Francisco Alvim

"O mundo tem uma variedade de linguagens e de interesses imensa. A literatura é uma delas, não é a única."
Francisco Alvim. Foto: Matheus Dias
01/11/2012

Em 3 de outubro, o projeto Paiol Literário — promovido pelo Rascunho, em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba, o Sesi Paraná e a Fiep — recebeu o escritor FRANCISCO ALVIM. Nascido em 1938, em Araxá (MG), Alvim estreou na literatura em 1968 com o livro de poemas O sol dos cegos. Em 1974, publicou Passatempo, pela coleção Frenesi, um marco da chamada “poesia marginal”. O poeta mineiro já ganhou o Prêmio Jabuti por duas coletâneas: Passatempo e outros poemas e Poesia reunida (1968-1988). Na conversa com o jornalista e editor Rogério Pereira no Teatro Paiol, em Curitiba, Alvim falou sobre a forte experiência pessoal que significa a literatura em sua vida, o cenário da poesia contemporânea brasileira, as influências de Dalton Trevisan e Carlos Drummond de Andrade em sua formação de escritor e também sobre seu livro mais recente, O metro nenhum (2011). Leia a seguir os melhores momentos do bate-papo.

•Anteparo
A pergunta [sobre a importância da literatura] é realmente inaugural. A literatura na vida cotidiana depende da pessoa, quer dizer, das pessoas, porque há várias. Nós temos que estabelecer algumas diferenças, porque nem sempre as pessoas têm o mesmo tipo de imaginário. Há segmentos que percebem o fenômeno literário de maneira não sempre muito uniforme. Então, se a pessoa tem um vínculo com a alta literatura, tem um nível de exigência diferente daquela que se situa num plano como a novela, que lida com o imaginário. No cotidiano, isso varia muito. A percepção literária cria, de certa maneira, a possibilidade de uma dimensão de reflexão sobre aquilo que a pessoa vive em geral. Pelo menos é esse o meu entendimento, a minha vivência com a literatura. Eu acho que eu tenho na literatura uma espécie de anteparo, um distanciamento, uma instância, vamos dizer assim, que me permite refletir sobre a minha experiência vital — aquilo que a vida me traz, aquilo que a vida me proporciona. Esse vínculo que é essencial entre o que eu vivo e aquilo que eu transformo em literatura — ou o que eu absorvo como literatura de outros autores. Ela forma uma instância de reflexão, uma instância que me permite entender, compreender e sentir melhor a vida. É curioso, porque ao mesmo tempo em que estabelece um distanciamento refletivo, de reflexão, tem muito a ver com a proximidade, porque o elemento fecundante é a vida. Eu não concebo a literatura dissociada da vida. O Mário Faustino tem um verso que eu acho muito bonito, muito expressivo nesse ponto: quando ele diz “vida toda linguagem” é como se a vida realmente carecesse da linguagem para, de certa maneira, completar-se dentro dessa grande aventura humana. A poesia tem uma tendência, própria da poesia moderna, de valorizar muito a experiência da linguagem — o que é uma coisa muito boa. Porque, realmente, há uma crítica muito forte no sentido de que a poesia contemporânea (com toda a dificuldade que isso representou em matéria de público, de distanciamento, de complexidade que o gênero foi adquirindo) se tornou hermética demais, que as pessoas não se encontram muito nela, que o público se distanciou… Mas é inegável que isso vem desse sentimento crescente de consciência da linguagem — que, a meu ver, às vezes é excessivo, se distancia muito da experiência vital. Então, acho que a vida, dentro desse binômio “poesia e vida”, é um elemento fundamental.

•Estado de inquietação
A literatura é um instrumento fantástico de transformação. E aí tem muito a ver com a segunda pergunta [por que as pessoas devem ler?]. Acho que está muito ligado a tudo isso que está sendo dito. Isso que procurei, de uma forma ou de outra, com os limites que tenho, apresentar. É, sobretudo, um esforço de consciência intenso. A literatura deve — e faz isso — produzir no leitor um estado de inquietação. São estados variados, mas que de certa forma vão além da própria experiência vital, da própria experiência do indivíduo em si. Ela tende a alargar a perspectiva de vida da pessoa. Quer dizer, a pessoa, através da literatura, alcança patamares de vivência que vão além da própria individualidade. No Brasil isso é complexo, porque esse país realmente é impressionante. Nós temos uma variedade e vivemos em um estado quase que de combustão, ainda em formação. Eu acho que a gente tem uma variedade de percepções e de reações, de lugar pra lugar, de espaço, de tempo… É muito complicado. Se você vive num país como a França, onde há uma uniformidade, vê as pessoas no metrô lendo o tempo todo. Em qualquer espaço livre que tenham, eles absorvem uma quantidade de alimento literário, você vê aquelas coleções todas circulando entre eles. Mas são estruturas já muito codificadas, muito sedimentadas. No Brasil, há uma certa cultura comum, mas acho que há muitas diferenças. Acho que a leitura, aí, é o elemento de união, o elemento catalisador que pode contribuir para um tipo de experiência em torno de formar, com todas as diferenças, uma certa unidade.

• Estado e leitura
Os recursos são limitados, a problemática do país é complexa, tem prioridades candentes… A situação da saúde pública e dos processos habitacionais tem de vir antes desse esforço de dotar a população desse instrumental efetivo de leitura, de capacitação de leitura. Enfim, há uma série de impedimentos — e é aquilo que a gente sente, isso é uma coisa intuitiva, eu não sei. Mas o que eu percebo é uma espécie de ação ainda muito desorientada. Quer dizer, o país está agora com certa perspectiva econômica interessante, uma estabilidade política e econômica que está possibilitando um tipo de continuidade de políticas públicas mais definidas. Nessa área de leitura, inclusive, vemos um avanço considerável — os programas de aquisição, essa coisa toda. Mas, às vezes, a sensação que você tem é de que o carro está diante dos bois. Não tem a condição básica, a educação formal que deve preceder esse tipo de programa, fica um esforço que se perde. Mas é melhor que se perca e que haja esse esforço, porque sempre fica alguma coisa. Está se armando uma massa de informação, de meios físicos, de meios concretos, que acaba gerando algum benefício… acaba ficando, acaba acordando nos lugares mais remotos e dentro de situações de vida complicadas, de sacrifício, acaba uma vocação qualquer surgindo lá. E que reage, absorve, queima etapas. Porque o Brasil tem isso também: a gente queima etapas. Por exemplo, estávamos falando das novelas. O que há de formação no espaço da novela é extraordinário. Tem muita coisa que realmente, com os limites do gênero, ensina, completa e dá uma visão mais interessante.

• Leitor otimista
Acho que sou mais otimista hoje [do que quando estreou na literatura, em 1968]. Quer dizer, por um lado, sim. Você pega uns autores do modernismo, um autor como [Manuel] Bandeira, por exemplo. Ele tinha uns 50 anos quando teve seu primeiro livro editado por uma editora. Eu estava com 30 e poucos anos e uma editora já me pegou. Então, há dados como esse, mas há outros. A quantidade de escritores aumentou, o público leitor aumentou, a universidade reagiu — está reagindo de uma maneira interessante, dinâmica, no sentido de que os autores contemporâneos estão sendo estudados, cada vez mais lidos. A própria poesia, mesmo com o público reduzido e com todas as dificuldades que traz em si sua leitura (é inegável que exige uma iniciação, um processo diferente do processo literário em geral, da prosa), teve uma ampliação no número de leitores. Eu vejo pela vendagem dos meus livros — que é bastante modesta, mas que está sempre ali, tem sempre um número de exemplares que está saindo. E poetas até mais jovens do que eu, que trabalham mais, estão dentro das redes sociais, essas coisas todas, vendem muito mais. Agora, por outro lado, nós vivemos uma etapa em que, do ponto de vista da qualidade de produção, é difícil saber se é comparável àquela de um [João] Cabral [de Melo Neto], do processo do modernismo, do Drummond, dos modernistas brasileiros, daquela idade de ouro que a literatura brasileira teve. E também a figura do literato já não tem mais aquela aura, porque outras artes ocuparam, de certa maneira. Você tem o cinema, tem a canção brasileira (que é notável, extraordinária)… E essa proximidade entre o divertimento e a cultura, também. As fronteiras estão ficando muito tênues. Enfim, tem uma série de coisas da realidade cultural contemporânea que complicam a questão. Mas eu acho que são esses dois lados. Nunca é um lado só. Um lado leva a refletir o outro.

• Formação do leitor
Tenho duas irmãs que são artistas. Uma delas eu perdi. Ela morreu muito jovem, com 33 anos, uma diferença de idade pra mim de 11 anos. Ela exerceu uma influência muito grande, era uma poeta realmente de muito valor. Produziu uma poesia extremamente forte e interessante — e aquilo exerceu uma influência muito grande. Eu começo a acordar um pouco para essa realidade, com ambição de querer vir a escrever poesia, aos 13, 14 anos de idade. Na adolescência. Eu começo a escrever os primeiros versos para corresponder um pouco… era muito ligado àquela admiração por Maria Ângela [Alvim, irmã]. E ela me prestigiava muito, prestava muita atenção no que eu fazia. A outra irmã, uma artista plástica que está viva e é também poeta, também exerceu uma grande influência. Meu pai, embora não fosse um intelectual assim como a gente percebe hoje, com a complexidade da formação intelectual que tem, para aquele período, era. Então, era uma família que tinha um embasamento cultural interessante — o que influiu, naturalmente.

• Primeiras leituras
Eu era um menino muito voltado para a vida de rua mesmo. Eu gostava era de futebol, e esse mundo dos livros foi uma coisa muito lenta e progressiva. Até meus 13, 14 anos, eu lia o que todo mundo lia: muita história em quadrinhos, [Coleção] O tesouro da juventude, Monteiro Lobato, Rafael Sabatini, Capitão Blood, aquelas coisas, enfim, livros de aventura. Não tinha nada de notável, nenhuma coisa excepcional. Depois, aos pouquinhos, Machado [de Assis] foi entrando, Eça também eu comecei a ler… E aí, um pouco mais tarde, com os meus 16, 17 anos, começa realmente um investimento maior. Li muita prosa, as traduções da literatura francesa, russa, os grandes romances do século 19… eu acho que foi uma presença muito forte. Aí, sim, começa propriamente a minha formação literária — com a leitura desses prosadores, Stendhal, Balzac, os russos, Guerra e paz, enfim.

• Tentativas
É…é uma coisa curiosa [gostar de romances de fôlego e ter uma obra concisa, sintética]. Eu tentei fazer prosa, mas muito pouco. Umas duas ou três narrativas em que eu vi claramente que eu jamais seria um prosador. A poesia eu acho que veio muito através desse processo afetivo que me ligou a minha irmã, quer dizer, aquela admiração e aquela necessidade de ter uma coisa ligada à expressão, propriamente. Desde que esses primeiros movimentos, esses primeiros interesses com a escrita foram se desenhando, era uma coisa muito forte. Eu não entendia a vida sem aquela atividade — algo que, com a maturidade, eu fui percebendo que não precisava ser assim, necessariamente. O mundo tem uma variedade de linguagens e de interesses imensa. A literatura é uma delas, não é a única.

• Ativismo ou estética?
Não. Era uma questão artística, era uma coisa de arte, um impulso que eu tinha em relação à arte. Mas eu sempre liguei muito literatura à vida. Tenho até um poema que diz mais ou menos isso. É um poema de O sol dos cegos — que, embora seja um livro de 68, traz poemas de 13 anos de atividade de escritor, então, a rigor, eu tenho ali poemas dos meus 17 anos. Tem esse poema que fala: “POESIA —/ espinha dorsal/ Não te quero/ fezes/ nem flores/ Quero-te aberta/ para o que der/ e vier”. Quer dizer, é um pacto com a vida muito forte. Evidentemente, tudo que eu vivi, inclusive a ditadura, teve uma presença muito forte na minha poesia. Tem versos meus que, direta ou indiretamente, dizem respeito aos 20 anos que eu passei, praticamente a minha vida de adulto, dentro de um sistema da ditadura e dentro de uma instituição do governo, que era o Itamaraty.

Francisco Alvim. Foto: Matheus Dias

• O “nascimento” da poesia
O solo é realmente a minha vida. Quer dizer, a minha experiência de vida e as minhas vivências. Mas elas são coadas. De certa maneira, não é uma relação, um relato direto, vamos dizer assim. É um relato indireto e simbólico. E também absorve não apenas as minhas vivências, não apenas as minhas experiências, mas as experiências que eu sinto ao redor de mim. Ou em pessoas com quem eu me ligo de uma forma ou de outra. Ou uma percepção genérica de um estado de espírito — mas aquilo que eu percebo como uma espécie de sinal dos tempos, e que eu absorvo como um sinal dos tempos, uma coisa mais genérica, que transcende a minha experiência diretamente. Ao  mesmo tempo, é um esforço material, é um esforço físico, é um esforço concreto. Você vai trabalhando aqueles poemas e, de repente, no fim de certo tempo — porque escrevendo pouco e com uma poesia que tende pra condensação, ela precisa de tempo — ela se escreve. E aí eu suponho que você sente em cada um dos meus livros (eu pelo menos sinto, porque eu estou ligado e sei) a diferença das etapas de minha vida. Estão ali. Depois, tem um momento em que o livro vai se impondo quase que de uma maneira autônoma. Ele vai estabelecendo as suas regras próprias, o ritmo dos poemas… um poema vai chamando o outro, vai se aproximando do outro, um poema vai esclarecendo “não-poemas”. Poemas que eu não achava que fossem poemas, e que às vezes continuam não sendo, são quebras dentro do livro, que a estrutura e a montagem do livro vão, por ele próprio, gerando. É um trabalho comparável ao da moviola de montagem do cinema. Enfim, são essas duas.

• Vida e literatura
Aí é diferente [conhecer-se melhor a partir de seus livros], porque realmente tem esse vínculo todo. Mas, no fundo no fundo, vida é uma coisa e literatura é outra. No sentido de que realmente o fato de você fazer um livro pode te dar muita alegria e tudo mais e, no entanto, sua vida pode não estar tão alegre assim. Está descolada uma coisa da outra. Você está passando por crises, depois supera essas crises. E, ao contrário, às vezes a sua literatura se tinge de melancolia e você está numa época radiosa, de grande euforia. Mas isso mostra também que são universos, que um alimenta o outro: a linguagem alimenta a vida e a vida a linguagem. Mas são universos que, no fundo, são distintos.

• Dalton e a elipse
Começando pelo Dalton [Trevisan]. Dalton é uma pessoa, um autor, que eu sempre admirei muitíssimo. E realmente isso que a Berta [Waldman] disse [sobre a influência de Dalton Trevisan], eu digo numa das primeiras entrevistas que dei, nos anos 1980, se não me engano, pra Folha [de S. Paulo]. Eu digo da dívida que eu tenho com o Dalton. Uma vez, um jornal aqui de Curitiba estava fazendo uma homenagem ao Dalton e me pediram um texto. Eu falei dessa dívida que tinha com ele, no sentido de que foi com ele que aprendi a elipse, o trato com a elipse, que é notável no Dalton. Mas uma coisa que me fascina nele — e eu aproximo de certo modo ao Nelson Rodrigues também — é o ouvido pra língua popular, para o coloquial popular, que é de uma riqueza, de uma poesia, de uma intensidade, de uma veracidade extraordinárias. Os dois têm isso, esse gênio da língua que eu acho admirável. Essa é uma aspiração que eu gostaria de ter e que eu sei que não tenho. Essa variedade do Dalton, que o Nelson tem também. O Nelson tem uma passagem, era uma crônica dele, menor, que é uma coisa absolutamente genial. Uma mocinha vai atender ao telefonema de um amante, alguma coisa assim (aquelas relações dele, extraordinárias), e diz: “Tu?”. Só isso, ela pega o telefone e diz: “Tu?”. Aquele “tu” dá um curto circuito em quem lê que é uma coisa extraordinária, a força do impacto daquilo. Então, com Dalton, eu tenho muito essa relação de admiração profunda, de encantamento e de percepções de técnicas, de estilo, que me acompanharam durante muitos anos e foram se intensificando. Sobretudo a leitura dele é uma leitura mais amadurecida, começa com meu O corpo fora. O passatempo obviamente já não tem tanto essa influência dele, mas com O corpo fora, que veio logo em seguida, nos anos 80, eu começo a me deter cada vez mais. E eu tive um conhecimento da literatura dele, dos livros dele, muito privilegiado, de certa maneira. Um grande amigo meu, Alexandre Olavo, um intelectual, recebia — nos anos 50 — o Joaquim, com aquelas outras ediçõezinhas (inclusive os próprios primeiros livrinhos dele, os contos, vinham em edições meio que mimeografadas, soltas, artesanais). Eu já lia o Dalton naquele período, antes dele estourar, digamos assim. Leio e releio, e todo ano eu estou ali, esperando por um livro dele.

• Drummond, caso sério
Drummond é um caso sério, é outra historia, é uma ligação realmente tremenda. E foi muito interessante, porque eu lia muito Jorge de Lima. Eu devia estar com meus 16 anos. Já estava no início desse interesse, dessa proximidade maior com a literatura. Ganhei de minha irmã Maria Ângela o livro As obras completas de Jorge de Lima e realmente fiquei fascinado, sobretudo com os últimos poemas, os poemas mais complexos dele. Você veja como é essa coisa do hermetismo da poesia: eu não tinha nenhum aparato intelectual naquela época e, no entanto, foi esse cerne mais difícil da poesia do Jorge de Lima que me captou, que me pegou. Mas era uma poesia metafórica, imagética e de uma experiência, de uma percepção brasileira notável. Tinha os grandes temas, a geofagia (que eu via na realidade das fazendas de Minas, de meus avós… via gente comendo terra, por fome). E aí o Drummond chega. Tem uma edição que sai no ano de 57, uma capa do Aloísio Magalhães (me lembro perfeitamente, tenho esse livro até hoje), e eu leio. E aí eu fiquei inteiramente… Jorge de Lima, esqueci imediatamente. Você é realmente sequestrado — essa história de poeta, quando um poeta te pega, é como um seqüestro. O outro desaparece, você se dedica a uma leitura apaixonada, por causa da experiência. Aquele vínculo com a experiência do homem de cidade, que já era eu, quer dizer, eu vivi um pouco essa dimensão rural, que o Jorge de Lima trazia, transfigurada. Meu pai foi a primeira geração da família que se urbanizou. Então, essa memória rural é muito presente ainda na minha experiência. Drummond fica melhor a cada leitura — e, mesmo quando ele é pior, ele é melhor sendo pior. Gosto menos do Drummond cronista. Tem algumas páginas notáveis dele de crônica, mas eu gosto realmente da poesia, é sensacional. Essa coisa da experiência, um vínculo que ele me ajudou a esclarecer: ligar a vida à experiência individual, por mais pobre, por mais deformada, por mais danificada (para usar uma expressão adorniana) que seja, realmente é a sua experiência e a sua individualidade — ao contrário do que diziam os militares, “de insubstituíveis os cemitérios estão cheios”. Ao contrário, eu acho que qualquer vida humana é absolutamente insubstituível, e tem um significado transcendente que a gente não percebe e tem que ser guardado. Esse vínculo com a experiência Drummond tem. E tem com um pulso que não teve jamais em nossa literatura.

• Envelhecimento
É uma experiência… Essa experiência do envelhecimento é muito interessante. Eu acho que esse livro [O metro nenhum] tem muito disso. E o anterior também, o Elefante já vinha com essa sombra. Eu perdi muitos amigos, perdi irmãos, na faixa dos 40, dos 50 anos. Tem uma hora que vem aquela sombra e leva muita gente, em geral na faixa dos 40, 50 anos. Aí houve uma demanda do nosso lado, meu e de minha mulher, porque nós perdemos pessoas muito queridas. E foi aquele susto, na maturidade, aquele trato com essas perdas. Isso desenha, de certa maneira, o panorama de agora: eu sobrevivi… sobrevivemos àquela faixa. E aí você tem o processo propriamente de envelhecimento, que é um processo complicado. Do ponto de vista da vida, no meu caso está sendo muito oscilante. Tem horas que eu sinto uma energia, um apego — que não tem nada a ver com a juventude, não se trata de uma juventude tardia. É uma energia de uma pessoa velha. E há outros momentos em que você fica a mercê, à deriva, você fica sem referências. A poesia tem um pouco disso, eu acho. Talvez até nesse livro isso esteja um pouco mais controlado — talvez por uma necessidade de resistir a essa oscilação e de não se dobrar a uma certa vontade de segurar essa barra, de enfrentar essa barra de uma maneira mais direta, mais frontal. Eu acho que existem livros meus em que isso estava desenhado mais atrás, eram mais desarmados, porque eu vi a velhice. Eu vivi com meu pai uma experiência interessante, e também com a mãe de Clara, minha mulher. Os dois estiveram conosco os últimos 12 anos de vida deles. E eram dois velhos de um vigor, de um interesse, de uma inteligência, de uma lucidez extraordinários. Eu via muito esse fenômeno da velhice também neles, e eu acho que nesse livro O corpo fora, por exemplo, que acompanha muito essa fase dos dois, e mesmo no Elefante, já há um prenúncio disso que depois iria viver, que eu estou vivendo agora de maneira mais direta.

• Morte
Tem horas que realmente nem sei se assusta. Você fica apavorado, pra dizer o mínimo.

• Poesia boa x poesia ruim
Eu me lembro de uma coisa que o nosso grande crítico Antonio Candido disse, em resposta a uma pergunta semelhante a essa sua [como diferenciar a poesia boa da poesia ruim com tanta gente produzindo]: é quando você sente o arrepio. Quando a pele arrepia, pode ter certeza que aquilo é poesia, é um poema bem feito. Eu acho que a poesia é uma coisa extremamente friável, é um gênero muito frágil. Então, o que é ruim bóia com uma velocidade extraordinária. Ela bóia, sobe. Muitas vezes, o que confunde é que, em primeiro lugar, o fato de você escrever maus poemas e de você aspirar à poesia já é um dado extraordinário, já conta a favor do indivíduo. Mesmo que seja por vaidade, por ilusão de si, do mundo, não importa, é um chamamento qualquer que merece todo respeito — e aquilo contribui de certa forma para uma naturalidade humana e um aspecto humano que deve ser tomado em consideração. Mas o fato é que você também não pode estimular ou viver se dobrando a essas coisas, aí [é preciso ter] o espírito crítico. Você tem que se esforçar, e às vezes é muito difícil mesmo você distinguir. Eu tenho a maior dificuldade quando você sente que a pessoa tem boa formação, que a pessoa sabe, está por dentro mais ou menos… a coisa da apreensão do contemporâneo é muito complicada — para mim, pelo menos, é. Há uma opacidade na linguagem dos contemporâneos que freqüentemente eu fico sem saber também.

Francisco Alvim. Foto: Matheus Dias

• O elefante
O elefante foi um poema interessante, porque ele veio muito tempo depois do fato que me produziu. Eu estava no Quênia. Nós estávamos visitando um daqueles parques do Quênia, maravilhosos, no Kilimanjaro. Aí, paramos num restaurante a caminho do parque, uma comida muito boa, todo mundo ali comendo, um ambiente muito bom, bonito. De repente, veio uma família de elefantes, umas duas “elefoas” com os filhotes. Eles se aproximaram e os turistas que estavam ali, nós entre eles, levantaram imediatamente e correram. Os garçons e guardas que estavam nas proximidades tentando nos segurar diziam: “São feras, são feras, não se aproximem, vão se assustar”. E nós não obedecemos. Felizmente, a família não reagiu mal. Ao contrário, acho até que ficaram confortados com aquele interesse nosso. Eu já tinha visto elefante em circo, em zoológico, mas é uma coisa inteiramente diferente, é uma coisa assombrosa. Então, é aquilo que está no poema: “o vento passa pra dentro, sai de fora, as pilastras se incendeiam, os espaços se misturam e em volta deles tudo canta e o conhecimento desaparece”. Isso veio. É um cântico, realmente. Tem esse mistério na poesia: a hora que você sente que há um canto, que o mundo canta, que o mundo realmente tem uma sonoridade, e o poema vai lá e pega. Ou, pelo menos, aspira pegar.

• Monteiro Lobato
Parece que estão achando que o Pedrinho é racista, umas coisas assim absurdas. Realmente, Monteiro Lobato tem aspectos racistas tremendos — como, aliás, é próprio da nossa sociedade. Nós temos o racismo infuso, quando não difuso, e quando não externado diretamente. Há vários poemas meus, inclusive, em que eu pego esse aspecto. São falas em que o componente racista está ali claramente dito. Mas isso não condena toda a literatura notável do Lobato. Eu não acompanho a literatura juvenil, eu não sei como ela é agora, não sei dos novos autores. Mas o universo do Lobato, pra mim, tem um sentido de uma experiência única. A literatura me chegou seguramente através de Monteiro Lobato. Caçadas de Pedrinho, Reinações de Narizinho são uma coisa… uma emoção que, mutatis mutandis, eu só teria equivalente muitos anos depois, quando eu li Proust, aos 30 anos de idade, quando fiz uma leitura vertiginosa de Proust e não largava o livro. Há um sentimento de revelação total — mas aí já no plano da maturidade, um outro plano. Mas ali talvez tenha uma analogia qualquer em que podem ser equiparados esses dois momentos de minha vida, de meu interesse pela literatura.

• O limite do politicamente correto
Aí realmente depende muito de cada escritor. O Loius-Ferdinand Céline, que é um autor magistral, é um antissemita, um sujeito que fez panfletos, que teria sido executado se não tivesse fugido da França após a Segunda Guerra. Tem o [Ezra] Pound, que é outro. E, no entanto, são pessoas notáveis que fizeram literatura notável. Há autores que têm uma certa compaixão, que são compassivos de natureza e que sabem perfeitamente onde está o bem e onde está o mal, essa coisa meio sem contraste, e se compadecem da natureza humana. São politicamente corretos e podem ser muito bons autores. O Guimarães [Rosa] é um deles. Inclusive na expressão. Eu tive um certo convívio, como colega no Itamaraty, com Guimarães Rosa. Ele ficava muito preocupado. Ele dizia: “Você tem uma responsabilidade imensa, você não sabe o que é escrever. Você tem que pensar, você vai ter um caráter formativo”. Eu achava uma graça e falava: “O senhor está dizendo isso tudo para fora, mas tem novelas suas em que o mal aparece com uma intensidade extraordinária, que o senhor esquece disso tudo que está falando”. Tem uma novela dele, Surupita, que é uma das coisas mais extraordinárias que eu já vi. Não é do mal absoluto, mas das paixões negativas do homem, que é uma coisa que ele pega muito bem.

• Felicidade e sofrimento
Você está me dando uma oportunidade de avançarmos um pouco nessa preocupação, nesse nosso estado de agora. Eu não me julgo em condições de dar aconselhamento, porque a luta contra essa situação de consciência crescente da finitude é tão cerrada que eu hesito em assumir que você possa generalizar sua experiência, achar que ela pode servir de referência para o próximo. Não há alívio, a meu ver, não há alivio para isso. O que há é uma espécie de esquecimento, é uma espécie de “como vêm esses momentos, eles se vão também”. Porque a vida tem uma tal força que se faz ainda mais intensa na medida em que sofre esse tipo de desafio… de ter que se posicionar, ter que trazer uma energia qualquer que te tire daquela situação de queda. É um processo natural, eu confio nele. Assim como vêm esses maus ventos, eles desaparecem também. E, de repente, a vida vem naquela dimensão da oferta, da clareza, da luminosidade, desse vínculo amoroso que nos liga e nos faz querer viver. Esse embate entre morte e vida, entre thanatos e eros, é uma coisa que não tem solução, não há como escapar. E aí tem um pouco esse binômio que você estava dizendo, da felicidade e do sofrimento. Eu acho que as duas coisas andam parelhas. Você sai de uma para a outra. Uma é condição da outra — e talvez isso tenha sido durante toda sua vida, mas agora adquiriu uma intensidade própria desse estágio do envelhecimento. A escrita acompanha isso, mas o que interessa aqui nessa conversa mais direta não é a escrita, é a vida, é a sensação, é o sofrimento e a felicidade.

• Geração marginal
Eu tenho uma ligação muito afetiva com esse período, porque foi um período muito doloroso, num sentido. Era o início dos anos 70, repressão fortíssima, eu sofri muito dentro da instituição, o Itamaraty. Eu me afastei, depois eu me reintegrei. Isso tudo coincide com uma vivência cultural do Rio de Janeiro muito intensa. Eu acompanhei os anos 50. O meu interesse pela literatura se consolida nos anos 50, com meus 18 anos, e aí a paisagem literária era outra. Depois vieram os anos 60, com o Cinema Novo. Eu era muito ligado ao Cinema Novo. Meu cunhado, irmão de Clara, era o Joaquim Pedro, que fez até o filme baseado no Dalton, Guerra conjugal. Enfim, o Glauber [Rocha], esse pessoal todo, eu conheci e convivi. Chegamos aos anos 70 e eu volto pro Brasil, estava no exterior, e tem esse movimento que surge. Ana Cristina [César] era aluna de Clara na PUC, o Cacaso era aluno de Clara… e aí os poetas, naquele período, tiveram uma presença curiosa e interessante. E tem um pouco essa história de que poeta surge em bando. Em geral você tem sempre um bando, um vai afinando o ouvido pelo canto do outro, eu gosto sempre de comparar a passarinho. Quer dizer, tem um piar ali entre eles, e aquilo me ajudou muito, porque era uma época tremenda, uma época muito triste. Mas, por outro lado, esse convívio dava uma força, tinha uma coisa, assim, de vida, de humor, de sensação. E o Rio ajudava muito, a paisagem extraordinária, praias maravilhosas. Então, eu não me sinto absolutamente com qualquer tipo de restrição quando me colocam ao contrário. Até acho que causa a eles, aos verdadeiros marginais do período, certo mal estar, porque a formação era outra. Eu era mais velho, em primeiro lugar. A minha formação literária era muito diferente da deles. Eu vinha ainda de uma formação letrada e eles já estavam numa coisa da cultura de massa, influências diferentes, rock, que eu percebia através deles, mas não era uma experiência direta. Mas, na essência, havia uma grande afinidade: essa coisa da experiência, de você não fugir à sua experiência, não ficar dominado pelo polo da linguagem, pela força intelectiva que a poesia e o conhecimento poético trazem, mas se deixar sujar pela vida, se deixar acompanhar pelos limites da vida — mesmo que isso cause a imperfeição, a perecibilidade, a má qualidade, o mau poema, não importa. O que importa é que você está inteiro ali, aquilo está de certa maneira ligado a sua vida.

• Da estréia ao último livro
Eu reconheço a fragilidade, a fraqueza, a má poesia, uma série de coisas que às vezes me incomodam, mas nunca deixei de gostar deles [seus livros]. Acho que há um vínculo profundo entre o início, o meio e o fim. E, para mim, há momentos em que isso me dá uma alegria intensíssima. É um mistério: eu tenho muitas dúvidas a respeito da qualidade da minha poesia, de uma série de coisas, mas que não interferem com esse sentimento amoroso com relação ao que escrevi. E, depois, tive muita sorte. Desde o primeiro livro recebi boas avaliações. O José Guilherme Merquior escreveu um ensaio muito bom sobre meu primeiro livro, O sol dos cegos; o Cacaso escreveu um ensaio extraordinário sobre o Passatempo, ensaio que ele não completou, mas admirável; o Roberto [Schwartz]; o [José Miguel] Wisnik… várias pessoas se manifestaram, tive muita sorte no percurso. Muita gente também não gostou, mas isso é do jogo — e alguns até perturbam. Eu leio as críticas todas, positivas e negativas. A crítica negativa, bem não faz [risos], mas eu entendo, às vezes, as dificuldades que a poesia cria — e não tiro a razão. Podem ter dúvidas. Eu tenho.

Paiol Literário

O projeto Paiol Literário, realizado pelo Rascunho desde 2006 em Curitiba, já contou com a participação de mais de 70 autores brasileiros. É um grande acervo sobre a literatura brasileira contemporânea. Os encontros são iniciados sempre com a pergunta: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”.

Rascunho