Edição: Rogério Pereira
No dia 6 de dezembro, o Paiol Literário — projeto promovido pelo Rascunho em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba e o Sesi Paraná — recebeu o escritor JOSÉ CASTELLO. Nascido no Rio de Janeiro, em 1951, é mestre em Comunicação pela UFRJ, jornalista, escritor e crítico literário. Com uma larga trajetória na imprensa brasileira, passou pelas redações de Veja, IstoÉ e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista do suplemento Prosa & Verso do jornal O Globo, mantém o blog A Literatura na Poltrona e faz crítica literária regular para as revistas Época e Bravo! e para o jornal Valor Econômico. É autor de vários livros, dentre eles os romances Fantasma (menção honrosa do Prêmio Casa de Las Américas, em 2002) e Ribamar, além da biografia Vinicius de Moraes: o poeta da paixão. É colunista do Rascunho. Na conversa com o jornalista Rogério Pereira no Teatro Paiol, em Curitiba, Castello falou da relação sentimental que mantém com os livros, do início como leitor, das leituras emocionadas que faz para a mãe, de como não consegue desvincular a vida da literatura e do seu processo de criação, entre outros assuntos. Leia abaixo os melhores momentos do bate-papo.
• Espaço de liberdade
Ao contrário do que muita gente afirma — as projeções terroristas de que o livro está acabando; que vivemos num mundo de imagem, de cinema, internet; que a literatura não tem mais nenhum sentido; e toda essa lenga-lenga —, acho que a literatura tem cada vez mais um lugar precioso na vida das pessoas. Ou se não tem, pode ter. Tem potencial. Por quê? Vivemos num mundo que é cada vez mais padronizado. Todos se comportam da mesma maneira, vestem as mesmas roupas, vão aos mesmos lugares. É o mundo da moda no sentido amplo. Além disso, vivemos em um mundo aceleradíssimo, em que as pessoas não têm tempo para nada. Luta-se para sobreviver à própria agenda, à própria rotina, sempre em dívida consigo mesmo, com seu tempo, com seu projeto pessoal. Nesse mundo, a literatura faz o oposto: oferece um lugar em que você pára. E em vez de olhar para fora, você olha para dentro. Quando se está sentado lendo um livro, é um pouco como se você estivesse vendo um espelho. O que se lê volta para você. Rebate no seu corpo, no seu rosto, na sua alma. O que se lê só se passa na sua cabeça. Posso te perguntar o que é o livro que você está lendo. Você pode tentar me explicar, podemos conversar seis horas sobre o assunto. Se eu pegar o mesmo livro no dia seguinte, lerei um outro livro. Então, a literatura é um lugar de singularidade, de intimidade extrema. Sempre repito uma frase do Joca Reiners Terron de que gosto muito: “Ler é o ato mais solitário que um homem pode experimentar”. Nesse sentido, vejo a potência da literatura, ao contrário dos derrotistas e pessimistas que consideram a literatura uma coisa velha, antiga, mofada. Na minha vida pessoal, a literatura foi decisiva. Comecei a ler com dez, onze anos de idade. Estudei com jesuítas, tinha toda aquela leitura canônica, rigorosa, cheia de correções, aquela chatice. Eu era péssimo aluno no quesito concentração. Tirava boas notas, mas não tinha paciência. Enquanto o professor estava lendo Anchieta, Camões, eu lia Bandeira, Vinicius, Cabral. Comecei com os poetas muito cedo. Então, a literatura foi para mim um refúgio. Um lugar onde me abriguei, onde me concentrei em mim mesmo. E era o lugar onde tinha certeza de que poderia ser o bom aluno, disciplinado, arrumado. Na literatura ninguém mandava em mim. É o estado máximo de liberdade.
• Às cegas
Na minha casa não havia livros. Minha mãe só tinha o curso primário. A leitura para ela era uma coisa muito distante. Meu pai tinha se formado a duras penas, depois de ir do Piauí para o Rio de Janeiro. Era advogado, mas trabalhava como jornalista, aquela vida pesada de repórter. Tudo o que tinha na pequena escrivaninha dele eram livros que recebia, autografados, de algum deputado, discursos de senadores e livros de inglês. Meu pai passou a vida tentando estudar inglês e não conseguia falar direito. Aliás, algo que herdei dele. Eu tenho uma dificuldade hereditária enorme com o inglês. Então, era uma casa sem livros e eu os descobri indo a papelarias. Um dia, estava em uma papelaria em Copacabana e vi que perto dos papéis, cadernos e lápis havia um cantinho com livros. Escolhi os primeiros livros pelas capas. Não tinha a menor idéia de quem era o autor. Não tinha ninguém que me orientasse. Desde o início, fui totalmente solitário na relação com a literatura. No colégio, trabalhava-se com antologias. Então, de repente eu lia um poema do Bandeira, que achava interessante. Eu ficava lendo, lendo, lendo e sabia o poema de cor. Ficava tão obcecado que ia às papelarias procurar poemas do Bandeira. Na escola, li um pequeno trecho de um livro de Borges. Um dia, no Centro do Rio de Janeiro, lá pelos quinze anos, entrei numa livraria para procurar livros do Borges. Depois descobri que ele era argentino, que era um grande escritor, descobri tudo. É sempre um caminho, uma descoberta às cegas. Mas não acho que isso tenha sido ruim. Pelo contrário. Acho que foi decisivo na formação do meu gosto pessoal. Tudo o que li, eu escolhi. Tudo bem, com as limitações terríveis de menino, às cegas, às vezes pela capa, pelo nome. Mas foram escolhas minhas. Isso me ajudou muito a ter confiança como leitor.
• Estranho e solitário
Buscava nos livros o que as pessoas buscam até hoje: encontrar a si mesmas. Seja de que forma for. O primeiro romance que me bateu muito foi o Robinson Crusoé, que li pela primeira vez aos onze anos. Uma tia, irmã de minha mãe, que era a única pessoa da família que lia, esqueceu na casa de meus pais um exemplar. Eu peguei, li, fiquei louco. Li, reli várias vezes seguidas durante um ano. E por quê? Porque é aquela história clássica do sujeito que sofre um naufrágio, vai parar em uma ilha que não tem nada, nem ninguém. Ele está absolutamente sozinho, não conta com recurso nenhum e tem de partir do zero. Tomar posse de si, construir-se a partir do zero. Era exatamente como eu me sentia porque era um garoto estranho, solitário. Achava que ninguém me entendia, me sentida incompreendido, era tímido pra burro. Eu era Robinson Crusoé. Lendo o livro, vi que existia outro como eu. Quer dizer, era um adulto, um inglês, sofreu um naufrágio, era uma outra situação, mas eu também estava numa ilha. O livro me deixou maravilhado porque comecei a ver que era possível viver na solidão absoluta. E isso tudo não foi uma coisa que descobri depois. Claro que mais tarde, elaborei isso melhor. Mas na época, tinha um sentimento muito claro de que eu era aquele cara. Crusoé era e foi um modelo para mim. É um modelo até hoje.
• Aventura pessoal
Vivemos na época da tecnologia. Não tenho nada contra a tecnologia. Não sou um conservador. Mas a tecnologia tem um problema, sobretudo quando ela entra na esfera pessoal. Ela também tende à padronização. Sempre a obsessão pela norma. Não tem jeito, cada vez mais, infelizmente. Na literatura, quando você a descobre, ela ajuda a te inventar. Então, acredito que a literatura é o espaço a que se chega a você mesmo. Mas não pela linha da norma, do padrão, para estar bem, para agir corretamente, para estar certo, para agradar aos outros. Não. É mais para ser alguém que você deseja ser. É nesse sentido que acredito que a literatura é fundamental na experiência da formação. É uma tolice a idéia de que só deve ler literatura quem se interessa por arte ou por escrever. Médico tem que ler, engenheiro tem que ler. Todo mundo tem que ler. É uma coisa fundamental para a formação pessoal. A leitura tem que ser livre, uma aventura pessoal.
• Jornalismo
Eu tinha certeza de que a literatura me acompanharia na vida profissional. Não sabia como. Mas descobri: o meu mundo é isso. A primeira idéia óbvia era estudar Letras. Por sorte, tive um lúcido professor de Literatura no Santo Inácio (colégio jesuíta no Rio de Janeiro), que me chamou para uma conversa e disse: “O que você quer fazer?”. Eu disse quero ler e escrever. Ele disse: “Que vestibular está pensando em fazer?”. E eu disse Letras. Ele disse: “Olha é o último curso que você deve fazer. Fuja de Letras”. Eu disse mas por quê? Ele me disse o seguinte: “Se você fizer Letras, vai se entulhar de tantas teorias, teses, terá a história da literatura na sua cabeça, vai se massacrar com tanta informação que não vai ter liberdade para escrever. Então, faça qualquer coisa, menos Letras”. Acho que ele estava supercerto e eu sempre dou o mesmo conselho. Quando falo em faculdade de Letras, as pessoas não gostam muito, mas digo “se vocês vieram para cá querendo ser escritores, mudem de caminho”. Eu tinha dezesseis, dezessete anos e fui estudar jornalismo. Também por instrução. Não porque meu pai era jornalista, mas também porque eu perguntei para o mesmo professor. Meu pai queria que eu fizesse concurso para o Itamaraty. Mas enfim, esse professor, o nome dele era José Rodrigues, me explicou que o jornalismo iria me jogar diariamente em uma, duas ou talvez três situações totalmente estranhas para mim, me obrigaria a conversar com pessoas que eu jamais falaria na vida, a entender uma história, um atropelamento, um assalto, o que fosse, e me obrigaria a escrever diariamente.
• Muito tempo em redações
O jornalismo é uma espécie de militância, é um sacerdócio. Pelo menos é como os jornalistas tendem a ver. Eu não sei se ainda é assim, pois estou há 20 anos fora de redação. Mas é preciso se dedicar 20 horas por dia. Aí vem um outro problema: fica-se sem tempo para ler e escrever. Eu fiquei 20 anos em redação e acho que foi tempo demais. Deveria ter ficado só a metade. Saí das redações aos 40 e deveria ter saído aos 20. Eu sabia disso, mas só tive coragem aos 40. Se tivesse saído antes, teria lido mais. Estou pensando em um escritor cujo nome não direi. É desconhecido, todo mundo esqueceu dele. É um cara que, quando eu tinha 30 anos, tinha 25. Entre os 20 e os 30 anos, ele publicou mais de dez romances. Publicava por editoras pequenas. Era aquele fenômeno literário e desapareceu. Não sei o que aconteceu com ele. Não se tornou um escritor. Mas ao mesmo tempo, há o Gonçalo M. Tavares (autor português), um dos maiores escritores vivos, que tem 40 anos e escreveu obsessivamente desde muito cedo e ficou um bom tempo sem publicar, por decisão própria. Quando começou, publicou um livro atrás do outro (acaba de lançar Uma viagem à Índia, editora Leya). Ele me disse na última vez que nos encontramos: “Ainda tenho dois livros que escrevi quando tinha 24 anos, que ainda não publiquei. Vou publicar nos próximos anos”. Tudo isso não quer dizer que se eu saísse das redações aos 30 anos, teria tido mais sucesso, mais tempo. Teria lido mais, isso sim.
• Leituras para a mãe
É uma das coisas que tenho feito com mais animação, felicidade, mas ao mesmo tempo com muita tristeza. Tem dias que realmente não agüento ler. Aliás, ultimamente não tenho conseguido ler. Chego lá (no Rio de Janeiro), ela pede para ler e eu fico desconversando. Minha mãe está muito velhinha, está com 84 anos e tem Alzheimer, tem demência senil. Ela está com a atenção muito limitada, com a vida muito limitada. Eu tive a idéia de tentar ler. Tentei Machado de Assis, mas ela não se ligou aos contos. Tentei Rubem Braga; ela achou chato. Tentei Fernando Sabino; ela achou chato. Até que cheguei aos contos de fadas e ela gostou. É obvio. Ela está se transformando em uma menina e eu tenho de dialogar com essa menina. Ela é minha filha, talvez minha neta. Comecei a ler os contos de fada e Monteiro Lobato — coisas de que ela gosta. Uma das experiências mais difíceis que tive foi a leitura de O Barba Azul (clássico de Charles Perrault). Ela ficou apavorada, me mandou parar várias vezes. Ela tremia. Aí eu dizia: “Mamãe, vamos parar, é melhor tomar mais um remédio”. E ela: “Não, continua, me deixa respirar, me traz um copo de água”. Estou descobrindo com isso, de novo, que a minha mãe está tendo aos 84 anos a experiência que eu tive aos dez, onze anos. Ela está absolutamente sozinha. Ela também é Robinson Crusoé. Não há o que se possa fazer por ela. A decadência dela é inevitável. Ela está morrendo. Está absolutamente sozinha nisso. Numa situação totalmente adversa, em que você não tem espaço para mais nada, a literatura é aquela madeira a que você se abraça em alto-mar para se salvar. Para mim, é muito legal porque é uma forma que ainda tenho de ficar ao lado dela. Além disso, reconfirma tudo o que eu penso sobre a literatura. A literatura realmente, como dizia Clarice Lispector, é questão de vida ou morte. A literatura não é uma brincadeira. Vivemos na época da literatura de aeroporto. Você vai àquelas lojas de aeroporto, com aqueles livros todos iguais, compra para ler no avião, para passar o tempo. É aquela literatura de piscina, de praia. Nada contra. Eu acho ótimo que as pessoas leiam seja o que for. Mas a idéia dominante sobre a literatura é que ela é um passatempo. Em vez de fazer palavras cruzadas ou crochê, você lê. A literatura mesmo não é isso. A literatura é a experiência que a minha mãe está tendo hoje. Eu chego lá, ela fica ansiosa para que eu leia. Se eu não leio, ela fica numa grande frustração. É praticamente o que lhe resta de fantasia, de sonho. É o último lugar em que ela está perto dela. Em que ela não é só um corpo que vai sobrevivendo graças aos procedimentos médicos.
• Excesso de trabalho
Minha vida é literatura. Eu não saberia viver sem ela. Esse é um dos problemas práticos, porque adoro o que faço e, às vezes, trabalho demais. Eu tive um estresse e não percebi, porque, mesmo sentindo cansaço, eu sigo trabalhando, gostando do que faço. É como se eu fosse um jogador de futebol que jogasse dez tempos de uma partida.
• Coisa trançada
Estive na Balada Literária do Marcelino Freire (evento anual realizado em São Paulo pelo Sesc) e surgiu a pergunta inevitável: “Afinal o que você faz é crítica literária?”. Em definitivo: não é crítica literária. Como não sei dizer o que é, digo que é crônica literária. Para mim está tudo misturado. Não consigo escrever sem ler e não consigo ler sem ficar com um monte de coisas na cabeça. Então, é uma coisa só trançada. É como um tapete: se puxar o fio, desfaz tudo. Não se desfaz só uma parte do tapete, desfaz-se o tapete inteiro. Para mim, ler e escrever estão misturados. Isso também depende da minha rotina pessoal, que é muito caótica. Sou totalmente caótico. Digo isso com orgulho porque é o meu estilo. Escrevo 20 minutos, paro, aí vou ler um negócio, aí vou fazer alongamento, lavar a louça. Faço as coisas mais absurdas, mas continuo trabalhando mesmo quando vou regar as plantas ou caminhar no Jardim Botânico. Temos uma mania contemporânea muito ruim em todos os sentidos: separamos tudo em gavetas. Isso é aqui, aquilo é ali, agora é hora disso ou daquilo. Minha criação literária, minha crítica e minhas leituras são uma coisa só. E mais: sou eu. Não consigo mais me ver sem isso. Bom ou ruim, se acharem uma maravilha ou se criticarem, se amanhã disserem que sou um gênio ou um débil mental, seja o que for, continua sendo eu. Claro que quero ser elogiado, tenho a minha vaidade, que gostem do que faço, que meu livro venda. É evidente. Óbvio, sou um ser humano, mas independentemente disso, continuo sendo eu.
• Franco-atirador
Temos muito preconceito com a fragilidade. Se há uma coisa que odeio é a arrogância. Devo ser arrogante às vezes porque sou humano e cometo todos os deslizes que todos cometem. Mas arrogância é algo que odeio. Convivo com toda essa gente ligada à universidade. Tenho amigos do meio, que trabalham com teoria literária e crítica literária na academia. Admiro muitos deles: Antonio Candido, Silviano Santiago, meu amigo, uma pessoa por quem tenho imensa admiração. Leio Leyla Perrone-Moisés, a Flora Süssekind. Tem o Luiz Costa Lima. Eu ficaria meia hora citando pessoas que respeito. Mas sei que estou em outro mundo. E em outro mundo por quê? Talvez até por deficiências minhas; e deficiências não são defeitos. Deficiência porque não tive a formação que eles tiveram. Eu fiz graduação em jornalismo, meu mestrado é em comunicação. Não tenho sequer graduação em Letras. Sou na verdade um franco-atirador. Eles têm motivos para me olhar de banda. Motivos concretos. Já tive que ouvir em reuniões fechadas de comissões julgadoras de prêmios literários, com a máxima educação e delicadeza: “Castello, mas é que essa sua opinião, você é um cara da mídia, um homem da opinião pública”. O meu contato com literatura, tanto como leitor quanto como escritor, foi desarmado. Se o cara passou quatro anos de graduação, três de pós-graduação, quatro de doutorado, dez, onze, ele vai ler um livro armado de instrumental teórico de leituras. O cara tem uma noção de história da literatura. Não li vários dos clássicos da literatura brasileira e universal. Não que todos tenham lido tudo, mas as pessoas têm uma formação organizada. Quando chego diante de um livro, chego muito menos armado e isso, numa certa perspectiva, é um defeito. Estou muito menos protegido e, portanto, muito mais exposto aos impactos que os textos provocam em mim.
• Leitor sentimental
Para primeiro colocado no prêmio Portugal Telecom, eu votei no livro A passagem tensa dos corpos, do Carlos de Brito e Mello. Recomendo a leitura enfaticamente. É um livro de um rapaz desconhecido, de 35 anos, de Minas Gerais, que eu nem sabia quem era, ninguém sabia da existência dele. Peguei o livro, li e fiquei louco. Aí, fui descobrir quem era o autor. Fiquei tão maluco com esse livro que o li quatro vezes seguidas. Quando li a quarta vez, disse: “Esse é o primeiro lugar”. Não posso fazer uma análise de mestre, professor e crítico que não sou. Voto num livro por outro motivo. Eu optei por um tipo de relação sentimental. Sou um leitor sentimental. Essa palavra irrita muito certos tipos de críticos. Tenho uma maneira de me aproximar da literatura, de ler e até de avaliar, porque nessas situações de prêmios é preciso avaliar, julgar. Para mim, é bastante diferente das pessoas que têm uma formação organizada. Eu sou melhor? Não sou. Mas também não sou pior. Eu sou como a escola de samba Salgueiro. Nem melhor, nem pior, apenas uma escola diferente. Eu vou por outro caminho.
• Leitor comum
Sempre faço uma defesa do leitor comum. Já fui até acusado de populista por causa disso. Para mim, o leitor comum é o que interessa. Claro que quero que o grande doutor em Letras, que eu respeito, escreva um tratado dizendo que o Ribamar (romance recém-lançado) é genial e importante. Quem não quer? Claro que desejo ganhar prêmios, mas nada me toca mais do que encontrar com uma pessoa que não conheço, que me pega pelo braço, como tem acontecido muitas vezes, e me diz que o livro a deixou envolvida, que a fez pensar. Isso para mim, francamente, é o mais valioso. É o prêmio. Não que eu despreze as outras coisas. Mas o que mais me preenche é ter esse tipo de resposta.
• Afago no pai
Acho que nunca se escreve o livro que se quer escrever. Você tenta, tenta e quanto mais tenta, mais escreve outra coisa. Minha experiência me diz isso. Estou com a Clarice Lispector de novo. Não sou eu que escrevo, são os livros que me escrevem. Os livros pegam e te comandam. Te levam pelo pescoço. Você quer ir para cá e o livro te leva para lá; e não tem jeito. Já aprendi a relaxar e me deixar levar. Nunca tive a ilusão de que escreveria Ribamar para finalmente solucionar a relação que tive com o meu pai. Ter um acerto de contas definitivo com ele. Os acertos de contas definitivos não existem. Meu pai morreu em 1982, há quase 30 anos. Então, seria maluquice imaginar que era uma coisa com ele; na verdade, era uma coisa comigo. Foi um livro muito difícil de escrever. Estive muitas vezes a ponto de desistir. Contei com a ajuda preciosa de alguns amigos que estão ali na minha lista de agradecimentos. Tive durante um ano conversas com um amigo psicanalista no Rio de Janeiro. Eu ia ao consultório e pagava, mas não era análise. Eu disse que queria conversar sobre o meu livro e ele topou. Conversávamos sobre o livro e é claro que sempre acabava falando de mim. Precisei de muita ajuda e tive ajuda de muita gente. Pessoas que foram decisivas e sem as quais não teria conseguido. Mas não cheguei ao livro que queria escrever. E qual era o livro que eu queria escrever? Não sei. Sempre imaginamos algo muito maior do que nós conseguimos fazer. O que acho que consegui é não ter transformado o livro numa vingança. Algumas pessoas me disseram: “Você pode até adoecer desse livro, você pode até enlouquecer desse livro”. Acho que consegui fazer um afago, um carinho no meu pai. Trinta anos após a morte dele, de uma forma totalmente fantasiosa, porque o livro é um romance. Comecei escrever em cima de histórias pessoais, mas o tempo todo me vinham histórias que não existiam. E eu não reprimi; pelo contrário, investia nas histórias. Então, o livro tem muitas coisas verdadeiras, entre aspas, mas tem muito mais mentiras do que verdade. Mais invenção, ficção, do que memória.
• Sonhos
No Ribamar há sonhos que de fato eu tive, até porque desandei a sonhar. Sonhava com coisas que se relacionavam com o que eu estava escrevendo ou sentindo naquele momento. Mas também há sonhos falsos. Sonhos que tive e que escrevi de um outro jeito. De novo, a literatura é o lugar da liberdade interior absoluta. Você faz o que quer, não tem compromisso com ninguém, nem com a verdade nem com a mentira. Não tem compromisso nem com o certo nem com o errado. Você faz o que quer e esse é o grande barato da literatura.
• No meio do caos
Não tenho uma rotina de trabalho. Sou caótico e cultivo um pouco esse caos porque, caso contrário, não consigo trabalhar. Trabalho no meio do caos. No Ribamar aconteceu o seguinte: durante dois a três anos, fui escrevendo uma porção de coisas sem saber como elas se ligavam. Várias vezes me pareceu que tudo aquilo era uma maluquice e que não chegaria a lugar nenhum. As coisas não paravam de crescer, e em direções diferentes e não combinavam. Cheguei a achar várias vezes que estava escrevendo três ou quatro livros ao mesmo tempo. Cheguei até a considerar repartir o livro, escrever um, depois outro. Um dia, finalmente, incorporei essa história ao próprio livro, grande parte das coisas que aconteceram comigo contei no livro. Um dia, estava na casa da minha mãe, em silêncio com ela. Os dois parados, sentados olhando para a parede e aí ela começou a cantarolar uma canção de ninar. Ela me disse que era uma canção que meu pai cantava quando eu estava chorando muito e ele queria me colocar para dormir. Perguntei de onde ele tirou a música e ela disse que era a música que o pai dele cantava e o avô dele cantava para o pai dele. Portanto, já se tem um fio entre os homens da família. Era uma canção que tinha uma transmissão masculina na família; para as mulheres, a canção não era cantada. Ela me falou isso de uma forma muito clara. Eu pedi e ela cantou inteira. Lembrava letra e música. Cantou várias vezes e eu decorei a música, anotei a letra, liguei para o meu irmão Marcos, que mora em Campinas. Mandei a letra por e-mail, cantei a música pelo telefone várias vezes, ele fez a partitura e me mandou. Quando olhei a partitura, falei: “Aqui está o meu livro”. Mas como um livro está dentro de uma partitura? Descobri que tinha que encaixar o livro, a borda que faltava, aquele monte de coisa que estava escrevendo. Sempre falta uma borda, um desenho, como se fosse a moldura de um quadro. A moldura que faltava era aquela partitura. Transformei-a num esquema. Sempre que aparece a nota sol é a minha viagem a Parnaíba; sempre que aparece a nota fá é a minha leitura do livro Carta ao pai do Kafka, a carta que ele escreveu ao pai, com quem também tinha imensa dificuldade de se relacionar, assim como eu tinha com o meu pai. Comecei a adaptar meus escritos para aquela partitura. Estabeleci para cada nota musical certo número de caracteres. Quanto mais rápida é a nota, menor é o número de caracteres. Fiz um esquema de caracteres e comecei a encaixar o livro dentro daquele esquema. Então, cortei o livro, que é um quinto, talvez menos, do que escrevi. Deu muito mais trabalho cortar do que escrever. Mas foi um momento de mais lucidez, porque, entre aspas, eu sabia o que estava fazendo. Mas parecia um trabalho de louco. As pessoas me perguntavam como encaixar um livro em uma canção de ninar. Tinha tudo a ver. O livro é sobre a minha relação com meu pai. A música era a música que meu pai cantava para que eu dormisse. Portanto, para que calasse a boca. A música não tinha nome. Dei o nome de Cala a boca. Era uma coisa totalmente arbitrária. Eu poderia ter inventado outra coisa. O que quero dizer é: se não vou visitar a minha mãe nesse dia, se ela não canta essa canção, se não dou importância a essa música, se ela não lembra direito da letra da música e não conta que era a música que o meu pai cantava para mim, se não resolvo anotar a música e a letra, se não passo para o meu irmão e ele não passa para uma partitura, se ele não me manda essa partitura e se não tenho em cima da partitura essa idéia, o Ribamar não existiria. Eu teria escrito o livro, mas não dessa forma. Chegamos, então, ao que mais me interessa: o papel decisivo do acaso na criação. Somos muito mais escravos do acaso do que donos do que escrevemos.
• Ribamar e a mãe
Ainda não tive coragem e forças para ler Ribamar para a minha mãe. Ela já me pediu. Dei um livro para ela, autografado, li a dedicatória e está lá. Sempre que vou lá, ela me pergunta quando vou ler. Eu digo que um dia desses.
• Elos que se amarram
O leitor não é só leitor quando lê Lígia Fagundes Telles, Raduan Nassar, Adélia Prado. Eu sou um leitor também quando leio o que estou escrevendo. Aí está o leitor mais difícil. Você tem que ler e conseguir encontrar, inventar sentidos naquilo que está fazendo, que está saindo de você de uma forma caótica. Mas essa invenção tem que ter cadeias, não é a casa da sogra, não é o vale tudo por dinheiro. Não dá certo a máxima do Sílvio Santos. Tem que ter elos que se amarram.
• Afirmar o fracasso
Viver é fracassar. Acho isso há muito tempo porque a gente nunca é como queremos ser, nunca fazemos o que queremos. As coisas não acontecem como queremos. Estamos sempre fora do eixo. Essa idéia de que temos eixo é uma idéia racionalista, de Descartes, vem do iluminismo, de que é tudo claro, que eu sei quem sou, você sabe quem é. Nos agarramos a nomes, a palavras, eu me agarro ao José Castello. Você está sempre fracassando, no sentido de que, a maior parte do tempo, e não só na escrita, na vida, você está às cegas, com os olhos vendados. O Édipo vê toda a tragédia dele, que o cerca, depois que fica cego. Você precisa se cegar para, de alguma forma, ver. A questão do fracasso é muito importante de ser afirmada hoje. Vivemos no mundo do sucesso. Todo mundo tem que ter sucesso, se dar bem, tirar vantagem, ser bem-sucedido, ter um bom emprego, ganhar bem. Tem que ser o melhor artista, o melhor gourmet, o melhor isso, o melhor aquilo. Todo mundo tem que se vestir bem, ter o carro do ano. É o sucesso. Vivemos oprimidos pela idéia do sucesso. Isso é uma coisa crescente no mundo pós-industrial de hoje, que é só de fachada. Precisamos cultuar a positividade do fracasso. Vejo o valor do fracasso, não só como uma declaração de amor à vida, porque vida é fracasso, mas também como um ato político. Quando se afirma o fracasso, a pessoa se contrapõe a essa obsessão pelo sucesso, pelas coisas claras, bem explicadas, bem-feitas, que são o inferno que definem o mundo contemporâneo. Se um escritor não aceita o fracasso, não consegue escrever. Tenho uma amiga que está escrevendo um livro há 14 anos. Acho que ela nunca vai terminar. Ela nunca mostrou trecho nenhum do que está escrevendo, mas diz que está escrevendo. Eu já consegui dizer isso para ela claramente: “Você tem que admitir que vai fracassar. Só quando conseguir admitir isso, vai conseguir escrever, terminar, publicar. Enquanto ficar em busca da vida perfeita, não vai conseguir viver”. Vivemos em um mundo dominado por dogmas: religiosos, de perfeição, os mais absolutos. Tudo nos impõe à perfeição, à norma, à correção e ao sucesso. A afirmação do fracasso não só é básica para a criação, mas também para o médico, enfermeiro, manicure. Afirmar isso é defender a sua singularidade, porque errar, cada um erra do seu jeito; acertar é fazer como todo mundo.
• Sete poetas
Atualmente, estou trabalhando em um novo romance. É uma idéia que nasceu em uma viagem ao Peru e envolve um cachorro leproso. As coisas estão muito soltas ainda e não fazem muito sentido, mas tenho várias anotações. De forma mais organizada, estou escrevendo um ensaio sobre o que considero os sete poetas brasileiros do século 20: Drummond, Cabral, Bandeira, Vinicius, Murilo Mendes, Jorge de Lima e Cecília Meireles. Por enquanto, chama-se Sete faces e é uma espécie de trança onde tranço a biografia dos sete, mas não é biografia clássica. Não vou contar a vida de ninguém. É para tentar ver na vida de cada um deles como surgiu a poesia. Como cada um se tornou poeta. É para responder à pergunta “o que é ser poeta?”.
• Viver em Curitiba
A vida que levo em Curitiba é mais calma do que a que levo no Rio. Isso ajuda o escritor. A cidade é mais introspectiva, as pessoas são mais desconfiadas, te olham com dois, três, quatro pés atrás. Faz frio a maior parte do ano. É dezembro e estamos de casaco; no Rio está todo mundo na praia. Curitiba é uma cidade que te puxa para dentro. Não que eu ache que seja impossível escrever no Rio, ser escritor lá. O poeta da paixão (biografia de Vinicius de Moraes), escrevi no Rio, com ar condicionado, trancado dentro de casa, morrendo de vontade de ir à praia, mas resistindo e tendo que me concentrar. Acho que isso não quer dizer nada, é totalmente pessoal. O que para mim pode ajudar, para outras pessoas pode atrapalhar. É uma questão de temperamento. Eu sou um cara mais caseiro, prefiro ficar mais quieto.
• Mestre
Nos últimos anos, uma grande novidade na minha vida de leitor é o Enrique Vila-Matas (escritor espanhol; no Brasil, seu livro mais recente é Doutor Pasavento). É um escritor que tenho na conta de mestre. Sobretudo porque escreve com essa perspectiva que eu trabalho: não respeitando os gêneros literários e não desvinculando a vida da literatura. A vida está dentro da literatura. Ele faz um pouco de literatura que é uma reportagem interior e exterior, assim como é o Ribamar, que de certa forma é uma reportagem interior. Mas sobretudo devido à idéia de gênero. Sempre trabalho contra essa história do gênero. O meu livro organizado pela Leyla Perrone-Moisés, As melhores crônicas, antes de entrar em processo de edição, houve uma reunião na Global, para decidir se entraria na coleção Melhores crônicas ou Melhores contos. Ninguém sabia decidir, foi uma discussão interminável até decidirem por crônicas simplesmente porque aqueles textos saíram no Estadão na seção Crônicas. Muita gente diz que O Poeta da Paixão é um romance envergonhado, que o Inventário das sombras é um livro de contos. Reconheço que não deixa de ser. É um conto na linha do Vila-Matas, de grudar na realidade para tirar outra coisa. Por tudo isso, o Enrique Vila-Matas é um escritor de que gosto muito. Agora tenho lido pouco, mas durante uns quatro ou cinco anos, li obsessivamente sua obra. A leitura do Vila-Matas está incorporada. Nós estamos sempre sobre influência. Não tem vacina para ficar imune.
• Polêmica do Jabuti
Tenho livros na Record e na Companhia das Letras. Na verdade, isso tudo é uma bobagem. É uma guerra de vaidades, com todo o respeito ao Luiz (Schwarcz, dono da Companhia das Letras), que admiro muitíssimo, que mudou o cenário editorial brasileiro, com um padrão de qualidade diferenciado. Com o Sérgio (Machado, dono da Record), não tenho tanta proximidade, mas tenho grande proximidade com a Luciana Villas-Boas, a editora-chefe da Record. Então, se for pelo lado afetivo, diria sei lá o quê. Mas não vou por esse lado. É uma grande bobagem. Estão entrando numa discussão boba, cedendo a vaidades. Você pode questionar o Jabuti. Eu sempre fiz isso, acho um prêmio meio frouxo, ao contrário do Portugal Telecom, que é rígido demais. Eu acho bom que seja rígido demais. É um processo complicadíssimo, cheio de júri intermediário. Acho isso ótimo. Agora, isso é uma coisa, a outra é você sair brigando por causa disso. Você pode divergir, mas não precisa subir tanto o tom da briga.
• Confiança na crítica
Confiança tem que se ter em prescrição de remédio que o médico te passa. O médico te prescreve um remédio e você confia. Não é preciso confiar na crítica literária. A crítica te amplia. Se você é capaz de desarmar um pouco os nervos, a crítica te amplia, porque mesmo a crítica negativa, por mais que seja raivosa, é uma outra visão de você. Se parar para pensar, ela te enriquece. Tem uma história pessoal que gosto de contar. Uma vez resenhei um livro do Moacyr Scliar. É um livro em que ele romanceou a vida do Oswaldo Cruz (Sonhos tropicais, 1992). É um dos livros mais fracos dele. Eu continuo achando. E escrevi a resenha morrendo de pena, cheio de dedos, até porque tenho uma relação muito afetuosa com o Scliar. Escrevi da forma mais delicada possível e pensei: “Esse cara de quem gosto tanto e que gosta de mim ficará magoado”. Fiquei uns dois anos sem encontrá-lo. Um dia, estou na Feira do Livro de Porto Alegre e o vejo andando em minha direção. Ele veio de braços abertos: “Castello, preciso tomar um café contigo. É um minuto”. Paramos num café e ele me disse com lágrimas nos olhos que “claro que fiquei muito ferido quando li sua crítica, mas tudo o que você escreveu, eu escreveria sobre o meu livro. Você me fez tomar coragem para repensar alguns impasses literários que eu não estava conseguindo enfrentar. Não sei se vou conseguir resolver, mas estou enfrentando e antes eu não estava enfrentando. Quero sinceramente te agradecer de coração”. Até hoje, quando nos encontramos, ele me abraça, me afaga como se fosse meu pai. Não que eu tenha dito algo genial, mas abri mais uma maneira de ele pensar o que vivia naquele momento. Sempre que fico meio desanimado com a crítica, lembro dessa história e me animo.
• Literatura na imprensa
Acho que a imprensa trata a literatura da maneira possível. Ainda mais hoje em dia, quando as editoras publicam cada vez mais. A Record, com aquela máquina nova —, uma espécie de monstro devorador de originais que precisa ser alimentado, caso contrário morre —, publica pelo menos um livro por dia. Não há crítico literário que consiga ler tudo. Eu não leio. Freqüentemente me chegam originais e eu não leio; sinto-me culpado. Às vezes olho para as pilhas de provas que chegam e penso: “Será que estou deixando passar um gênio?”. Um dia a Luciana Villas-Boas me disse a mesma coisa. É de novo a questão de lidar com limitações, com o fracasso.
• Diversidade
Vivemos um momento legal na literatura brasileira em termos de quantidade. É importante escrever e publicar, mesmo sendo livros que não dêem certo. Vivemos um momento legal sobretudo em termos de diversidade. Quem se arrisca a dizer qual é a tendência hoje da literatura brasileira? Aí vêm o realismo, naturalismo, romantismo. Em qual ismo estamos agora? As pessoas arriscam no máximo um pós-moderno. Os escritores são completamente diferentes. Há um lado, sem dúvida, perigoso: muita coisa sem a menor relevância às vezes ganha destaque que não merece, porque as editoras fazem divulgação, têm marketing. A coisa está muito profissionalizada. Se o cara resolve que a bula da aspirina é o grande acontecimento da literatura, ele consegue emplacar, se tiver um bom departamento de marketing. Esse é um lado perigoso.
• Wilson Martins
Eu li muito Wilson Martins, os textos que ele publicou na imprensa até morrer (em janeiro de 2010). Ele foi um lutador, uma pessoa pela qual tenho um imenso respeito. Ele se doou à literatura, à leitura, e foi sempre totalmente independente. Se não gostava de um livro que todo mundo achava uma maravilha, ele escrevia. E tinha coragem de escrever com todas as letras. Isso é uma coisa muito preciosa. Eu discordava de quase tudo o que ele escrevia. Eu lhe disse isso. Essa figura que ele representava: a do crítico clássico, que classifica, que dá notas, separa o que é bom do ruim, para mim é tudo o que a crítica literária não deve fazer. Mas ele acreditava nisso, se dedicou a isso com grande coragem. É uma figura que merece todo o meu respeito. É um dos nomes da crítica literária no Brasil do século 20. Mas nós sempre estivemos em mundos totalmente diferentes. Ele escreveu uma crítica muito forte, negativa, sobre o Fantasma. Gentil, educada, mas pesada. Comprei um cartão de linho e escrevi à mão: “Caro Wilson Martins, agradeço o destaque que o senhor deu ao meu livro nas páginas dos jornais”. Não fazia por cinismo. Fazia porque, de fato, ser criticado por Wilson Martins era muito importante, abria muito caminho. Não é só ser elogiado. O cara está parado lendo o seu livro. Ter ficado mobilizado a ponto de construir uma posição contrária ao livro tão firme não é pouco.
• O que é literatura?
Para mim, a melhor reposta para essa pergunta é a que o Fernando Sabino deu à pergunta “por que você escreve?”. Ele disse: “Escrevo para saber por que escrevo”. Acho que isso é a literatura. Por que gosto de literatura? Não sei. Por que gosto das pessoas de que gosto? Posso levantar um milhão de teorias, mas no fundo não sei direito. É o tal núcleo de silêncio que cada um de nós tem dentro de si — aquela zona inexplicável. Você não domina, não explica tudo. A relação com a literatura, cada escritor pode vir aqui e ficar uma hora e meia falando sobre. Mas eu falei por que de fato escrevo? Eu não consegui falar. Você não consegue até porque as razões são sempre diferentes e são intraduzíveis. Não sei explicar. Não sei responder.