Cristovão Tezza foi o sexto convidado da temporada 2007 do Paiol Literário, projeto realizado pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba. A partir de uma pergunta inicial — qual a importância da literatura na vida cotidiana? —, Tezza falou, principalmente, sobre o seu último romance, O filho eterno, que de maneira fortemente biográfica trata da relação com o seu filho Felipe, que há 26 anos nasceu com Síndrome de Down.
• A importância da literatura
No macromundo, a literatura é cada vez mais irrelevante. Não tem mais o poder de mudar nada hoje em dia e, tampouco, interferir ativamente no imaginário social de um tempo, como já conseguiu fazer em outros tempos. Em meados do século 19, com escritores como Tolstói, Dostoiévski, Dickens, Zola, a literatura estava no centro da arena dos grandes temas, da condição humana daquela época, daquele tempo. Ela foi progressivamente perdendo espaço, quase que se especializando numa área mais restrita. Outras poderosas linguagens surgiram: a visual, a do cinema, a internet. Quer dizer, a literatura está competindo com mil outras formas de arte — a música, a cultura popular — que tiraram dela aquela aura de importância, que se confundia com a filosofia, a sociologia, com grandes visões de mundo. Mas na vida pessoal, no ponto de vista do indivíduo, a literatura, sim, modifica profundamente. Ela coloca a nossa condição num patamar diferenciado — tudo o que envolve a atividade literária modifica profundamente a vida de quem gosta de ler, de escrever, de quem participa da história da literatura; você está em outro país; o país literário abre as fronteiras. Para o indivíduo, a literatura é poderosa. Para quem escreve, é quase como uma maldição. Depois que você entra na literatura, não sabe fazer quase mais nada. Você acaba sendo escrito por aquilo que escreve. A literatura passa a ser um processo progressivo a nos definir — o ato de escrever como um ato de autodefinição. Quando escrevemos, tornamo-nos personagens de nós mesmos. Hoje em dia, a literatura só pode ser boa quando sai do rebanho e se localiza no indivíduo, no homem sozinho, que é a grande realidade do nosso tempo.
• O início literário
Comecei a escrever os primeiros poemas em meados dos anos 60. Vivia num Brasil que entrava numa ditadura militar; era o início de uma grande polarização cultural — a questão do socialismo e do capitalismo. Um mar de utopias à vista. A literatura nasceu para mim junto com um signo de atividade de artes — tudo meio que se misturava: eu praticava teatro, escrevia para teatro, escrevia literatura. Também trabalhei como ator, iluminador, era, enfim, multifunção. A primeira peça em que trabalhei foi com a Denise Stoklos. Nessa época, a literatura sempre se vinculava à idéia da contestação. O escritor era antes de tudo um contestador, e muito ligado à política, com a idéia de que havia imperativos éticos aos quais não podia ficar indiferente. Era quase que obrigatório ser contra o sistema, contra a ditadura. Nesse sentido, a literatura entrou quase como uma performance, menos o domínio de uma técnica, a do profissional que escreve livros, mas de alguém que se entrega de corpo e alma numa atividade que não só “mudaria o mundo”, como aquele que a pratica. Era a idéia de uma ação sobre o mundo. Era coisa bem de juventude. Tentei todos os caminhos alternativos de sobrevivência. Era uma contestação visceral. Por sorte, não embarquei na luta armada. Muita gente em situação parecida a minha acabou morrendo estupidamente por sonhos semelhantes. Então, estava muito próxima a idéia de ser escritor. Depois, você vai amadurecendo e a própria história vai colocando as coisas no seu lugar.
• O fim de um bloqueio
O filho eterno é uma questão biográfica. Revê todo o meu percurso. A minha vida — como a de todo mundo — tem momentos marcantes, de transformação. Em 1980, eu tive um filho (Felipe) que nasceu com Síndrome de Down. Eu nunca havia escrito sobre este assunto. Esta questão de um pai que tem um filho especial nunca tinha entrado na minha literatura. Em todos os meus livros anteriores não há nenhuma referência. Nada. Simplesmente, era um bloqueio. Eu brincava e dizia: “não sou escritor para enfrentar este tema; não tenho competência de escritor para enfrentar este tema; ele é muito maior do que eu”. Então, eu meio que me defendia. Mas aquilo ficava oculto. Eu não podia morrer, acabar a minha existência como escritor, sem enfrentar o tema mais importante e impactante da minha vida. Foi assim que nasceu O filho eterno. É um livro muito difícil, muito pesado. Basta ao leitor ler 15 páginas para saber… Eu já tenho uma obra que fica em pé sozinha e posso arriscar mais e trabalhar outros temas. Embora os meus livros tenham sempre estrutura confessional, pois é um traço do meu estilo, da minha marca, nunca nenhum aspecto biográfico entrou em minha obra, a não ser muito perifericamente. Há o mergulho do narrador em vidas íntimas, como ocorre nos romances O fotógrafo e Juliano Pavollini.
• A transformação em personagem
O filho eterno é diretamente biográfico, um tema extremamente difícil, que coloca muitas armadilhas em torno de mim para que eu caia nelas. É um perigo. O discurso que envolve a questão da criança especial já é mediado pela sociedade e pela religião. Há uma série de cascas de bananas pelo caminho para você se arrebentar e destruir a literatura possível. Inicialmente, pensei em fazer um ensaio. Tanto que, curiosamente, sempre escrevi minha ficção à mão. Quando comecei O filho eterno, fui direto para o computador, que é onde escrevo ensaios, textos teóricos, resenhas, material para os alunos. Minha intenção era fazer um ensaio. Mas percebi que não me acertei — a linguagem não dava certo. Pensei: “eu não posso fingir que isso aqui não é comigo”. Sentia fraqueza teórica para enfrentar o tema. Num segundo momento, pensei numa autobiografia tradicional. Comecei a escrever como um depoimento. Mas também não estava conseguindo me afastar do tema. Até que me deu o estalo de transformar a mim mesmo num personagem, de tratar em terceira pessoa. Quando dei este salto — eu me transformei em personagem, eu me afastei —, fique à vontade porque eu sou um narrador naturalmente impiedoso. Então, eu podia bater em mim mesmo sem pena, pois era um personagem — “não era eu ali”. Quando se olha para o próprio passado, você se vê como um personagem. Se qualquer um de nós for descrever o que fez ontem, vai ver uma pessoa que não é você. É o olhar de fora que dá o acabamento. Quando peguei esta embocadura do personagem, o discurso romanesco (a ficção) tomou conta. Isso me resolveu uma séria de problemas miúdos. Por exemplo, desaparece a questão da fidelidade biográfica, não tem mais relevância nenhuma. Fiquei livre para estruturar os capítulos à maneira romanesca, de criar momentos de tensão, de fazer suspense. Consegui mergulhar de uma forma que o olhar objetivo e o depoimento não são capazes. Me libertei. O tema ficou estranho para mim. Num primeiro momento, veio aquela tentação de dar uma disfarçada: em vez de ser em Curitiba, colocar em outra cidade; em vez do pai ser um professor universitário e escritor, um gerente de banco. Mas, aí, o postiço ia aflorar. O fato de eu estar falando de mim mesmo em terceira pessoa deu uma força narrativa que nem o depoimento nem o ensaio teriam. Sinto a força deste livro porque estou inteiro ali, e ao mesmo tempo olhando de fora. Outro aspecto pesa: eu sou de Curitiba, que é uma cidade de uma timidez brutal. E os tímidos quando explodem são um perigo. Quando acabei de escrever O filho eterno e fui olhá-lo, fiquei apavorado: “mas o que foi que escrevi?”. É uma alta exposição. Mas por outro lado, eu pensava: “para quem não me conhece como escritor, o aspecto biográfico é totalmente irrelevante”. E tem a questão do gênero, do romance. A gente pensa ainda muito quadradamente a questão do romance como um formato acabado. O pessoal diz “o romance morreu”, mas esquece que antes de tudo o romance é uma linguagem, não é propriamente uma forma acabada; é uma forma camaleônica, que vai assumindo formas diferentes ao longo do tempo, mas fundamentalmente é um modo de ver o mundo. O objeto da prosa é a linguagem dos outros. No romance, fundamentalmente, o escritor passa a palavra para os outros. São os outros que falam. Quando me transformei em outro, o livro funcionou como romance. Estou ainda um pouco assustado com a repercussão.
• Raízes de distanciamento
Quando eu chamo a mim mesmo de “ele” é um artifício técnico. Esse artifício por si só começa a criar um distanciamento — a própria linguagem vai conduzindo a um tipo de distanciamento. Acho que fui capaz de me ver em vários momentos, nos pontos essenciais, como um outro. Não sou mais aquela pessoa de 30 anos atrás. Então, é possível criar raízes de distanciamento. Tanto que o último capítulo vai chegando ao tempo contemporâneo. Aí, é quase que simplesmente um trecho de um depoimento. As três últimas páginas, estou no momento presente.
• Defeito de origem
Sou meio autista para escrever. Eu meio que me desligo. O livro [O filho eterno] acabou tomando conta. Só percebi realmente o que tinha feito depois de parar, olhar para trás e reler. E percebi que em algumas coisas, mergulhei fundo mesmo. Mas eu achava que ou era radical ou o livro fracassava. O livro é sobre a relação de um pai e um filho especial. A volta que o romance faz na minha biografia é funcional. Lá pelo terceiro capítulo, comecei a perceber que o que se colocava para o nascimento da criança contrariava todas as expectativas de um pai: eu estava ali com um filho com defeito de origem. Ao mesmo tempo com sonhos de humanismo, sonhos de escritor. Eu era o melhor cara do mundo do ponto de vista de uma consciência de época — nos anos 80, eu era um sujeito de bem, humanista, contra a ditadura, a favor da liberdade; tinha todos os valores positivos e, no entanto, não conseguia lidar com o meu próprio filho. Quando começo o livro, inicio aquelas viagens biográficas para saber onde estava o meu defeito de origem, porque o defeito era meu, não era dele. Você não cai do nada. Cada gesto nosso carrega muitos fantasmas. Então, o romance vai pontuando este avanço na história do Felipe com a minha história pregressa. Ou seja, como fui me fazendo até chegar a ele. Esta é a alma do livro: é uma relação de pai e filho. Os demais dados externos são apenas pontuais ao que diz respeito a esta relação. O tema da família é poderoso. Do século 19 para cada, é um dos grandes temas da literatura. Em segundo lugar, pesaram dados biográficos. Eu perdi o pai com sete anos de idade. Ao longo dos anos, fui percebendo a extensão que este fato tem em minha vida. A ausência do pai é um tema recorrente no meu trabalho literário.
• Apreensão literária
Eu não usaria a palavra catarse para o livro. Catarse tem um toque meio irracional que não me agrada. É um livro que levei 26 anos para escrever e publicar. Então, é uma coisa muito racionalizada, muito pensada, de muito auto-envolvimento. Não sei que palavra colocaria no lugar. Acho que foi uma apreensão literária de longo prazo. A minha perspectiva era literária. Jamais escreveria sobre o tema sem a perspectiva literária, que é a minha maneira de ver o mundo — não jornalística ou simplesmente informativa. Na literatura, três livros me chamaram a atenção ou me deram algumas pistas: Uma questão pessoal, do Kenzaburo Oe, que teve um filho com problema; é um livro bem anos 60, que juntou aquela contracultura da época, e muito bem resolvido literariamente; outro é Nascer duas vezes, do italiano Giuseppe Pintiggia — uma sucessão de ensaios, um depoimento pessoal sobre o filho. Mas o livro que talvez tenha tido mais importância na questão estrutural do meu livro foi a leitura de Juventude, do J. M. Coetzee — é autobiográfico e ele escreve em terceira pessoa; é de uma crueldade brutal com ele mesmo; quando eu o li, eu disse “que coisa impressionante, como ele consegue esse distanciamento”. Estes livros foram referências de como enfrentar o tema do Felipe.
• Felipe e o livro
O Felipe tem muito pouca abstração, embora possua uma inteligência social bem aguçada. Ele sabe que O filho eterno é um livro sobre ele, sem saber exatamente como. Ele não pergunta sobre o livro, mas sabe que há um auê na casa em torno da obra. Ele tem consciência do livro como fato social na vida dele e que ele é o centro. Felipe me deu, talvez, o livro mais importante da minha vida.
• O guru
No fim dos anos 60 e 70, o mundo era povoado por gurus. Líderes semifamiliares; patriarcas que tinham aquela trupe de adeptos. Era um imaginário muito forte ter um líder. O W. Rio Apa, por exemplo, foi muito importante na minha vida. A relação de mestre e discípulo na arte é sempre terrível. Tem uma fase excelente, mas a qualquer momento o discípulo tem de alçar vôo sozinho. E aí acontece o rompimento. Entre os 16 e 23 anos de idade, houve uma fase muito intensa com o grupo de teatro do W. Rio Apa, onde eu trabalhava ativamente. Depois, casei, fui morar longe, etc. Sempre tive um respeito intelectual pelo Rio Apa, mas eu percebi que estava tomando um outro caminho, um outro rumo. A minha literatura foi se descolando daquele imaginário. A partir do Trapo [finalizado em 1982 e publicado em 1988], já é outra coisa. No entanto, o tema da relação entre discípulo e mestre vai se manter em vários livros. Costumo dizer que alguns de meus livros são mais emocionais, como Trapo, Juliano Pavollini e O filho eterno, outros são mais gelados, mais frios, como A suavidade do vento e Breve espaço entre cor e sombra.
• Ser marinheiro
Em relação às leituras, eu tenho alguns nomes-chaves: comecei por Monteiro Lobato, como milhões de brasileiros, depois fui para o Julio Verne, Conan Doyle. Ao comparar a geração de hoje com a minha e os tipos de preparação para o livro, para a leitura, concluo que todas as leituras da minha geração eram racionalizantes; hoje, os jovens lêem Senhor dos anéis, Harry Potter, que são introduções mágicas para o mundo. A razão está em baixa, foi para baixo do tapete. É uma diferença notável. Depois fui um leitor de Dostoiévski, descobri Conrad, que foi tão marcante que cheguei a pensar em ser marinheiro. Lord Jim foi um livro que me marcou, pois tinha uma série de temas que me interessava. É a história de um sujeito que ambiciona ser marinheiro, tem aquela noção da alta dignidade da profissão naval na Inglaterra. E logo na primeira viagem dele acontece um desastre. Ele devia ficar no navio com os passageiros, mas num momento-chave da vida, ele se joga num bote para se salvar juntamente com um capitão. E todos os oficiais se salvam. No entanto, os passageiros também não morrem. O navio se salva e a tripulação vai a julgamento pela maior vergonha que pode acontecer a um oficial de um navio inglês: abandonar a tripulação covardemente. Ele, muito jovem, fica marcado por aquele fracasso, e vai para a Oceania refazer a vida. Em determinado momento, transforma-se em uma espécie de líder dos aborígines e há outra situação parecida com a do navio inglês que ele tem de enfrentar. Não vou contar o final. Mas aquele livro me marcou tanto que eu estou aqui, 35 anos depois da leitura, contando-o em detalhes. Ali tinha tudo que me interessava em literatura: primeiro, era uma história bem contada, que sempre me atraiu e considero parte integrante da literatura, e isso nunca deve ser descartado; o segundo motivo é que o livro coloca questões morais, o tema dificilmente é discutido em outras instâncias que não sejam puramente moralistas, ensaísticas e, digamos, totalizantes. O Lord Jim enfrentou concretamente uma questão moral. Aquilo, então, marcou para mim como imagem de uma boa literatura. E, além disso, há a importância da linguagem do Conrad — que será um precursor do Faulkner —, que às vezes parece chata, custa um pouco o leitor entrar, mas ele tem uma espécie de lentidão que vai aprofundando na cabeça dos personagens. E os personagens trabalham temas universais. São urbanos nesse sentido. O que eu encontrava no Conrad era um modelo de boa literatura e, fazendo jus à época que eu vivia, de uma vida interessante, tanto que eu fui ser marinheiro. A idéia era entrar num navio, conhecer o mundo, viajar e escrever minhas obras-primas olhando aquele mar melancólico. Mas imagine o que era a Escola de Marinha Mercante no Rio de Janeiro, tocada pela Marinha de Guerra, em 1971, em pleno governo Médici, para um cara como eu, que vinha de uma comunidade de maconheiros, cabeludos, etc. Então, desembarco naquele mundo terrível. Parecia que eu estava sendo colocado em um navio de escravos, levantando cinco horas da manhã, tendo de correr, fazer exercícios físicos. Mas eu não lamento. Fiquei seis meses. Foi um bom treino. Não me arrependo. Senti que o mundo não era uma festa, que tinha uma autoridade muito pesada do outro lado e que se deve saber lidar com isso. O meu sonho de ser marinheiro foi se esboroando. Estava muito difícil. Eram três anos naquela escola. E com 17 anos de idade, três anos é uma eternidade; você quer tudo para a manhã seguinte. Se alguém me oferecesse uma carona num navio cargueiro, eu embarcaria.
• Outras leituras
Faulkner e a sua relação com a cidade e seus personagens passando de um livro ao outro me marcaram muito. Ele não tem medo da questão concreta da vida das pessoas, além das questões morais terríveis, como o puritanismo americano. Num outro momento, um livro marcante foi O estrangeiro, de Albert Camus. Entre os autores brasileiros, tinha duas paixões: Carlos Drummond de Andrade, de quem ainda sei poemas inteiros até hoje; e Graciliano Ramos e a sua linguagem, aquela secura; vi como é difícil a simplicidade na literatura. De tempos em tempos, você tem a felicidade de descobrir grandes autores. Recentemente, descobri o sul-africano J. M. Coetzee, que é um romancista fantástico.
• A presença de Curitiba
Curitiba é muito forte em meus livros. A cidade tem algumas peculiaridades: não tem carnaval, as pessoas gostam de filas, são mais reservadas, aqui temos 3 ou 4 amizades que duram 40 anos; é uma cidade mais densa, mais resistente. Aqui, você fica fora da vida literária. Há muitas vantagens de se viver em Curitiba. A cidade também te dá muitos desafios: se você não sair de Curitiba como escritor, você está morto, você não existe no mundo; é preciso ser editado no Rio e São Paulo. Somos uma espécie de gauleses, isolados, irredutíveis. Não há contato, troca permanente. Curitiba tem uma particularidade muito daqui mesmo e tem um certo fio que é comum no Dalton, um certo olhar crítico, corrosivo, uma certa impiedade na crítica, um certo sentimento de desamparo, uma certa idéia de solidão, a idéia de estranheza ao lugar em que está. A cidade é intimista e nos fecha para dentro de casa. Curitiba funciona muito com mitos para se esconder neles. Curitiba é uma invenção do Jaime Lerner que vai fazer 40 anos. Uma boa invenção. A cidade ganhou uma certa marca muito bem trabalhada como marketing, conhecida mundialmente. Uma vez, estava em Roma e um engenheiro italiano me disse: “que maravilha, você mora na terceira melhor cidade em qualidade de vida do mundo”. A cidade está oculta nessa marca. Quando cheguei a Curitiba, aos 7 anos de idade, a cidade não tinha nenhuma marca; era conhecida vagamente como “cidade universitária”. Tinha também uma coisa muito engraçada: era chamada de “cidade sorriso”. O slogan da cidade era esse. Já o curitibano é muito obediente. Eu me lembro de uma coisa divertida sobre o uso do cinto de segurança. Houve uma época que ninguém era obrigado a usá-lo. Curitiba foi uma das primeiras cidades a exigir o uso do cinto de segurança pelos motoristas. No dia seguinte à lei, metade da cidade o estava usando. Um mês depois em Porto Alegre, teve uma passeata em frente à Câmara Municipal para protestar contra aquele arbítrio que queria obrigar as pessoas a usar cinto de segurança. Era uma questão política. E no Rio de Janeiro, os camelôs estavam vendendo camiseta branca com o cinto desenhado. Então, são três maneiras de ver a questão. Se Curitiba baixa um decreto, você vai obedecer. Este é um traço da cidade. Você sai daqui e acha tudo bagunçado, quer voltar logo para Curitiba. Pegar um ônibus em Florianópolis, por exemplo, é uma tragédia. Aqui, é tudo organizado. Briguei muito com estes traços de Curitiba. Mas desisti. Hoje, sou um curitibano integrado. A cidade venceu.
• Literatura e internet
Considero um total equívoco dizer que a internet faz com que os jovens escrevam de forma errada. No Brasil, por exemplo, saímos de uma era da televisão, que era totalmente ágrafa (vendo televisão, você não vê uma palavra escrita, só ouve). Nos anos 70 aos 90, a televisão foi o grande agente civilizador do Brasil. E a televisão é a cultura da oralidade. O advento da internet foi uma explosão brutal no sentido contrário — qualquer página que você abre na internet está cheia de coisas escritas. Ou seja, a palavra escrita voltou para o palco. As pessoas estão voltando a escrever — chats, e-mails, blogs, etc. A escrita passou a ser o mediador de toda a comunicação, de todo o processo de informação. A palavra escrita voltou com toda força. É um absurdo encarar a internet como um problema. É como se fôssemos acabar com a internet, proibi-la. Isso não tem sentido. Temos de pensar o que há de positivo em todo este fenômeno. Na minha experiência ao corrigir redações do vestibular da UFPR, em mais de 20 mil textos, não se encontra sequer uma abreviatura utilizada na comunicação na internet. O aluno não é burro. Ele sabe perfeitamente a diferença entre escrever num chat e uma redação para a escola. Ele sabe distinguir os registros. Então, nesse aspecto, eu sou otimista. Acho que a internet está exigindo que as pessoas tenham de escrever cada vez melhor. Elas têm de praticar. A escrita voltou a ser um valor social. E quando isso acontece, todas as forças começam a trabalhar nessa direção. É claro que a internet mudou brutalmente outras relações: a própria circulação do livro, o espaço da literatura. Ainda não temos nem idéia de quais são os efeitos da internet. São muito poderosos. Por exemplo, fui um escritor de cartas a vida inteira, a carta educou muito o meu estilo de escritor; até tenho um romance [Uma noite em Curitiba] que é todo epistolar. Isso acabou. O e-mail é uma coisa meio intermediária: é um telefonema por escrito, meia dúzia de palavras. Uma carta, em certo sentido, é uma peça literária. Não é simplesmente copiar a oralidade direta; você tem de reformatar as informações e produzir um texto escrito, que é uma coisa diferente de oralidade escrita. O e-mail é mais automático, você não tem nenhuma responsabilidade com a permanência.
• Enciclopédia universal
A internet está mudando o perfil do mundo em todos os aspectos políticos, sociais, econômicos, etc. É uma realidade já constituída. E tem uma série de vantagens. Hoje, é difícil ter uma visão totalitária da informação. Não há mais centralizações totalitárias, militares — a não ser à custa de um esmagamento total da informação. Em Cuba e na China, há um controle, mas a informação está vazando por todos os lados. A internet é a enciclopédia universal. Qualquer coisa que você queira saber, basta digitar. Sabendo filtrar bem, você sabe tudo. Não há mais informação inacessível. Mas se não houver uma boa base cultural para filtrar as informações, é um lixo só.
• Facilidade de publicar
O Trapo, escrito em 1982, eu levei seis anos para publicar. Foi recusado por quatro ou cinco editoras. Aquilo andava para cima e para baixo, fora as editoras que jamais respondiam. Batia as cópias em papel carbono. Não era nem fotocópia, pois era muito caro. Era uma loucura. Nunca foi tão fácil publicar um livro como hoje em dia. Não dá mais para reclamar. Tem editoras para os mais variados gostos. E se quiser fazer uma edição caseira, você a faz com muita facilidade. A internet passou a ser um veículo de publicação nos mais diversos sites. Há uma multiplicação de canais para o tráfego do texto. O problema agora é ao contrário: como selecionar toda esta produção, falta um filtro. Então, mudou o perfil. As livrarias estão desaparecendo. Hoje, são quatro ou cinco grandes redes. A venda por internet está crescendo.
• No meio do furacão
A literatura é uma arte muito lenta para se consolidar. Quando falamos de um escritor, qualquer escritor, tem-se em mente um conjunto de obra estilisticamente unitário, com marcas recorrentes de uma visão de mundo que se traduz numa obra literária. E isso precisa tempo. Leva tempo para um escritor deixar uma marca. Quando se olha para a literatura brasileira dos anos 60, há certas referências marcantes, como Antonio Callado, Clarice Lispector, Guimarães Rosa — conjuntos de obras que se consolidaram numa visão de mundo, num estilo. Nós estamos numa fase turbulenta, difícil de localizar esse conjunto na nova geração. Não há um perfil marcante que possibilite dizer “está indo nesta direção ou naquela direção”. Estamos numa fase de transição. Estamos no meio de um furacão para saber o que vai se consolidar como visão de mundo, quais serão as linhas dominantes.
• A arte da resenha
Comecei a escrever resenhas para jornais por acaso. É uma forma de disciplina. Na primeira colaboração, levei um susto. Como professor universitário, estava acostumado com teses, coisas imensas, e de repente você tem de falar de um livro de 300 páginas em 4 mil toques — aquele texto de duas páginas. Então é uma disciplina interessante saber fazer este filtro de interpretação. Sou fundamentalmente um leitor e não um crítico no sentido tradicional. Hoje em dia, só comento livro que me agrada. Já fiz crítica negativa. Hoje, não tem sentido, porque não sou um profissional constante. Não tem sentido de tempos em tempos desembarcar no jornal e falar mal de um livro por acaso. Então, eu faço leituras críticas. Para mim o que pesa não é praticamente um cânone de avaliação; é a cabeça de um leitor. Toda a minha experiência como leitor me deu um certo critério de avaliação, um certo olhar, de observar aspectos de linguagem, de tema, de qualidade estrutural, de pegar um fio e apresentar ao leitor. Basicamente, uma boa crítica é isto: reconhecer numa obra um fio condutor, aquilo que é relevante e apontar ao leitor quais aspectos devem ser observados naquele livro. É uma primeira leitura. Como o José Castello diz em A literatura na poltrona, é um trabalho volátil; é difícil fazer esta intermediação. De certa forma, é um ato de criação. Espaços robustos para a crítica literária não existem mais na grande imprensa. Hoje, as resenhas são curtas, para que as pessoas leiam mais rapidamente. O tempo ficou muito apertado. No entanto, o Brasil hoje está bem servido de publicações literárias. Houve um período muito ruim entre os anos 80 e 90, quando não existia quase nada. Hoje, temos as revistas Cult e EntreLivros, o Rascunho, que tem quatro cadernos de textos, o que é uma raridade. E há também uma série de espaços alternativos. E também internet que faz circular muita informação literária.
• Vida literária
O Dalton Trevisan é o meu ídolo. Eu sempre que começo a ficar com vontade de encontrar muita gente, digo: “lembrai-vos de Dalton Trevisan”. A relação literária mais importante são as amizades profundas, aqueles amigos que conseguem dizer o que não está bom em sua produção. A vida literária — aquela coisa de festas, de grupos — são polarizações muito burras, muito limitadas. Mas tem uma coisa de temperamento. Eu nunca agiria como o Dalton Trevisan porque eu não tenho o temperamento dele. Eu gosto de falar com as pessoas, tomar cerveja, dar risada. Mas com a idade, você vai pegando uma certa intuição do que é legal e do que é uma roubada.
• Exercício para bem escrever
Acho fundamental o exercício de economia de palavra. Quem vai começar a escrever tem de ser capaz de redigir uma boa informação em 50 palavras, por exemplo. Isso é um domínio técnico, não quer dizer que é boa literatura. É só um exercício para sair do mundo da oralidade e organizar informações num todo, numa gramática que se diferencia da oralidade. Respeite o leitor. É um exercício fundamental. Eu gosto de escrever bastante, mas o exercício da economia é fundamental. A escrita não é uma atividade automática. Ela é uma recriação relativamente difícil; exige uma outra gramática, um outro tipo de apreensão dos fatos. Mesmo quando se escreve o coloquial, no fundo é uma oralidade falsa, construída; ela porta alguns sinais para o leitor perceber que é uma conversa falada, mas no fundo é toda lapidada para dar esta imagem. Você lê os diálogos do Dalton Trevisan e tem a impressão de que aquilo é a vida real. Mas não é. É uma impressão de oralidade que é feita numa tarefa de lapidar a frase.
• O melhor romancista do bairro
Eu não consigo nem ser o melhor escritor do meu bairro, pois moro a duas quadras da casa do Dalton Trevisan. Mas agora, estou ficando mais pretensioso e já me considero o melhor romancista do meu bairro. Achei um nicho de mercado para mim. A minha literatura tem um traço meio cinematográfico. Costumo dizer que só escrevo aquilo que eu vejo. Então, a minha obra tem um forte traço visual. Toda a literatura do século 20 tem uma brutal influência do cinema. É impossível que não tenha. Mas o cinema tem uma complicação muito grande nas adaptações de livros. O João Ubaldo Ribeiro disse em uma entrevista: “ao ter uma obra adaptada para o cinema, cobre bem caro e não vá assistir ao filme”.
• Jamil Snege
Jamil Snege foi muito importante na minha formação. Eu freqüentava a Boca Maldita [ponto de encontro no Centro de Curitiba] com os intelectuais da época (década de 70), que eram o Jamil, o Dalton Trevisan — quando ele ainda falava com as pessoas —, o Walmor Marcelino, e várias outras pessoas. O Jamil era muito respeitado como escritor, pois tinha escrito contos muito interessantes. Ele foi o mais curitibano dos escritores curitibanos. Era profundamente envolvido com a cultura da cidade, até por sua timidez. Ele nunca quis ser publicado fora da cidade. Às vezes, cria-se a idéia de que ele foi um injustiçado. Não. Gostava de ele mesmo fazer as próprias edições. Tinha uma relação artesanal com o livro. Todas as vezes que um livro dele saiu por alguma editora, eu o vi xingando, dizendo que não sabiam fazer direito, que a capa estava feia, etc. Ele queria fazer. Ele tinha uma relação pessoal: tirava 500 exemplares e ia na livraria e acompanhava a vida do livro. Acho que era ainda uma marca daquela literatura existencial — a literatura como ato de vida, longe da idéia de um objeto a ser comercializado. Ele reclamava muito disso: “depois que se entra no mercado, você vira uma marca de sabonete”. Jamil Snege sempre escreveu pouco. Nunca foi um escritor abundante. Ele conseguiu pegar um caminho dele, que se desviou do do Dalton Trevisan, que sempre foi uma influência muito poderosa. Dalton marcou a prosa de uma geração inteira. Aqui em Curitiba, Dalton era uma sombra imensa. Tempo sujo, do Jamil, é um livro marcante.