O jornalista e romancista paraense Edyr Augusto foi o quinto convidado 10ª temporada do Paiol Literário — projeto realizado pelo Rascunho, com patrocínio do Itaú, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura. Neste ano, os encontros acontecem online, com transmissão pelo Youtube, e todo conteúdo também fica disponível no site do projeto.
Edyr Augusto nasceu em Belém (PA), em 1954. Jornalista, escritor e radialista, estreou na literatura com a publicação de Os éguas, em 1998. Ainda na narrativa de fôlego, lançou Belhell (2020), Pssica (2015), Selva concreta (2014), Casa de caba (2004) e Moscow (2001). Transitou pelo conto com Um sol para cada um (2008). Sua prosa está traduzida na França, onde ganhou o Prêmio Caméléon, oferecido pela Universidade de Lyon, e na Inglaterra. Realizado desde 2006, o Paiol Literário já recebeu 76 escritores. O próximo bate-papo acontece em 4 de novembro, excepcionalmente às 15h30, com participação da romancista Patrícia Melo. A mediação dos encontros é do jornalista e escritor Rogério Pereira, editor do Rascunho.
• Luz no fim do túnel
Literatura é vida. É uma exigência dos seres humanos, porque é por meio dela que conhecemos outros mundos. Que passamos a escrever melhor, falar melhor. E passamos, também, a vivenciar emoções que nem sempre temos — ou até teremos, quem sabe? Mas a literatura ilumina nossa inteligência. Ilumina nossas vidas e nos leva adiante. A literatura, diria, é essencial para o ser humano. Essencial mesmo.
• Berço literário
Eu não tinha como fugir da literatura. Meu avô foi uma figura muito importante no Pará. Além de ser o fundador da primeira emissora de rádio da Amazônia, ele também escreveu livros em vários gêneros. Foi jornalista. Meu pai e minha mãe também escreveram livros. Meu irmão escreve livros. Uma tia minha, poeta, ficou muito famosa. As primeiras histórias que conheci foram as de “capa e espada”. Meu avô tinha uma grande biblioteca, li toda a coleção — Robin Hood, aquelas coisas todas. Isso formou minha imaginação.
• Zé Lins e Euclides
Quando estava no colégio, um professor escolheu livros importantes e dividiu para a turma ler. Caiu para mim Menino de engenho, do José Lins do Rego. Fui pedir dinheiro a minha mãe para comprar a obra, e ela disse: “Veja se o seu avô não tem esse livro”. Ele tinha e me emprestou. Quando abri, tinha uma dedicatória do Zé Lins para ele — o que me fez me sentir muito feliz. Esse livro foi muito importante, primeiro por me fazer travar contato com a literatura brasileira. A história é sobre um garoto que passava da infância para a adolescência, o que era meu caso na época, então a escrita dele me cativou. Tanto que li outros, Banguê, Fogo morto. Isso tudo me levou direto para a literatura brasileira. Já aos 14 anos, tive a audácia de ler Os sertões, do Euclides da Cunha. Lembro que pulei A terra e O homem, fui direto para A luta. Aquilo me lembrava os livros de “capa e espada”. Não parei de ler. E comecei a formar minha ideia de como escrever por meio dos cronistas e contistas dos jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo — meu pai, jornalista, trazia os impressos para casa. Nelson Rodrigues, os mineiros, todos aqueles nomes importantes da crônica.
• Primeiro ato
Minha primeira manifestação, digamos assim, foi uma peça de teatro que escrevi aos 16 anos. É meu único texto regionalista, que surgiu a partir da lenda do boto — muito forte na Amazônia. Meu irmão mais novo tocava violão e, naquela época, a ópera rock — Jesus Cristo Superstar e outras — estava em voga. A androginia também estava muito na moda. Imagina só, androginia em Belém do Pará! Não era como hoje, que todos estão amando todo mundo. Para nós, a androginia era algo ligado à alegrias, às cores, enfim. Pegamos o boto como o grande galanteador, o grande galã e tal, e resolvemos fazer uma peça chamada O boto andrógino. Nós revertíamos a questão: o boto, na verdade, era gay. Meu irmão desistiu no meio do caminho, foi ser pintor, e eu resolvi continuar escrevendo.
• Encantamento
A peça foi encenada com o título Foi boto, sinhá!, com músicas do Waldemar Henriques, um grande maestro da Amazônia. Eu tinha 18, 19 anos, e a peça ficou sete anos em cartaz. Perdi a vergonha na cara, talvez seja a palavra, o encabulamento. Me lembro de ter ido ao Theatro da Paz, que é o maior que temos aqui — uma réplica, em tamanho menor, do Scala de Milão. Quando a peça ia começar havia um tambor de carimbó tocando naquele teatro operístico, ressoava que é uma beleza. É como se dissesse a mim mesmo: “Este é o lugar que quero”. A partir dali, o assunto tomou meu dia a dia. Eu também já começava a trabalhar como jornalista, de modo que essa coisa da escrita, de ter à minha frente um teclado, passou a ser algo constante.
• Segundo ato O que me deixou muito empolgado foi poder contar histórias. Quando escrevi essa primeira peça, por exemplo: ver o resultado disso, as pessoas falando. Me encheu de empolgação. Percebi que podia criar alguma coisa, tanto que meu segundo trabalho foi outra audácia realmente grande. Houve uma revolta aqui em Belém, em 1835, a única revolta que aconteceu no Brasil e que o povo tomou o poder, chamada Cabanagem. Li no jornal que ia se completar 150 anos dessa revolta, teve uma cobertura grande de imprensa, então tive a ideia de escrever uma peça. É um assunto até hoje ainda muito discutido no Estado, e não me dei conta das coisas que cercavam o assunto. Escrevi. Foi de um resultado magnífico em termos de público e crítica.
“Hoje em dia, a definição de um político no Brasil é simplesmente um bandido.”
• Poesia marginal
Tomei contato com o que chamavam de “poesia marginal” nos anos 1970, começo dos 1980. Eu viajava, ia até o Rio de Janeiro, São Paulo, assistia a peças de teatro. Comecei a procurar nas livrarias autores como Chacal, Leminski, Alice Ruiz. Escrevi alguns poemas e, naturalmente, mostrei para meu grupo de amigos. Acharam que eu devia lançar um livro. E lancei Navio dos cabeludos — com esse tipo de poesia que trabalha grafismos, ilustrações, tentando alguma coisa nesse sentido. E assim me mantive por algum tempo.
• Audiopoemas
Acho que lancei até hoje uns cinco livros com poemas nessa mesma linha, sendo que nesse ínterim também publiquei duas fitas com audiopoemas. Trabalhei em rádio a vida inteira, lidando com áudio, então lancei fitas. Não posso dizer que declamava os poemas, eram quase interpretados. Lancei duas dessas, uma se chamava Mr. Bentley e a outra, Óleo, porque faz a língua passear no céu da boca.
• Radionovela
Segui escrevendo para o teatro e surgiu a ideia de reunir o trabalho em livro. Lancei um com dez peças. Comecei a publicar em jornal algumas crônicas. O tempo vai passando. Um dia, meu irmão mais velho — que na época era diretor da Rádio Cultura do Pará — me disse que estavam pensando em voltar com as radionovelas — que, aqui no Pará, fizeram muito sucesso. A emissora que era da minha família, a Rádio Clube do Pará, foi autorizada pela Rádio Nacional a ter seu próprio casting de atores de rádio. Aí, meu irmão perguntou se eu não tinha alguma ideia. Disse a ele que — naquela época, no começo dos anos 1990 — uma peça de teatro para rádio devia conter muitos sons. Esses sons eletrônicos, que hoje tomam conta da vida da gente, começavam a surgir. Achava que haveria uma cena de crime e as pistas iniciais estariam numa secretária eletrônica, que era uma novidade. Ele disse: “Vamos ver”. Mas não aconteceu nada.
• Os éguas
Nisso da radionovela, comecei a escrever meu primeiro livro, Os éguas. Começa exatamente com a cena de um crime. Fui construindo a história e percebendo que era quase como um novelo — foi se desenrolando na minha frente. A cada dia escrevia um capítulo, pensava no que ia fazer, e fui adiante. Quando escrevo um livro, não sei como vai acabar. Não sei como é a metade. Tenho as primeiras cenas e vivo com aqueles personagens que crio. Passo a viver com aquilo, desenvolvendo a trama toda.
• “Problema”
Houve um problema quando o livro foi lançado. Acho que foi a Livraria Cultural que ligou para a Boitempo — minha editora até hoje — e disse que havia um erro grave na capa: devia ser As éguas, e não Os éguas. O livro precisava ser recolhido. Isso me levou a algo que havia pensado: colocar como título palavras que fossem interessantes e diferentes, para chamar atenção para a cultura da minha região. Uso algumas palavras do que nós chamamos de Nheengatu, o idioma dos índios daqui, que é um ramo do Tupi-Guarani. Muitas palavras do Nheengatu fazem parte do nosso dia a dia. Essa foi minha grande loteria. Meu grande prêmio.
• Editora fiel
Eu tinha dificuldades de arranjar uma editora aqui em Belém. Li no jornal que uma chamada Boitempo, da Ivana Jinkings, havia ganhado um Prêmio Jabuti. Mandei uma carta para ela na época — nem me lembro se já havia e-mail, provavelmente sim —, ela me respondeu dizendo que era uma editora pequena, que estava fazendo muitos biscoitos finos, mas que leria o livro. Mandei. Quinze anos depois, ela me disse que ficou com medo de ter gostado do livro por ser paraense também, então mostrou a mais cinco amigos paulistas. Eles deram aval para o lançamento. Não só lancei meu primeiro livro pela Boitempo, como estou lá até hoje. Essa amiga, Ivana, apostou em mim. Apostou na minha carreira. Apostou nos livros. E eu saí lançando, alguns com dificuldade de se impor, dificuldade de receber críticas no mercado maior (Sul-Sudeste).
• Moscow
Nunca planejei nada. Essa que é a verdade. Os éguas saiu, recebeu duas ou três linhas no Jornal da Tarde, de São Paulo, que não existe mais. Aqui em Belém, como sou jornalista, os colegas deram algum embalo. Eu estava empolgado. Comecei a escrever — era uma diversão — dois romances ao mesmo tempo, para ver o que fazia. No meio desse processo, li uma notícia no jornal a respeito de dois jovens delinquentes tocando o terror na Ilha de Mosqueiro, que fica a 40 minutos de Belém e durante muitos anos foi vista como uma cidade mágica, um paraíso de classe média. Isso me deu ideia de escrever um livro. Quis fazer outro exercício: escrever na primeira pessoa. Deixei os dois romances de lado e passei a escrever o Moscow, meu segundo livro. Esse foi um problema, porque na França saiu com o mesmo título e algumas pessoas poderiam achar que fosse sobre espionagem ou qualquer coisa assim. Não se trata disso. O livro foi publicado pela Boitempo e tive grande sorte. Alguns amigos escritores, que estavam sempre ali na Mercearia da Vila Madalena [em São Paulo], pegaram ele e saíram pelo mundo dizendo que era muito bom. Marcelo Mirisola, Marcelino Freire, Ronaldo Bressane, Luiz Ruffato: eles saíram dizendo que o livro era muito bom, e isso me abriu espaço em jornais do Rio e São Paulo, coisa que ainda não tinha acontecido comigo.
• Na Inglaterra
Adiante, alguns livros depois, a Boitempo começou a participar da feira de Frankfurt para a venda de direitos autorais. Tive um livro — Casa de caba — vendido para a Inglaterra, lançado como Hornets’ nest. Estive lá com o rapaz que traduziu. Ele era jornalista também, um sul-africano criado em Moçambique que escrevia no Financial Times. Falava português. Mas, para traduzir o livro, precisou adquirir videocassetes de filmes pornográficos brasileiros para escutar os palavrões, decifrar e tal. Lançou lá, na Inglaterra, e não aconteceu nada.
• Premiado na França No ano seguinte, dois livros meus — Os éguas e Moscow — foram vendidos para a editora Asphalte, da França, que é de duas moças sensacionais, Claire e Estelle. Em seguida, recebo a notícia que a Universidade de Lyon me deu o Prêmio Caméléon, que anualmente escolhe quatro ou cinco autores que tenham sido traduzidos para o francês. Claro que livro não mete gol, é muito subjetivo, mas a verdade é que ganhei concorrendo com grandes escritores do Sul e Sudeste — muito conhecidos, sou fã de vários. Viajei para receber. Você chega lá e vem o reitor, num auditório com muita gente, todo mundo falando sobre o livro.
• Ponto de virada Ao mesmo tempo, na época, já estava lançando o Pssica — meu penúltimo livro publicado aqui no Brasil. Foi quando começa a acontecer algo que não dá para fugir muito. Começaram a dizer: “O cara ganhou um prêmio na França, vai ver que é bom”. Porque tem aquele monte de livro que chega nas mãos dos resenhistas, livros das maiores editoras, grandes e famosas, livros maravilhosos, e tem o meu livro ali embaixo, da Boitempo. O sujeito olha pra um lado e pro outro e vai nos mais famosos. Mas aí pegaram meu livro e comecei a ter direito a páginas em jornal, a dar entrevistas, viajar. Fiz um circuito com o Leonardo Padura, ali pelo Nordeste, apresentando a obra. Você começa a ficar mais conhecido. Quer dizer, primeiro você tem que ser conhecido lá fora para alguém te achar aqui.
• Parede de gelo
Existe uma espécie de muro — sabe a série Game of thrones, que tinha uma parede de gelo? Parece que há um muro enorme entre nós que moramos aqui em cima, no Norte, e a grande mídia que fica no Sul e Sudeste. É difícil de pular isso. É difícil de furar esse bloqueio. As pessoas não conhecem nada fora dessa região. Para mim foi muito difícil, mas consegui. Tive a sorte de conseguir chegar, auxiliado por esses escritores amigos e pela Boitempo, que apoiou todos meus lançamentos, seguidamente. Hoje, já tenho três livros vendidos para o cinema, por exemplo. E os livros começam a ser melhor recebidos. Você já conta com uma audiência melhor. No lançamento do meu último livro, Belhell, que aconteceu em fevereiro ou março do ano passado, pouco antes da pandemia chegar e quebrar tudo, lembro de receber meus amigos escritores. Eu dizia a eles: “Eu que sou fã de vocês”. E feliz por eles também gostarem do meu trabalho. As coisas começam a acontecer.
• Efervescência
Há uma cena literária bastante efervescente em Belém. Nós temos escritores regionalistas, jovens escrevendo terror, alguns já com editoras nacionais lançando suas obras, livros de fantasia, ficção científica. Todos muito jovens. É como se fosse: “Vamos fazer. Se ninguém olhar, a gente faz de qualquer maneira”. Há pequenas editoras aqui, e alguns já conseguiram contratos nacionais, lançando especificamente nessa área que, sobretudo, a garotada gosta muito, a de terror e fantasia. Há uma moça daqui que ganhou um prêmio que eu e alguns escritores inventamos. Ela escreve fantasia. Fui conversar com ela e ouvi: “Minha influência é Harry Potter”. Disse a ela: “Acho interessante isso. Se você, no próximo livro, escrever sobre o que nós chamamos de Encantarias do Marajó, acho que vai tornar sua literatura única”.
“A literatura, diria, é essencial para o ser humano. Essencial mesmo.”
• Segredo literário
Esse parece ser um dos segredos da minha literatura — não que seja segredo, porque é o que se deve fazer: utilizo Belém, minha cidade, como cenário. E quero trazer todos para conhecer a cidade. Veja bem, nós humanos, o que somos? Desejo, ódio, paixão, amor, romance, inveja. Somos todos iguais. O que muda é a maneira de contar, e no caso o cenário.
• Encontro cultural
Uma vez estava na Bretanha participando de um evento. Subi ao palco com a Patrícia Melo e o Luiz Ruffato. Haviam 800 pessoas para nos ouvir e era a primeira vez que eu tomava parte de uma coisa assim. Os dois dando show, falando de Brasil, Bahia, Rio de Janeiro. Percebi que eu não tinha discurso. Naquela hora, no pânico, encontrei um: disse a eles que eu vinha de um mundo diferente. Meu mundo era a maior floresta tropical do mundo e havia sido fincada em cima dessa floresta uma outra, de concreto, e que havia uma perplexidade entre o homem que sai do meio do verde e o que pisa na floresta de concreto. O encontro dessas duas culturas motivava, e motiva, minha escrita.
• Noção de mundo
Moro no centro da cidade. Estou acostumado a sair. De certa maneira, o entorno me protege. Meu trabalho ficava a 300 metros da minha casa, então ia andando. Todos os dias, quando saía para trabalhar, falava com prostituta, traficante, pimp, viciado, gente que toma conta de carro, engraxate, vendedores. A cada um deles eu dava uma pequena atenção, porque me interessava ouvi-los. Eles falavam. Ouvindo-os, percebia a cadência da voz, as gírias. Os centros das cidades funcionam como uma espécie de ímã, atraindo pessoas das mais variadas queixas e necessidades. Essas pessoas não têm um porvir, acordam e não sabem se vão almoçar. Vivem um dia de cada vez. Você chega junto e oferece um ouvido, elas vêm, você dá um presentinho, dá um dinheirinho para comprar uma coisa, uma camisa, para tomar o que eles chamam de “goró”. E, assim, vai formando uma espécie de cinturão de segurança. O contato com essas pessoas dá uma noção maravilhosa de mundo. Quando você vai escrever, entra nesse ambiente. Eu, assim faço. A impressão que tenho é que, quando estou escrevendo, essas pessoas estão atrás mim, perfiladas, me cutucando, pedindo para eu não esquecer de determinada coisa.
• Público-alvo
Escrevo um capítulo por dia, geralmente, e depois passo o resto do tempo com aquilo na cabeça, me tomando, me levando para o que vem em seguida. É como se eu vivesse com os personagens, todo aquele trajeto a ser percorrido, que eu também não sei como vai terminar. Quando uso palavras bem nossas daqui, pontuo aqui e ali de tal forma que a pessoa que esteja lendo fora de Belém não se pergunte o que eu quis dizer, porque de certa maneira conduzo o texto para que ela entenda. Sempre digo que meu primeiro público é o da minha cidade. Quero que essas pessoas leiam e se encontrem nas ruas, saibam onde tudo está acontecendo. E, para quem mora fora da cidade, quero oferecer um cenário diferente.
• Trabalho do tradutor
Dei muita sorte. O tradutor de todos meus romances na Asphalte, o Diniz Galhos, é um francês filho de portugueses. Ele também escreve livros, mas percebeu que podia trabalhar como tradutor. Chegou na casa dos pais e disse: “De hoje em diante, só se fala português nessa casa”. Dessa maneira, teve um contato ainda maior com a língua e se tornou tradutor. Nos primeiros livros, nós trabalhávamos muito por e-mail, para que eu pudesse explicar para ele algumas coisas. Aqui, por exemplo, “pipa” é “papagaio” e eles cortam com “linha de cerol”. Quando eles cortam bem rente à união da linha com o papagaio, chamam de cortar no “gasgo”. Eu tinha que explicar o que é o gasgo. Mas, aos poucos, ele já não pede tantas informações. Ele é muito bom.
• Obra original
O livro só é essencialmente o livro quando lido no original. Quando é traduzido sempre tem uma visão do outro, do tradutor. Mas ele [Diniz Galhos] faz o trabalho de uma maneira maravilhosa, excelente. Tenho ido à França trabalhar por esses livros e nunca recebi uma pergunta quanto ao significado das palavras. Pelo contrário, eles são até muito atentos. Sabem o nome do meu cachorro. É uma coisa maravilhosa, porque leram o livro antes de te entrevistar. E são perguntas muito interessantes. Tenho sorte.
• Violência literária
O brasileiro era o homem cordial, né? Antigamente. Hoje, vemos essa violência que está todos os dias na mídia. Nosso país tem muitos problemas, sobretudo de educação e cultura. Isso forma pessoas com menos civilidade, menos argumentos para refletir. Não digo nem ter argumentos para convencer os outros, mas para refletir sobre seus próprios atos. Obter suas próprias respostas, que seja. Isso nos agride muito. Uma moça que estava na plateia da Balada Literária [em São Paulo], quando participei do evento, me disse que tinha a impressão de que o fato de eu ser jornalista fazia com que meus livros fossem quase que como uma denúncia. Tive de concordar um pouco. Tenho influência do nosso Rubem Fonseca, evidente que tenho, todos nós temos, e também tenho do Bret Easton Ellis, todos esses grandes escritores.
• Denúncia?
Quando comecei a escrever romances, optei por ser bastante cru — não só nas cenas de violência, nas de sexo também. Acho que optei por essa direção como uma evolução natural da minha escrita, que está apenas anunciada n’Os éguas. No Moscow, ela já vem mais clara — uma concisão muito grande, ausência de grandes descrições de local, como se eu quisesse trazer o leitor como cúmplice para que ele acompanhe a história comigo. Gosto das cenas de violência com o tamanho certo, com a violência certa. E aí vai a questão: será que é denúncia? Tipo: “Não faça isso. Olha como isso é absurdo”. Acho que uma coisa levou à outra.
• Sem culpa
A minha ideia do Moscow é que, você vê, pai e mãe trabalham fora. Eles chegam em casa muito cansados, veem televisão, novela ou o jogo de futebol, e o garoto cresce sem essa mediação de assuntos em casa. Ele forma um grupo de garotos na esquina, e esses garotos, por suas opiniões diversas, acabam formando uma moral deles. O que eles acreditam que devem ou não fazer, isso ou aquilo. Em Moscow, eles tinham um grupo e o grupo fazia o que queria — comete violências sem culpa. Quer uma coisa, vai e toma. Aquela velha história: se vejo na televisão, esses garotos todos com tênis importados, camisas maravilhosas, por que não posso ter? Vou lá e tomo. Então essa questão da violência está ali, no livro, bastante forte.
• Belhell
Tenho uma curiosidade literária a respeito de matadores, criminosos. No meu último livro, Belhell, há um médico. Conheço médicos. E esses médicos, por diversos motivos, até por uma educação deficiente, eles se tornam grandes profissionais, mas pessoas com pouca civilidade, poucos argumentos para autorreflexão. São pessoas que, fora dos consultórios, das salas de cirurgia, não têm um hobby. Elas têm uma convivência ruim ou difícil com a família, porque não têm muito o que conversar. Pensei nesse médico, que é um intensivista, trabalha em plantões gigantescos e difíceis, sob muita pressão, e num deles ele solta essa pressão. Na madrugada, pede uma licença rápida para fazer um lanche e mata mendigos ou pessoas solitárias que estão nas ruas abandonadas. Descrevo o ato todo. É como se eu investigasse, dentro dele, o que o move. Por que ele joga fora aquela adrenalina toda cometendo um ato de tanta gravidade? Nos meus livros, realmente, há muita violência. Infelizmente, o Brasil hoje está assim. Minha cidade é muito violenta, por exemplo.
• Diversão
Escrevo meus livros para me divertir. Vivo a escrita, quando estou trabalhando, e me sinto a melhor pessoa do mundo. Alguém me perguntou como eu dormia depois de escrever uma cena escabrosa, de assassinato e tal. Disse que dormia feliz da vida — não pela cena em si, mas por ter a escrito bem. Algo que me satisfez. Escrevo para mim. Escrevo porque acho bom. Segundo ponto, escrevo para as pessoas que moram na minha cidade, que eu gostaria que lessem mais.
“Escrevo meus livros para me divertir.”
• Belém profunda
Os franceses dizem que quebro o cristal de uma Amazônia hedonista ou de um Éden. Disse uma vez para eles que, apesar de viver no meio dessa floresta de concreto, tenho tudo que eles têm. Vejo o campeonato francês, o Neymar jogando com o Messi, Mbappé, vejo tudo. A cidade sofre dos mesmos problemas que o mundo inteiro está sofrendo, geralmente ligados à educação e cultura, e que se refletem na falta de emprego. Belém é uma cidade que, até os anos 1960, tinha 1 milhão de habitantes. Antigamente, no início do século 20, havia 40 consulados devido à enorme troca de mercadorias com a Europa. Isso vai adiante quando, de repente, são descobertas as grandes riquezas aqui, as minas, isso tudo. Há uma grande corrida do ouro na Amazônia, Serra Pelada. Noventa e nove por cento dessas pessoas que foram para lá, achando que iam ficar ricas, ficaram mais pobres ainda. Elas acabaram fazendo um cinturão de pobreza em volta da cidade, que não consegue oferecer um porvir. E mais a falta de educação, de cultura, postos de trabalho — tudo isso faz com que tenha violência.
• Tráfico
Aqui, na nossa região, temos uma capilaridade enorme de rios. Os rios são nossas ruas. A quantidade de tráfico que chega — seja da Colômbia, seja da Bolívia — por meio dos rios, em pequenos portos, e que são transportados daqui seja para o Suriname, Estados Unidos e principalmente Holanda, é gigantesca. As drogas passam e deixam por aqui apenas o lixo, que é consumido por pobres. A violência cresce e atinge todo mundo, mas ainda há quem fique muito rico com esse tráfico todo.
• Recepção da obra
Já fui menos recebido [como escritor] em Belém. Atualmente, por todo esse percurso, a situação está bem melhor. Tenho uma amiga que nunca leu o Moscow, por exemplo, porque não consegue. Por conta da violência que está embutida. A maioria dos meus amigos me pergunta: “Esse personagem não é o sicrano?”. Preciso dizer que não, porque os personagens são todos uma soma. Um outro me disse: “Você não tem medo de ser morto, de alguém se vingar?”. Não. Até porque eles também não leem, felizmente. Mas meu trabalho é recebido assim. Tenho frequentado muitas salas de alunos de Letras das universidades e sou bem-recebido. O que me incomoda muitas vezes, nesses alunos de Letras, é que você sempre tem que chegar e dizer: “Muito prazer. Sou Edyr Augusto, escritor”. São alunos de Letras, que deveriam me conhecer muito bem, porque deveria ser o assunto preferido deles, mas ainda temos que enfrentar essa preferência por grandes autores… Nós temos três grandes livrarias na cidade, a Saraiva (que não está muito bem), uma chamada Leitura (vai muito bem, e tem alguns dos meus livros) e a Fox, uma local, que vende todos os escritores de Belém e tal. Aí, você começa a ter uma receptividade, alguém que te para na rua e pergunta quando vai sair outro livro. Você começa a ser mais bem-recebido. Mas eu deveria entrar nessa Saraiva ou nessa Leitura e ser saudado, porque sou um escritor com 16 ou 17 livros. Mas não. Ainda há muito dar-me por ser reconhecido na minha cidade.
• Ensino frágil
O projeto de educação brasileiro é muito fragilizado. Me lembro uma vez: um menino me contou que a irmã vinha passando de ano sem saber ler, ela decorava para ir passando. Perguntei à professora: “Por que permitiu que ela passasse?”. Tem uma coisa de hoje que é para não reprovar esses alunos. E ela disse: “Você prefere que eu reprove e ela não volte nunca mais para a escola?”. São perguntas difíceis de responder. É uma situação tão difícil. Acredito que só a educação e a cultura vão levantar nosso país. Veja, por exemplo, que nós temos umas três gerações perdidas no Brasil. Digo isso porque a educação, de uns 30 anos para cá, ou 25, caiu muito. Caiu completamente. Você tem hoje jovens que não sabem nada, se voltam para o telefone celular e ali desenvolvem a vida com um pequeno grupo, inventando termos para cá, para lá. Os que se interessam por ler notícias leem só os highlights, quer dizer, você não quer ler um artigo inteiro para obter argumentos — seja para uma autorreflexão, seja para discutir com outras pessoas. Nós temos um problema sério de educação. Leio sempre uma moça chamada Claudia Costin, acho que escreve na Folha de S. Paulo, falando a respeito do novo método que está sendo aos poucos implantado, o de alunos poderem escolher especificamente ramos da educação aos quais querem se dedicar. Acho que isso pode ser interessante. Mas temos uma questão que acontece agora, neste instante. Você tem na sala de aula um professor que chega cansado, mal pago, mal-informado porque mal pago, e a única arma que ele tem é uma lousa e um giz. Atrás dele tem um grupo de alunos, cada um com seu celular. Essa competição é terrível. É perdida. Me pergunto o que fazer. Não tenho uma resposta.
• Amazônia real
Por pessoas daqui, confesso que nunca recebi críticas por não retratar a Amazônia como um paraíso. Talvez porque nossa realidade nos é esfregada na cara o tempo todo. Agora, é preciso compreender também que existe uma beleza brutal nessa cidade. Na natureza. Em visitar o Marajó, que tem seu lado terrível e outro que é realmente Éden. Lembro uma viagem que fiz: tem campos gigantescos, lindos. Lembro de estar no centro desse campo, parado, escutando a natureza — o silêncio, o vento. Raras vezes me senti tão bem na vida. Tem uma coisa linda nesse lugar que precisa ser vista. Mas, infelizmente, há o outro lado — que é forte. Como descrevo sobretudo para meus conterrâneos, para os que moram em Belém, no Estado do Pará, não recebo críticas. Ninguém nunca me disse: “Tu pesas muito a mão. Não é bem assim”. Talvez um dono de agência de turismo ache isso, né? “Para com isso, você tá atrapalhando meus pacotes.”
• Eleições decisivas
A impressão que me dá é que estamos perto de um precipício. Nós teremos essas eleições, em 2022, que me parecem um ponto de decisão para o próprio país. O que aconteceu depois da redemocratização foi que nós viemos num crescendo de maus hábitos. Hoje em dia, a definição de um político no Brasil é simplesmente um bandido. Claro que nem todos são, mas a verdade é essa. Você fala de político: “É um ladrão”. É o que todo mundo diz. Essa questão se espalhou por todo o país. Você acha a corrupção, a má fama do político nas menores áreas, nos municípios, capitais, estados, em Brasília, como se tivesse virado um antro onde as pessoas mais mal-intencionadas se reúnem para fazer de tudo. Tivemos uma decepção causada pelo PT. Ao longo do tempo, mostrou-se um partido progressista, que defendia as causas certas, mas decepcionou muitas pessoas. Talvez mostrando que não havia diferença entre ele e os outros. Havia os mesmos problemas de corrupção. Aí, você tem a ascensão de um presidente que aproveitou um vácuo, um momento que nem ele sabia que talvez pudesse existir. Temos, hoje em dia, essa questão polarizada…
• Polarização 1
Sábado passado houve uma manifestação aqui, acho que contra Bolsonaro. Naquele horário fui visitar um amigo que morava próximo à manifestação. Ela já havia terminado, e na porta de um prédio tinha um síndico aborrecidíssimo porque, de lá, haviam sido lançados balões cheios d’água nas pessoas que estavam na passeata. Fico me perguntando se daqui para 2022, mais do que balões de água, o que será jogado?
• Polarização 2
Como jornalista, fui criado para ouvir e ler tudo — de todos os lados, para depois criar uma opinião. Claro que nenhum desses dois lados me completa, me atende. Muitas pessoas estão aguardando o que seria uma terceira via, ou outras alternativas que não só essas duas, já testadas e desaprovadas. Desaprovada por mim, digamos, isso é muito pessoal. Não me sinto contemplado por nenhuma. Veja, com esses problemas de educação e cultura, essa massa ignara que caminha de maneira insana, sem pensar em nada. O grupo localizado no meio dessas duas pontas está sem saber como reagir. Acho que 2022 é uma questão muito séria para todos nós no Brasil.
“Nosso país tem muitos problemas, sobretudo de educação e cultura. Isso forma pessoas com menos civilidade, menos argumentos para refletir.”
• Leitor vulgar
Sou um leitor vulgar. Gosto de tudo. Diariamente, leio todos os jornais que posso, algumas outras publicações de internet, gosto muito de música. Neste instante estou lendo A trégua, do Mario Benedetti, mas acabei de ler o último da Ana Paula Maia [De cada quinhentos uma alma]. Acho ela uma das maiores escritoras brasileiras da atualidade, me agrada muito. Às vezes, leio livros mais antigos. O Luis Fernando Verissimo disse que compramos livros que jamais conseguiremos ler. Às vezes faço uma escala, leio um novo e outro que já estava na estante. Você tem ainda jogo de futebol na TV, fica querendo assistir a todos, algumas séries. Também escrevo para teatro. Minha mulher é atriz, nós temos o Grupo Cuíra. Atualmente, ela está ensaiando um texto que adaptei sobre uma prostituta que era muito badalada, atendia só os tops quando a cidade de Tucuruí foi invadida, mas depois, quando foram embora, ela caiu. Dramatizei essa vida. Tenho mais duas peças escritas, que vão começar a ser ensaiadas, e estamos trabalhando já com outros amigos em uma chamada Entre quatro paredes, do Jean-Paul Sartre, na qual contém a famosa frase: “O inferno são os outros”. Trabalho muito, graças a Deus, e tenho já em mente a primeira página do próximo livro. Estou esperando aquele momento certo, há um clique e vou pra cima. Quando começo a escrever, vivo aquilo até terminar.
• Ápice da escrita
Livros são como filhos. Meu pai dizia, com cinco filhos: “Lido com cada um de forma diferente, porque cada um tem seu próprio jeito”. Muitas pessoas dizem, curiosamente, que meu melhor livro é o primeiro. Outros dizem que é o segundo, Moscow. Tenho escutado muito as pessoas falando sobre Pssica. Talvez o Pssica seja o ápice da minha escrita, do meu amadurecimento, da maneira que conduzo tudo. Inclusive, não tenho medo do livro seguinte. Escrevi o Belhell, mas às vésperas do lançamento me perguntei se iam gostar. Será que um crítico vai dizer que Edyr Augusto não consegue repetir o mesmo sucesso? Graças a Deus, foi muito bem- recebido. Mas acho que o Pssica é o ápice em termo de escrita. Se tivesse que recomendar algum, seria ele.