No dia 13 de maio, o Paiol Literário — promovido pelo Rascunho em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba, o Sesi Paraná e a Fiep — recebeu o escritor João Ubaldo Ribeiro, na abertura da sexta temporada do projeto. Nascido em Itaparica (BA), em 1941, passou a infância entre Aracaju e Salvador. Começou a trabalhar como jornalista, tendo exercido os cargos de repórter, redator e editorialista. Como escritor, além dos romances O sorriso do lagarto, Viva o povo brasileiro e Sargento Getúlio, Ubaldo assinou roteiros para televisão e cinema. Atualmente, escreve crônicas semanais para os jornais O Estado de S. Paulo e O Globo. Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1993, João Ubaldo ocupa a cadeira 34. Vive no Rio de Janeiro (RJ). Na conversa com o jornalista Rogério Pereira no Teatro Paiol, em Curitiba, ele falou da sua preocupação com o desinteresse pela leitura no Brasil, da fragilidade do sistema do ensino, do seu início como leitor e escritor, da sua descrença no ser humano, entre outros assuntos. Leia a seguir os melhores momentos do bate-papo.
• Conhecimento
Esta pergunta (Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas?) poderia abranger a noite inteira de conversa, porque seria algo relacionado com a filosofia da arte. Para que serve a arte? A literatura, assim como a arte, é uma forma de conhecimento, de perceber o mundo e de expressar essa percepção. Nesse sentido, toda arte teria uma utilidade. Mas não acho que o critério da utilidade deva ser usado em relação à arte. A arte não deve ser vista de uma maneira tão pragmática, tão imediatista. Não se pode negar que a literatura contribui para a maturação e evolução da língua, para a expressividade dessa língua, para a utilização dessa língua, inclusive para a comunicação científica, porque as linguagens se entrelaçam. E como qualquer arte, a literatura é uma forma importante de conhecimento, de ver o mundo e de expressar o mundo através da linguagem. Acho que quem se expõe a um estímulo intelectual, emocional, artístico, está dando a si mesmo uma chance de expansão da sua sensibilidade, da sua humanidade. Se nós nos limitássemos a comer e procriar, tudo seria muito pobre.
• O início como leitor
Minha casa era uma casa muito cheia de livros. Nessa ocasião (na infância), nós morávamos em casarões. A casa tinha livros em todos os aposentos, até na cozinha, no banheiro. As paredes eram forradas de livros e meu pai sempre foi um homem muito cioso da minha formação. Então, eu leio desde os seis anos de idade. Eu lia de tudo. Lá em casa, havia todos os tipos de livros. Meu pai era jurista, professor de história e político. Era um homem de interesses muito variados. Então, minha casa era uma biblioteca muito variada. Meu pai tinha um problema. Eu era o filho mais velho e ele achava que eu — sem saber ler aos seis anos — era uma vergonha para a família. Ele não suportava ter um filho analfabeto com seis anos de idade e me levou para aprender. Quando fui aprender a ler, numa escolinha da vizinhança em Aracaju, uma escolinha informal, pobre, cheguei lá e já conhecia mais ou menos as letras. A bolinha e a barriguinha é o B, a escadinha é o H, essas coisas. Acho que aprendi a silabar em um dia, no mesmo dia. Eu tinha curiosidade, não tinha TV, não tinha nada naquela época, só rádio. O primeiro livro que peguei para ler foi por causa das gravuras do Gustave Dore: Dom Quixote, traduzido por Viscondes de Castilho e Azevedo. Até adulto tem dificuldade de ler aquilo. Mas peguei para ler por causa das gravuras. Com seis anos, li o Hamlet, sem entender nada do que estava lendo. Li tudo, tudo, lia os pedaços. A minha formação como leitor não teve uma estrutura. Li muito Monteiro Lobato. Meu pai comprou uma coleção e eu li, eu adorava.
• O início como escritor
Comecei a escrever cedo. Devo ter começado com uns dezessete, dezoito anos. Publiquei o primeiro livro (Setembro não tem sentido, publicado em 1968), acho que com 26 anos. Glauber, que era muito amigo meu, morava no Rio de Janeiro, juntamente com outro escritor, Flávio Moreira da Costa. Eles batalharam o livro no Rio, enquanto eu ficava achando aquilo muito normal, em Salvador. Não houve um instante que eu tenha dito que seria escritor, mas desde o meu primeiro livro já achava que iria escrever. Agora, viver de escrever demorou porque eu fiz muita coisa. Fui jornalista, sou jornalista até hoje, publicitário por pouco tempo, professor universitário de Ciências Políticas e outras coisas mais. Com uns quarenta anos, morando em Portugal, comecei a trabalhar como um alucinado. Eu editava uma revista (Careta) de São Paulo pelo telefone, escrevia não sei quantos artigos com pseudônimo. Às vezes, escrevia quase a revista praticamente inteira com pseudônimos diferentes. Escrevi um livro em duas semanas, um livro de um político, e aí fui vendo que dava para viver de escrever. De uma forma estressante e precária mas dava. Nessa época, havia escrito o Sargento Getúlio (publicado em 1971). Aí decidi ficar só escrevendo, dispensar emprego e essas coisas. Não tenho intenção nenhuma messiânica de salvar nada. Só escrevo.
• No jornalismo
Comecei no jornalismo com dezessete anos. Tinha saído um jornal novo que já não existe, mas na época era novo na Bahia: o Jornal da Bahia. Meu pai era amigo do pessoal do jornal e falou que tinha um filho que sabia escrever. Um dia, ele chegou em casa e disse: “Se vista”. Eu me vesti para sair e ele me levou para o jornal. Virei foca do Jornal da Bahia por obra dele e aí fui seguindo carreira. Fui repórter, redator, chefe de reportagem. Cheguei até a ser diretor de redação.
• Concentração
É difícil conciliar a vida de escritor — pelo menos escritor como eu sou — com qualquer coisa porque o mistério de escrever um livro requer, pelo menos no meu caso e no caso de muita gente que conheço, uma dedicação muito grande, uma concentração muito grande. É comum que o sujeito, tendo que se dispersar fazendo outra coisa, tendo que dividir a atenção, não consiga, principalmente depois de mais velho, fazer literatura. É muito difícil porque a literatura é absorvente, é exigente com o sujeito. Quando se mergulha em um universo ficcional que você criou, fica difícil sair dele. E quando se sai, muitas vezes o livro desanda. Você perde o contato com o livro e ele desanda. É o que tem acontecido com o livro que estou querendo escrever e não consigo. Sempre tem uma coisa que interrompe. Esse ano, já fui a Paris. Tem umas coisas que você não pode recusar. Por exemplo, esta ida a Paris. Se recuso, o editor me diz que ninguém vai saber que recusei. Todo mundo vai achar que não fui convidado. E isso não é bom. Aí vou para mostrar que fui convidado. Já tem viagem marcada para Viena, em setembro. Parece uma coisa chata “ter que ir a Viena”, mas para o meu trabalho é dispersivo, é muito chato. Eu tenho quer me esconder para trabalhar. Hoje em dia se eu quiser trabalhar, tenho de me esconder.
• Ser um bom escritor
Eu queria ser um bom escritor. Tem uma frase interessante que o Vargas Llosa diz que quando o sujeito senta para escrever, ele resolve se quer ser um bom escritor ou não. É um pouco verdade. Eu resolvi que seria um bom escritor, que seria um escritor sério. Nunca tive nenhuma dúvida sobre isso. Sempre olhei a coisa como minha atividade principal, básica, desde o primeiro livro. Eu não planejo. Mas sou metódico na produção. Antigamente, no tempo da máquina de escrever, fazia uma cota diária de três laudas. Se passasse de três laudas, não poderia descontar no dia seguinte. Para não enganar a mim mesmo. Então, tinha que fazer o mínimo de três, podia fazer seis ou sete. Mas três já é duro. E todo dia, mesmo que no dia seguinte jogasse fora a produção porque estava ruim. Hoje, com o computador, uso como referência somente medidas baseadas no que escreviam certos escritores conhecidos como, por exemplo, Virginia Woolf, que escrevia mil, a mil e duzentas palavras por dia. É demais. Eu escrevo normalmente um Conrad, Joseph Conrad, que escrevia oitocentas palavras por dia. Escrevo de manhã, quando acordo. No dia seguinte, pego o fim do que estava escrevendo no dia anterior para embalar, copio e aí vou seguindo.
• Não me realizo
Para ser sincero, acho que ninguém leu o que escrevi. Fico achando, às vezes, por exemplo, que ninguém leu Viva o povo brasileiro. Não me realizo, não me sinto realizado com a literatura. Acho que ninguém leu. Sempre tenho essa impressão. Talvez seja uma presunção muito grande minha. Talvez ache que ninguém leu como eu acho que deveria ter lido. Talvez seja isto: presunção, não sei. Mas sempre acho que ninguém leu direito, com a atenção devida.
• Legível e inteligível
Não penso em leitor nenhum, não penso em nada. Penso que aquilo que estou escrevendo deve ser suficientemente claro com os meus termos. Ou seja, não vou me tornar claro, violando determinadas normas que tenha para escrever, mas quero ser claro. Quero ser legível e inteligível. Isso eu quero, isso é o que busco. Quando escrevo, quero ser entendido. Agora, talvez eu possa dizer que pense em um leitor qualificado ou em um leitor mais sofisticado. Mas não penso em um leitor, agradar fulano, beltrano, não penso nisso. Quando sento para escrever a crônica, penso um pouco mais porque estou escrevendo para jornal. Procuro fazer um texto não para analfabeto, mas para um leitor em um nível que já considero de biblioteca, um leitor de todo dia, que está lendo no ônibus ou no escritório. Escrevo de maneira diferente, escrevo para jornal. Tenho uma preocupação porque tenho formação de jornalista. Escrever para jornal é não ser pernóstico, não usar muitas palavras difíceis.
• Não somos ruins
Você vai ler, por exemplo, o suplemento de cultura dos jornais de hoje e encontra artigos sofisticadíssimos sobre James Joyce, escritor irlandês. Tem gente que sabe o nome de todas as ruas de Dublin, sabe passagens do Ulisses de cor. Você encontra essa intimidade com os Beatles e com uma série de coisas. Agora, intimidade com o passado português/brasileiro pouca gente tem. O sujeito é capaz de dizer o nome de todas as ruas do centro de Dublin, mas é incapaz de dizer o nome de uma rua do centro de uma cidade brasileira qualquer. Nós não temos respeito por nós mesmos. Nós não nos achamos bons. Hoje, os autores jovens, os autores que os jovens lêem e os autores que são vendidos no Brasil são todos americanos, de auto-ajuda. É difícil. Agora, está começando a haver certo interesse pelo cinema nacional. Mas antes nem o cinema despertava o interesse. Porque nós não somos glamurosos. Nós queremos ser americanos ou qualquer coisa assim. Inglês é mais bonito que português. A vida lá é melhor do que aqui. Acho que não damos valor ao que temos aqui. Ninguém pensa, por exemplo, em prêmio Nobel de Literatura para autor brasileiro. Quero me referir a prêmio Nobel que o Brasil já mereceu muitas vezes em várias áreas. Por que Oswaldo Cruz não ganhou o Nobel? Porque Vital Brasil não ganhou o Nobel? Porque o professor Carlos Chagas não ganhou o Nobel? Muita gente que fez menos pela saúde da humanidade já ganhou esse prêmio. Mas nós nem pensamos que devíamos ter ganhado com homens extraordinários desse porte. Para não falar em literatura também. Por que Jorge Amado não ganhou o Nobel, se tanta gente ganhou? Ah, Jorge Amado não é bom o suficiente. Bom é um escritor que escreve em uma língua esdrúxula a respeito de problemas que nós nem enfrentamos, problemas especiais. Esta é uma opinião idiossincrática, mas não conheço coisa mais chata que a maioria dos filmes de Bergman. No entanto, fomos criados para gostar daquele negócio e ficamos com remorso quando não gostamos e, habitualmente, mentimos quando saímos do filme sobre aquela chatice sueca inominável. Este é um problema nosso: nós não somos nada. Ou somos uma porção de besteiras: o melhor futebol do mundo, o melhor arquiteto do mundo, o melhor piloto do mundo. É verdade que a ignorância tem contribuído para que a nossa língua se empobreça. Mas nossa língua não é ruim, nossa literatura não é ruim, nós não somos ruins. Nós temos um autodesprezo muito disseminado.
• Bicho muito atrasado
Sou pessimista em relação à humanidade. Acho que nós não melhoramos nada. Até hoje continuamos fazendo as mesmas coisas que fazíamos há dois mil anos. Esfolando gente, cortando cabeça. Isso acontece todo dia. Agora mesmo tem alguém cuja cabeça está sendo cortada em algum lugar do mundo, por uma razão interessante: porque comeu carne de porco ou porque usou a mão errada para se assear depois de ir ao banheiro. Há gente que mata por isso. Os muçulmanos não usam a mão direita para se limpar porque é com a que eles comem. E há quem julgue que a pessoa que usar a mão direita deve ser exterminada porque é uma afronta às leis divinas. Então, o ser humano é um bicho muito atrasado e muito primitivo. Eu não tenho muita fé no ser humano. Não sei se há uma saída.
• O medo da leitura
No primeiro governo Lula, o presidente e alguns petistas beberam numa comemoração um vinho francês caríssimo. O Verissimo fez uma crônica de gozação, irônica, dizendo assim: onde já se viu um operário estar bebendo desse vinho caro? Mas ele estava sendo irônico. Ele sofreu quase apedrejamento porque os leitores não entenderam a ironia. É porque os leitores não têm preparo para a ironia. Como é que se estimula a leitura na escola brasileira? Se aterrorizando o pobre do menino com a idéia de ter que responder perguntas horrorosas depois de ler o livro. Em vez de se fluir, se perpetuar uma leitura agradável, se incute o medo da leitura nos estudantes. Aquilo é uma prova. O aluno lê sob tensão para ter que entender e dizer coisas inteligentes a respeito ao professor. Um dos grandes obstáculos para a leitura dos clássicos é a apresentação dos clássicos. Aquela coisa solene, que tem que gostar, aquela coisa abstrusa. Fica uma espécie de obrigação e não de conhecimento, de desfrute, enfim de se gozar de um prazer que seria a literatura. Aquilo vira um carma, uma coisa terrível. Na escola, estamos acostumados com a tarefa árdua de responder perguntas. Eu já vi várias vezes, não foram poucas, livros meus adotados para o vestibular cujas perguntas sobre o livro eu não acerto nenhuma. Verdade.
• A força da literatura
Tem muito no Brasil a conversa de que o livro é caro. É claro que é caro, deveria ser mais barato, mas é caro no mundo todo. Não tem lugar nenhum onde o livro seja barato, a não ser onde é subsidiado, como em Cuba e em alguns países socialistas. No Brasil, por exemplo, se um livro que custe mais ou menos o mesmo que um CD vender cerca de cem mil exemplares, é considerado um best-seller. O editor dá uma festa, manda rezar uma missa. Cem mil exemplares. No entanto, um CD pode custar o mesmo preço e chega facilmente a um milhão. Não facilmente, mas comumente se vende um milhão. E o CD exige, além de tudo, que se tenha uma infra-estrutura. O livro só exige uma área da casa iluminada e vista para se ler. Um CD exige uma aparelhagem de som. E não se compra só um CD por mês. Então, se no Brasil existe mercado para se vender quinhentos milhões de CDs por ano, vamos dizer, isso eu estou chutando, existiria mercado para vender pelo menos um milhãozinho de livros. Não existe nem para cem mil, duzentos mil. Não se lê porque não se gosta de ler, porque dá trabalho. Ler é chato porque a pessoa não aprendeu a ler. Ela aprendeu a ficar na frente da TV onde tudo é fornecido. O audiovisual fornece o som, a imagem, a cor, enfim, tudo. O livro só fornece as palavras. O resto é fornecido pelo leitor. E isso é a beleza e a força da literatura. Ela tira de cada um a sua contribuição. Então, o livro só existe porque existe leitor e ele é um livro diverso para cada leitor. É uma coisa extraordinariamente rica. Já a arte audiovisual não é. Não que eu deva condená-la, mas exige muito menos da pessoa. É uma arte que oferece mais passividade. Uma música você pode ouvir até dormindo. Já um livro você não pode ler dessa forma.
• Nação de analfabetos
Eu não saberia fazer um plano para transformar o Brasil em um país de leitores. Às vezes, penso no clima e pergunto: será meu Deus que tem alguma coisa a ver com o fato de na Europa eles ficarem trancados seis meses por ano? Talvez seja, mas em países menos castigados pelo tempo, pelas estações do ano, como Portugal, um país pequeno, pobre, e você entra no metrô e tem uma porção de gente lendo. Você não vê isso no Brasil. É difícil ver um sujeito lendo um livro. É hábito. Eu não sei o que é, eu não sou sociólogo, nunca estudei esse problema procurando achar as causas, mas o fato é que não temos o hábito de leitura, não gostamos de quem tem, ficamos com raiva de livros. Enfim, livros aqui são para embrulhar peixe ou para ficar enfeitando estante. Não temos tradição de biblioteca, não damos importância a isso, taxamos o livro. O ex-presidente se orgulha de nuca ter lido um livro e mostrando assim como não é preciso ler coisa nenhuma para chegar onde ele chegou. Sei lá como é que o livro é visto pela maioria da população. Como uma coisa meio chata, eu não sei. O que eu vou dizer é generalizante, mas é verdade. Cada bairro de Berlim (João Ubaldo morou na Alemanha entre 1990 e 1991) tem a sua escola, pelo menos uma escola básica. Cada escola tem a sua biblioteca de bairro, cada biblioteca tem a sua horta. Ou seja, os estudantes saem, vão à biblioteca e, ao mesmo tempo, também cultivam a hortazinha onde aprendem a plantar, cuidar e colher. E tem aquela bibliotecazinha ligada aos canteiros. Quem vai à biblioteca faz trabalhos manuais e intelectual, lê. A leitura é inculcada nos hábitos das pessoas desde cedo. Aqui não. Nós brasileiros, não lemos. Isso não é queixa de escritor que não é lido, porque eu sou lido, vivo de escrever, não tenho nem queixa pessoal. Mas é terrível saber que a sua nação é uma nação de analfabetos funcionais, de gente que tem diploma de curso primário, elementar ou curso médio, e não sabe ler, não sabe fazer um bilhete. Eu vejo até gente alfabetizada que não quer mandar um e-mail porque tem vergonha de cometer erros. Nós não gostamos da nossa língua. Nós detestamos a língua, assassinamos os recursos que a língua tem, achamos que é pernosticismo usar uma mesóclise de vez em quando. Nós não nos suportamos como povo. Nós queríamos ser americanos. A verdade é essa. Ou franceses.
• Visão mais ampla
Se lêssemos mais, não sei se seríamos um país melhor. Provavelmente, sim. Seríamos um país de gente mais sensível, de visão mais ampla, capaz de se expressar melhor, de se entender melhor. Não é tranqüilizador ver um líder brasileiro, em qualquer nível, se expressando como um tartamudo com uma riqueza de pensamentos e idéias. Aqui no Brasil só se fala assim agora: “A democracia ela é”; “O estudante ele” não pode, com a repetição do sujeito. Um anacoluto pendurado. Esta pobreza de expressão reflete pobreza de raciocínio também, pobreza de pensamento. Afinal de contas, a gente expressa e formula pensamentos através da linguagem. Nós não sabemos usar essa linguagem, não sabemos nem conjugar os verbos. Queremos abolir: o inglês não tem conjugação, o verbo não tem flexão, é melhor que o português.
• Literatura e cinema
Não considero os filmes baseados em meus livros como obra minha. O filme que Cacá (Diegues) fez (Deus é brasileiro) é o filme de Cacá. O filme que o Hermano Pena fez (Sargento Getúlio) é filme de Hermano Pena. Foram originados de idéias minhas, mas o trabalho de arte é deles — quem fez foi o cineasta. Eu não acho que tenha a ver com o meu trabalho. Cinema é uma coisa muito diversa de literatura. Não gosto de fazer roteiro. Faço porque sou amigo dessas pessoas. Já fiz com o Cacá dois ou três. Uma vez, ele me telefonou e disse que queria falar muito sério comigo. Falou duas vezes. Eu fiquei preocupado. Ele chegou lá em casa sério, fez um preâmbulo terrível. Disse que precisava muito de mim. Quando ele falou que era um roteiro, eu disse: “Ah, Cacá, eu achei que você estava querendo um rim”. Mas eu não faço nada pensando em audiovisual. Eu faço essas coisas com amigos meus. Não suporto roteiro. Roteiro é uma coisa chata de escrever. Os diálogos são chatos de escrever. Escrever um roteiro é muito chato. Mas eu faço porque Cacá Diegues, Geraldinho Carneiro, que são amigos, me pedem. Trabalho mais para brincar com amigos do que por outra coisa. Às vezes, eu não assisto ao que saiu. Por exemplo, O sorriso do lagarto foi adaptado para TV e eu não vi.
• Estar para si
Outro dia vi um colega escritor, cujo nome no momento não vem ao caso, dando uma entrevista sobre a sua obra. Fiquei impressionado porque é um sofrimento, uma complicação “o estar em si, compor para si, não expor de si”. Eu não tenho paciência para esse “o estar para si”. Eu não sei desses negócios. Me parece presunção. A verdade é que desde que o homem aprendeu a falar, desde que se tornou homo sapiens, hoje é sapiens sapiens, ele faz música, dança, conta história. Por que diabo o homem canta, dança e faz poesia, eu não sei, mas é aparentemente uma necessidade do ser humano. Você pode fazer dezenas de hipóteses sobre isso, por que ele escreve, por que conta histórias. Escrever é a continuação da função social de contar histórias que sempre houve e, por alguma razão, continua a existir. Não sei qual é a necessidade que o ser humano tem disso. Será a de estruturar a realidade para dar certa inteligibilidade a ela? Não sei. Mas não precisa complicar tanto.
• Ladeira abaixo
No Brasil, não tem valor positivo ligado à leitura. Ninguém ganha prêmio por ler. Não há motivação para a juventude ler. Que motivação se tem para ler? Diversão não é mais, tem videogame, internet e tal. O que leva um jovem a ler? Nada. Talvez uma curiosidade que ele tenha herdado ou a imitação de um pai ou de um parente, mas ninguém tem motivação para ler. Tem gente inclusive que diz que não lê ficção porque não vai perder tempo lendo coisas que não aconteceram. Como se ler uma reportagem fosse ler o que aconteceu. Como se o que o repórter está contando foi o que aconteceu. O repórter já está distorcendo a história, sem querer, não que ele queira distorcer, mas ele introduz o elemento distorcivo quando escolhe quem está entrevistando. Não tem nenhuma realidade sendo dita ali. Então a pessoa diz que não perde tempo lendo o que nunca existiu. Como é que a língua poderia existir? Como um instrumento de transmissão de conhecimento, inclusive de transmissão de conhecimento científico, se não tivesse a literatura, se não se explorasse a palavra na poesia, que é quando a palavra atinge a sua maior autenticidade, sua maior contundência, suas funções rítmicas, que são forçadoras da linguagem? Sem a literatura como iria se descrever certos estados de angústias, se o poeta já não tivesse passado lá antes? Certos estados de perplexidade, se o poeta não tivesse passado antes? Não haveria palavra na medicina para distinguir isso. A língua precisa de seus escritores, de seus poetas, de seus compositores para poder se manter como instrumento hábil de expressão e de tradução da alma humana. Mas nós somos um país muito esculhambado. É o que nós somos. Não damos a menor importância. Menor importância é exagero. Falando genericamente, não damos importância a isso. Num país como a Alemanha, moderníssimo, até hoje se faz cópia: copia-se com boa letra um texto em alemão. Hoje, aqui, você é vaiado, posto para fora da escola, se diz “vai todo mundo copiar Sermões de Antonio Vieira com boa letra”. Nós abolimos o latim. Em compensação, instituímos não sei quantas disciplinas estranhíssimas, como Inter-relacionamento não sei das quantas. Agora o básico mesmo, o beabá da língua, o que se estudava ainda no meu tempo, descrição, dissertação, cópia, ditado. Essas coisas são necessárias para que se domine os instrumentos da língua. Mas estão fora da moda, muito chatos, não tem nada de glamuroso e não se faz. Resultado: produzimos universitários analfabetos. De modo geral, acho que estamos ladeira abaixo no Brasil. Acho que se eu tiver vivido no fim de meus anos, que se aproximam a olhos vistos, estou com setenta anos, com honestidade e fazendo o melhor que posso para realizar aquilo que me propuser, estarei feliz. Não tenho muitas ambições. Gostaria simplesmente de ser lembrado como um sujeito que fez, ou pelo menos tentou fazer, aquilo que ele achava que sabia fazer.
• Itaparica
Acabo usando Itaparica (na Bahia) como plataforma de observação. Mas é simplesmente a minha terra, ela serve de pano de fundo para as minhas observações. Mas poderia ser Saquarema, Parati. É somente porque eu nasci em Itaparica. Uso Itaparica para ilustrar as minhas crônicas, mas ela só tem importância para mim, porque eu nasci lá, me criei parcialmente lá e gosto do povo de lá. Então, uso meus amigos como personagens e assim por diante. Mas não é uma coisa vital no meu trabalho. Quanto mais velho fico, mais me apego. Itaparica está sempre presa no meu trabalho.
• Ditadura
Acho que a ditadura não contribuiu para o atraso da cultura brasileira. Não chegou a isso tudo não. Chegou a desestimular alguns estudos que eram vistos com suspeitas. O que a ditadura fez foi introduzir essa tecnocracia que talvez viesse com tudo de qualquer jeito, os bolotogramas, as múltiplas escolhas, esses facilitários usados hoje na educação e que, em minha opinião, são retrocessos. O que a ditadura fez foi impedir que se formassem talentos políticos nas universidades. Nas universidades anteriores à ditadura, a política estudantil era muito ativa. Ensinava-se muito aos jovens a fazer política. Os centros acadêmicos eram também escolas de política. Quando esse negócio de subversão foi sendo abafado pela ditadura, gerações de jovens se formaram sem exercitar a prática do diálogo político, do trato político. Herdamos maus políticos porque não treinaram desde cedo. Hoje a UNE (União Nacional dos Estudantes) é praticamente um departamento do Ministério da Educação. É uma coisa triste ver uma organização como a UNE, que já esteve na vanguarda dos protestos, na vanguarda do pensamento brasileiro, ser chapa branca.
• Método de escrita
Dificilmente releio meus trabalhos antigos. Tenho mais o que fazer. Sobre o meu processo criativo: geralmente bolo uma coisa, acho que estou com o assunto na cabeça, com o livro na cabeça, mas isso varia. Não existe uma coisa fixa. Às vezes, passo um tempo grande falando nele, geralmente com amigos, com minha mulher, achando que tenho uma história. Eu já sei por experiência que não é aquilo, mas aquilo está na minha cabeça. Aí sento para escrever, tomo umas notas. Mas de modo geral, sou um escritor que acompanha o personagem. Eu crio um personagem e, como dizia Faulkner, saio atrás dele anotando tudo o que ele faz. Eu não consigo planejar direito os meus livros. Eles saem, são espontâneos, vão acontecendo. Eu quero casar um, ele não casa; quero matar outro, ele não morre. Eu nunca sei direito onde é que vai dar.
• Livro impresso
Sou totalmente a favor do livro como objeto. Eu curto também o livro como objeto. Não acho que tão cedo o livro seja substituído. O livro eletrônico tem várias vantagens: por exemplo, você sair de férias e poder levar trezentos livros. Conheço gente que está saindo de férias levando quinhentos livros. Não vai ler nenhum. A maior parte das pessoas que têm um leitor eletrônico gasta mais tempo para falar que têm um leitor do que para ler. Ou seja, já viu o meu leitor? Acho que para certas serventias, o leitor será muito bom. Mas não consigo ver, por exemplo, pode ser caturrice da minha parte, a realização com um tablet de uma tese de mestrado, com nove, dez livros abertos em cima de uma mesa, um traço aqui, uma notinha ali, uma marcação. No futuro, talvez as pessoas voltem para o livro antigo, por ser uma coisa extraordinária, por ser simplesmente um livro, por dar tão pouco. É um comprometimento emocional muito maior, intelectual muito maior com o livro, do que com um filme, por exemplo. O sujeito é muito mais co-autor do livro do que co-autor do filme. O livro diz: “a moça saiu de casa e encontrou um dragão”. E aí você vai imaginar uma moça, saindo de uma casa e encontrando um dragão. Cada leitor terá sua casa, sua moça e o seu dragão. Isso é a beleza da leitura. No cinema, todo mundo tem a mesma casa, a mesma moça e o mesmo dragão. No livro, não. Essa é a riqueza da literatura. É aquilo que ela faz com que o leitor contribua para que o livro seja uma obra de arte. A obra de arte só existe depois de passada pelo leitor. Ela não existe fora dele.
• Paulo Coelho
Nunca li Paulo Coelho. Li somente uns pedacinhos. É um escritor que não está inserido na tradição da literatura brasileira. Ele é um escritor singular. Nesse sentido, não é um escritor brasileiro, no sentido de que o Brasil não está presente na obra dele. Ele poderia ser árabe, japonês, vietnamita, o que quer que fosse, porque a obra dele não pertence ao Brasil. Agora, a qualidade literária, não sei, desconheço. Falam mal, mas é da Academia e inegavelmente é escritor, escreve aquelas coisas. Qual é outro critério que vai ter? Escritor é quem escreve? Ele é escritor. Agora, não posso julgar o trabalho dele.
• Jovens autores
Acho que se o sujeito tiver talento para escrever e a necessária perseverança, escreve e publica. Eu não acredito em gênio que não apareceu. Ele acaba aparecendo. Quem grama o suficiente, alguns mais do que os outros, consegue chegar a qualquer carreira. Dizer que no Brasil é difícil ser escritor não é verdade.
• Ler mais
Tem que ensinar as pessoas a ler. Habituar as pessoas a ler. Todos os processos mentais envolvidos com a leitura são importantes não só para a formação mental, mas também para a formação global do ser humano. É fundamental. Acho que não somos um país tão burro. Mas nunca seremos um país tão bom quanto poderíamos ser, se não formos um país que leia mais. Por melhor que a gente se desenvolva, fica chato um país de burros, de gente que tem o horizonte limitado. A gente pode funcionar muito bem, produzir várias coisas de plástico, várias coisas eletrônicas e viver ouvindo funk, mas não seremos um país desenvolvido, um país criador.
• Para pagar credor
Uma das coisas que têm de ser desmistificadas em relação ao trabalho de arte é a de que ela é feita por inspiração divina. Na verdade, essa é a exceção. A regra na história da arte universal é a encomenda. É a arte por dinheiro, por vantagem. As pessoas dizem: “Ah! Você fez tal livro por encomenda!”. Sempre foi assim. Na Grécia antiga, os teatrólogos, Aristófanes, Sófocles, Ésquilo, todos faziam para entrar em concurso e ganhar. Num clima da maior baixaria, falando mal um do outro, difamando, e assim por diante. Toda a arte da Renascença foi feita de encomenda. Da música a ao estatuário, tudo. Sempre foi assim. Balzac escrevia para pagar credor que estava batendo à porta. Dickens escrevia para pagar credor. Todo mundo escrevia para pagar credor. Boa parte da obra do Shakespeare foi feita toda assim: procurando a historinha na mão de alguém, procurando história e história que desse dinheiro para ele encenar, porque ele era ator, era empresário, era escritor, era tudo. Não tinha esse negócio de dizer “vivo no mundo das luzes, silêncio”. Não tem nada disso. Era com credor batendo à porta. Às vezes, estou conversando com amigos escritores e as pessoas ficam nos olhando. Ficamos imaginando e comentamos o que devem estar imaginando as pessoas: “Aqueles escritores falando ali. Que alto nível que deve estar o papo”. E não é nada disso. A conversa é: “Quanto aquele cara lhe paga? Aquele desgraçado. Ele me roubou”. O papo é esse.
• Cheque inspirador
A Casa dos Budas Ditosos é um exemplo do que acabei de dizer. Eu estava em casa, tocou o telefone. Era um homem chamado Alfredo Gonçalves, que foi editor da Nova Fronteira. Ele trabalhou lá. Nessa ocasião, ele estava na Objetiva. Minha editora ainda era a Nova Fronteira, mas eu não tinha contrato de exclusividade. Aconteceu precisamente o que eu disse aqui. Ele me falou que estavam fazendo uma coleção dos pecados capitais. Ele disse: “Pensamos em você para a preguiça”. Eu até brinquei que preguiça não queria porque era baiano. Iam ficar brincando com o fato. Então, ele me deu a possibilidade de escolher outro pecado. Eu não sabia direito, nem me lembrava quais eram os pecados. Aí eu disse luxúria. Mas eu pensei que fosse dessas coisas que acontecem muito: do sujeito ligar e depois nunca mais entrar em contato, fica aquela coisa no ar. É muito comum isso. Mas uma semana depois apareceu o principal componente: um contrato e um cheque. Não importa o que lhe digam. O cheque tem uma função inspiradora. Inspira muito. Fiquei completamente inspirado, mais inspirado ainda depois que depositei o cheque. Mas tinha o prazo de entrega. O Tom Jobim dizia que inspiração para ele era prazo. Prazo inspira muito. Então, começou a correr o prazo. Eu peguei inspiração em cinco dias. Em cinco dias, já sabia o que ia escrever, mas não sabia o que iria acontecer. Quando escrevi o romance, fiz aquela brincadeira de que era um manuscrito entregue em minha casa. As pessoas me perguntam muito sobre isso, principalmente as mulheres. Querem saber se foi mesmo uma mulher quem deixou o manuscrito lá em casa. O que significa que eu me fingir de mulher convenceu. Chegaram a me acusar, mas isso foi coisa das metidas a sabidas, as psicanalistas: “Vê-se que por ali tem um espírito masculino e coisa e tal”. Eu não vejo espírito masculino nenhum. Eu virei mulher mesmo. Se fosse assim, as mulheres não me perguntavam. O livro foi um sucesso e continua sendo. Foi levado ao teatro com sucesso. Enfim, não tem nenhum mistério. Me pagaram. Eu fiz. Compraram. Deu tudo certo.
• Livro grosso
Provavelmente eu escrevi Vivo o povo brasileiro porque não sabia desse tal “fim do romance”. Se tivessem me avisado… Esse romance começou — as coisas são muito mais simples, prosaicas e singelas —, quando eu estava na Nova Fronteira. Ainda não morava no Rio de Janeiro como moro hoje e fui visitar a editora. Eu tinha publicado um livro chamado Vila Real. Aí, um dos editores de lá, o Pedro Paulo de Sena Madureira, brincou comigo. Disse assim: “Vocês escritores brasileiros só fazem esses livrinhos para a gente ler na ponte aérea. Essas coisas fininhas”. Aí eu disse: “Ah, é?. Você quer um livro grosso? Eu vou fazer um livro grosso para você”. O que começou o Viva o povo brasileiro foi realmente a vontade de fazer um livro grosso. Quando me sentei para escrever, sabia que seria um livro grosso. Aí pensei: para ser um livro grosso, será uma história comprida. Pensei em fazer a história de uma almazinha que fosse reencarnando através dos tempos em Itaparica. Ficou mais ou menos isso. Quando chegou a hora, botei o ponto final.
• Deus
Acreditar em Deus, eu acredito. Agora, não tenho certeza para onde é que vou quando morrer. Prefiro não tentar adivinhar. Eu não sou filiado a nenhuma religião. Eu não acredito em religião organizada. Acho que toda religião organizada é pervertida de alguma forma pelos seus praticantes. Não no sentido de que é pervertida pelo mal, mas é deturpada, digamos. Não sou religioso, pertencente à igreja católica, evangélica, espírita ou maometana, mas acredito em Deus.