao celular e conversando com a pessoa ao lado. Porque, na verdade, ele está ali, você é um espectador. Você está exatamente numa relação passiva com o cinema. Na literatura, isso é impossível. Você está o tempo todo sendo trazido para discutir. E o Machado, outra vez, é maravilhoso, porque ele não só faz isso como chama a nossa atenção: “Caro leitor, você viu a sacanagem que essa mulher fez com aquela ali?”. Ele estava o tempo todo brincando, conversando com você, porque sabia da força da sugestão da literatura.
Não entendo o infanto-juvenil
Tenho muita dificuldade para entender o que é um público infanto-juvenil. Eu entendo um público infantil, é claro. Tem seus livros próprios. As crianças estão sendo alfabetizadas, então, entendo a literatura infantil. Nunca entendi a literatura infanto-juvenil. Sabe por quê? Não falo que não exista ― ignorância minha, talvez. Quando comecei a ler, para mim não havia esse rótulo de literatura infanto-juvenil. Não, eu lia um livro. Minha filha de 15 anos leu José Lins do Rêgo, O menino do engenho. Como sua mãe morreu quando ela tinha oito anos, ela se identificou profundamente com o personagem do livro. Não foi ninguém da escola que pediu para ela ler essa obra. E nem é um livro infanto-juvenil. É um livro. […] Se o leitor tem 12 ou 70 anos, para mim não tem a menor diferença. Por isso, eu não escrevo literatura infanto-juvenil. Eu faço literatura.