A poeta Cida Pedrosa encerrou em dezembro a 10ª temporada do Paiol Literário — projeto realizado pelo Rascunho, com patrocínio do Itaú, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura. Nesta edição, os setes encontros aconteceram online, com transmissão pelo YouTube, e todo conteúdo também está disponível no site do projeto (paiolliterario.com.br).
Cida nasceu em Bodocó (PE), em 1963. Em 2020, com Solo para vialejo, venceu o Prêmio Jabuti nas categorias Poesia e Livro do Ano. No mesmo ano, foi eleita vereadora do Recife (PE), onde mora, pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Gris (2018), Claranã (2015) e As filhas de Lilith (2009) são seus outros títulos publicados.
Realizado desde 2006, o Paiol Literário já recebeu 78 escritores. Julián Fuks, Marília Garcia, Paulo Scott, Veronica Stigger, Edyr Augusto, Patrícia Melo e Cida Pedrosa são os sete escritores e poetas que participaram da edição 2021 do projeto.
• Literatura é o caminho
Tenho um sentimento de que se as pessoas fossem alfabetizadas com poesia, elas poderiam ter acesso crítico a qualquer texto científico ou teórico. A literatura é o caminho para você conseguir subjetivar, entender para além do que está escrito nas linhas expressas. Para você ter novas formas de pensar. A literatura talvez seja o melhor caminho de formar cidadãos e cidadãs críticos e críticas. Você poder aferir conteúdo a partir do seu olhar, e não do olhar do outro. De conseguir atravessar para além do texto. A literatura — além de ser um momento de deleite, além de ser um processo de nos aproximar do humano, porque acho que literatura nos dá humanidade — tem esse papel importante de formar pensamento crítico e fazer a luta de ideias.
• Alfabetizar com poesia
Sou mãe de dois meninos. Eu lia para eles poesia infantil, historinhas infantis que usavam rimas, sons, aliterações. O som ajuda a compreender o texto quando se é pequeno. O som te aproxima da palavra e do objeto que ela significa. O som traz cheiro, textura. O som traz uma intersemiose linda, para que a gente consiga adentrar na leitura e gostar do texto. É isso que quero dizer com alfabetizar com poesia.
• Metodologia freiriana
Nós temos essa coisa do analfabetismo funcional, de pessoas que sabem escrever o nome, votam, até têm conta bancária, mas não conseguem interpretar texto. Coloco uma pitada que, para mim, é muito forte: como a gente alfabetiza as pessoas? É uma coisa freiriana. Você alfabetiza uma menina da comunidade com o que é próximo dela. O que é que está na comunidade próxima? É o brega, o funk, o rap. Se você traz para a leitura aquilo que é prazeroso, aquilo que está próximo dessa identidade, acredito que sempre funciona bem. À noite, no sítio onde nasci, tinha uma turma antigo Mobral. Era época da ditadura, eu tinha 7 para 8 anos, e minha irmã alfabetizava os trabalhadores e trabalhadoras. Lembro até hoje que eles usavam uma cartilha freiriana, com a palavra tijolo, semente, agricultura. Ou seja, com palavras que eram muito próximas das vidas dessas pessoas. Falei o exemplo da comunidade urbana, mas como é que chega no menino rural, do MST? Falando nisso, inclusive, nos acampamentos do MST o nível de analfabetismo é minúsculo, porque eles estudam, alfabetizam, trabalham a leitura. A gente tem que aproximar a leitura da realidade das pessoas.
• Expressões populares
Acredito, defendo e tenho provas da potência da poesia. Fiz e faço muita roda de leitura em comunidade. Essa história de que as pessoas não gostam de poesia não é verdade. Quando você oraliza, quando diz textos próximos da realidade, quando você sai do pedestal — por que é que um poeta popular, antes de dizer o seu verso, conta uma história? Igualzinho Bashô fazia. O haikai, inclusive, era a poesia popular oriental como é poesia popular nosso cordel e cantoria. O Bashô justificava seu haikai. Ele escrevia às vezes oito ou dez linhas para dizer o que significavam as três do poema. O que ele tinha observado, o que ele tinha sentido, do que se tratava. Só que aí chega num momento que a intelectualidade diz: “Poesia não se explica”. E não se explica mesmo, não. Mas você dialoga com ela para com as pessoas. O poeta popular, antes de dizer um poema, explica: “Vou dizer um poema. Mas eu estava em tal canto, me surgiu isso. Aconteceu isso”. É muito comum. Nunca começa já dizendo o poema. Ao fazer isso, contextualiza, e aquela pessoa simples que está ouvindo entra na narrativa. Quando a poesia chega, ela recebe com naturalidade. Acredito nisso. Claro que existem poemas mais acessíveis, outros não. Mas acho que, se você pegar o Viva vaia [de Augusto de Campos], contextualizar e ler em conjunto, fazer uma roda de oralização da poesia, você cria um outro contexto para isso.
• Gibis
Tive uma sorte danada. No colégio municipal onde estudei o ginásio, e também no grupo escolar, havia bibliotecas — uma mais miudinha e outra mais robusta. Tenho uma irmã amada, a Flor Pedrosa, que foi minha professora já no ensino médio. Ela foi estudar em Recife, uma das primeiras moças da minha cidade [Bodocó] a sair para estudar. Sem ser em colégio de freira. Estudava Letras, sempre amou literatura. Ela comprava caixas de livros e me mandava, então tive acesso a gibis quando ainda não eram vendidos em Bodocó. Aqueles manuais da Disney, das bruxas. Isso era maravilhoso, porque eu tinha contato com a literatura infantil para além do que estava na biblioteca.
“Fico sonhando com nossas escolas abarrotadas de escritores das mais diversas matizes.”
• Leitora voraz
Sempre fui uma leitura muito voraz. Mamãe dizia, quando eu tinha uns 10 anos: “Minha filha. Se eu conhecesse essa palavra psicólogo, tinha levado você. Achava que você ia endoidar”. Era porque eu lia muito. Nas férias, pegava 20 livros e lia. Se me perguntassem o que eu fazia, respondia: “Carrego rede nas costas”. Porque ficava deitada na rede lendo. O dia inteiro. Ler, para mim, é fundamental demais. Morro de medo de ficar cega.
• Diversão e mergulho
Sempre li por prazer, para me divertir, como gosto ainda — leio muitos quadrinhos até hoje. Meu companheiro coleciona, então aqui em casa parece um mar de quadrinhos. Quando lia gibi, era para me divertir. Gibi era a leitura da diversão. Os romances da menina moça, que só podia ler coisas bem água com açúcar, foi a entrada no drama. Nas brigas humanas. Nas angústias. E mais essa coisa de viajar, li muito Júlio Verne. Quase tudo. Viajar para além da Serra do Araripe, em Bodocó, sempre foi fantástico. Como você saber qual é o barulho do mar ou o cheiro do mar, saber o tamanho do mar, se você só viu uma fotografia? Quando li Mar morto, do Jorge Amado, entendi. Ele descrevia com tanta precisão a entrada do pescador no mar, como é que as ondas iam, que me senti lá pescando. Tem essa coisa de ir para mundos que não são os teus.
• Turma literária
Vim para Recife para estudar. Tinha uma loucura para vim para cá, porque achava que precisava ampliar meu mundo. Não era para ter chegado aos 14 anos. Vim para o casamento de uma irmã, de forma muito determinada (como sempre fui), enchi a mala de coisas e cheguei. “Mamãe, vou ficar.” Ela não queria. Terminei ficando, porque meu irmão disse: “Deixa essa maluca aí, que cuido dela”. Fiquei. Todas as pessoas que vinham da minha família tinham 17 ou 18 anos. Quando cheguei, dei de cara — na escola — com uma colegagem que escrevia e lia. Muito. O Raimundo de Moraes, Wilson Freire, Eduardo Martins, Cicero Belmar. Uma turma premiada hoje. Eu, que já escrevia coisas muito ruins, comecei a mostrar. Começamos a produzir textos juntos — um fazia uma frase, outro fazia outra. É uma coisa que sinto falta, a escrita coletiva. Na pandemia, algumas pessoas passaram a fazer isso na internet, até romances coletivos rolaram. Nós fazíamos isso lá, um poema a oito ou dez mãos. Como era bom isso de você ver o verso bom do outro e o seu ruim. Você compara, aprende.
• Leituras de juventude
Era uma oficina muito intuitiva que a gente tinha. Isso que se faz hoje de forma pensada, sistêmica, era muito intuitivo. Mas muito natural, também, por ter no mesmo espaço de tempo tanta gente que escrevia. Tinha uma professora, minha irmã, que nos adotava literariamente. Era maluco porque botava menino de 14 anos para ler O estrangeiro, do Camus. Muito doida, né? A gente é muito grato a ela por isso. Apresentava a gente a Augusto, Haroldo e Décio. Valendo mesmo. De sentar e “vamos lá, o quê que vocês entendem disso?”. E instigar. Você emburaca noutros mundos. Hoje em dia, um professor de literatura não apresenta o Poema sujo para um menino de 14 anos, apresenta? Só mais tarde, lá por 17, 18 anos. Ela mandou a gente ler com 14, 15 anos. Foi muito bom. Maravilhoso.
• Poesia concreta
Quando escrevo, sou muito todos os sentidos. Essa coisa de sinestesia. Essa coisa de som, imagem, cheiro. A gente acha que poesia concreta se distancia disso, mas muito pelo contrário. Aquela poesia imagética é para ser comida viva. Ou você ingere, entra nela de cabeça, ou não consegue nem sacar. Nem se sensibilizar.
• Estreia e decisão
Não tinha essa coisa de achar “vou ser uma poeta assim, assado” [na época que lançou o primeiro livro, Restos do fim, aos 19 anos]. Meu filho, Francisco, tem um plano. Escreve muito bem, o danado. Escreve um livro, põe no concurso, fica entre os 20, 10 colocados. Eu não tinha. Gostava de escrever, queria escrever, lancei meu livro. Dizia poesia na rua. Mas não tinha clareza de aonde ia chegar. Tanto que passei quatro anos para escrever o outro livrinho, O cavaleiro da epifania (1986), depois do qual disse: “Quero ser poeta”. Não sabia se ia conseguir, porque ouço muito, tenho muito senso crítico. Quando lanço coisa ruim, sei que estou lançando coisa ruim. Publico de safadeza.
• Evolução
Sempre fui crítica com minha poesia. Agora, o problema é que antes era crítica e tinha safadeza de publicar o que era ruim: “Ah, vou publicar”. Hoje, não publico se não tiver certeza. Publiquei Lilith, Claranã, Gris e Solo para vialejo para não me arrepender. Já os outros… Mas, d’O cavaleiro, assino todos os 27 poemas. Todos têm valor.
• Estilos diversos
Tenho uma mania muito péssima de dar guinadas de um livro para outro, fazer coisas diferentes. Não consigo ficar no mesmo jeito. Tenho necessidade de aprender com a palavra. O cavaleiro da epifania é um livro todo mais formal, meu primeiro tem uns poemas mais curtinhos. Bebia muito no experimentalismo, ali na poesia marginal da década de 1970, umas brincadeiras visuais. O segundo já tem algumas redondilhas maior, uma coisa — não digo “culta”, não, porque isso é muito babaca — mais formal mesmo. Fui me aprendendo. Fui me entendendo. Meu terceiro livro é muito ruim. Tem uma parte dos poemas curtos que é boa, mas tem uma melequeira ali, umas baboseiras, que não se publica. Fui aprendendo e tendo coragem de levar tapa na cara.
“O ruim de Drummond é o bom que um monte de gente amaria escrever.”
• Drummond
Estou relendo Drummond desde o primeiro livro. Tinha lido Alguma poesia muito jovem, com 16 anos, depois só li os poemas emblemáticos. Você relê aquilo que é emblema, não lê o lado B. Fica tendo contato com aquilo que a mídia coloca. Estou na Rosa do povo, o quarto. Como está sendo bom, aos 58 anos de idade, ler o livro que Drummond fez aos 27. Para você compreender que mesmo nele tem as curvas. Tem os ápices no livro e aquilo que não é tão bom. O ruim de Drummond é o bom que um monte de gente amaria escrever. E também tem o contexto da época: hoje, você escrever um poema daquele que Drummond escreveu é muito comum. Mas escrever em 1930, 35, 40, aquilo era o nota 10. Tem essa coisa do espírito do tempo. Quando o poema é bom, ultrapassa o espírito do tempo.
• Outras releituras
Tenho relido muito. E estou com intenções de reler umas coisas que, para mim, são importantes. Ano passado, no primeiro ano da pandemia, reli Adélia Prado do primeiro até o último livro. Um a um. Adoro. Está na minha mesa de cabeceira. Quero reler Augusto e Haroldo, tenho a antologia. No ano anterior, li tudinho que tem do Maiakóvski no Brasil. Tenho feito esses movimentos.
• Miles e Dylan
Da mesma forma, escuto muito rock da década de 1960 e 70. Escuto muito blues. O povo não entende por que eu não conhecia, não sabia quem era Marília Mendonça (1995-2021). Fiquei triste porque uma mãe de família morreu. Porque uma moça jovem morreu. Mas não conhecia nada dela. Não vejo TV. Só ligo TV para ver filme. Às vezes vejo um pouquinho de jornal, mas vejo mais na internet. Ouço as mesmas coisas, ouço blues. Ouço Miles Davis cem vezes no ano. Ouço Bob Dylan toda vez que entro no carro. Pode parecer chato para algumas pessoas, mas é o que me comove. E é o que gosto de fazer.
• Fulgor da juventude
Para além disso, quero dizer que recebo muito livro. Entro muito em contato com a poesia jovem, conheço muito o que se produz aqui, da juventude, porque adoro gente nova. Adoro esse fulgor, esse tesão, essa vontade. Isso me contagia. A inveja que tenho de ser professora é disso. Quando você está no meio da juventude, pô, a turma tá num tesão, sabe? Numa vontade. Isso me contagia. Isso não lhe deixa se sentir o velhinho da parada. O vovô do INSS. A vovó do INSS.
• Dois movimentos
Tenho esses dois movimentos. O de reler coisas que li no passado, muito jovem — quero voltar ao Ulysses. Preciso ler essas coisas de novo. E, ao mesmo tempo, fazer esse movimento com os jovens. Agora, leio muito mais poesia e conto do que prosa. Li tardiamente Torto arado, mês passado. Estou em estado de afeto com o livro.
• Oralidade
A poesia oral é muito importante para mim. Ouço muito cordelista cantar, as rezas, e isso desde pequena. Como isso é forte na minha formação. E como mantenho isso em Recife, quando chego aqui. Embora meu primeiro livro, do ponto de vista escrito, seja um afastamento completo dessa poesia na forma, meu exercício de cidadania literária se dá pela oralidade. Num movimento de escritores independentes, fazia rodas de saraus, recitava na rua o tempo inteiro. Aí, aprendi uma coisa: toda vez que escrevo um texto, leio para mim mesma. Leio muito pra mim. Se ele engasga, mudo a palavra. Se engancha, a palavra não está no lugar exato. Mudo. Porque mesmo um livro que a gente possa pensar que não é para ser dito em voz alta, ele é. Todo mundo diz que o velho bruxo Cabral não tem musicalidade, ele tem uma musicalidade incrível. Ele, igual ao Maiakóvski, que é outro poeta de musicalidade fenomenal — inclusive se parecem, porque fazem uma musicalidade intrínseca ao poema; não é aquela coisa de rima na última palavra do verso, é interno. Eles têm uma musicalidade interna no poema que se assemelham muito. Como dizer se o poeta é bom? Você lê e depois recita para si mesmo. Às vezes as pessoas pensam que estou doida. Quando lia nos ônibus, lia o poema e dali a pouco estava lendo em voz alta. Sempre entendo de várias formas — pelo olho, pela leitura. Minha relação com a poesia é muito sinestésica. A oralidade, para mim, é fundamental.
• Chegar ao povo
Amo demais o Ferreira Gullar, mas os cordéis dele são um horror. E foi quando ele escreveu para se aproximar do povo, no momento que estava fazendo exercício comunista. Não precisava disso. Podia chegar perto do povo lendo a poesia dele e fazendo a justificativa de Bashô. Fazendo a justificava dos poetas populares. Ele não precisava ter entrado, embora venha de um lugar [Maranhão] onde o cordel é forte. Tenho certeza que, de onde ele vem, deve ter ouvido cantoria, ficado próximo do poeta popular. Eu não queria fazer aquilo que Ferreira fez e que é ruim, o cordel dele. Tanto que, quando vou usar métrica no Claranã, uso meus conteúdos me distanciando dessa história do panfleto. Me inspiro nos grandes líricos da poesia popular. É tanto que faço glosas desses poetas. Do Louro do Pajeú, Otacílio Batista, Pinto do Monteiro. Pego versos dos papas da poesia popular e gloso. Inclusive para não deixar nem a possibilidade de eu enveredar para aquilo que, às vezes, as pessoas fazem no cordel. O cordel, para a educação, é ótimo. Como valor literário, é outra coisa. Porque você tem a poesia popular e tem a frágil. Não dá para misturar as duas coisas. Então, olhava o exemplo de Ferreira: “Não posso cair nesse conto do vigário”. Tenho que cair no conto do Poema sujo, que é o melhor do mundo.
• Cargo público e literatura
Não concilio [cargo público com literatura], me lasco todinha. Veja: fui secretária do meio ambiente e a gente deixou um legado lindíssimo nessa cidade. Um legado. A legislação de sustentabilidade do Recife é exemplo para o Brasil todo. Me matava de trabalhar. Por que o Solo para vialejo demorou cinco anos para sair? Porque eu produzia nas brechas do meu tempo, que são em feriados mais longos… Faz mais de anos que não tiro 30 dias de férias, esse ano vou tirar. Tiro 15, 10, e esses dias me dedico a quê? Escrever. Isso é muito injusto.
• Dedicação
Quando pego um cargo desse, dou o que não tenho de físico e emoção. É sempre assim, a vontade de fazer. Aprendi uma coisa: acredito que felicidade é um projeto coletivo. É de uma subjetividade enorme, não acredito em felicidade, mas como é diacho que tu vai ter harmonia se tu desse do teu prédio e há um monte de família morrendo de fome? Se você é sensível, bicho, isso é impossível. Para não endoidar e dar um tiro na cabeça, resolvi agir. O que me moveu para isso foi sobreviver. Quando faço alguma coisa, me sinto em movimento. Ao me sentir em movimento, me sinto instrumento de mudança. Ao me sentir instrumento de mudança, tenho fé, esperança, de que algum dia isso vai melhorar.
“A gente tem que aproximar a leitura da realidade das pessoas.”
• Aprender a conciliar
Tenho que conseguir pôr a literatura no meu dia a dia. Como todo mundo faz. “Vou escrever quarta de manhã e quinta de manhã.” Passei esse ano tentando, não consegui. Mas estou com fé. Faço terapia há 20 anos. Levei cacete na terapia. A terapeuta vai desistir de mim. Ou eu organizo isso, ou não terei mais terapeuta. Tenho que conseguir conciliar. Estou com três livros em aberto. Um deles, de contos, está há oito anos em aberto. Tenho que terminar esse negócio. Preciso aprender a conciliar, mas não é fácil. Tenho mania de perfeição.
• Utopias 1
É bem mais difícil ser humanista no Brasil hoje. Primeiro, acho que tem uma letargia. Estão nos faltando utopias. Como os jovens estão carentes de boas utopias! Utopia é algo que move — seja cultural, social, até de uma fé progressista. A utopia move montanhas. Sinto uma letargia. Muita gente deprimida. A depressão é uma doença do século 21. Tomo muito conta de mim por causa disso. Se você é sensível, é muito fácil cair em depressão em tempos tão complexos. Esse indivíduo já está triste, aí tem uma sociedade de consumo que lhe oprime pra caramba. Nós temos uma geração fragilíssima.
• Utopias 2
Tenho dois filhos. É uma geração fragilíssima, que foi jogada nesse centro absurdo do consumo. E que não tem como correr, porque está na escola, no parquinho do prédio. Você não consegue criar bicho-grilo, não tem como. Você cria dentro desse mundão que menina gosta de Barbie, que meninos querem carrinhos Hot Wheels. E querem fazer coleção. Isso é um mundo de angústias. Perdeu-se o lúdico, a beleza, a delicadeza, a natureza — e isso não é coisa de bicho-grilo, não. A natureza, o contemplar. A natureza nos deixa próximos de nós mesmos. Faz a gente interagir para dentro. E esse mundão faz perder a possibilidade de ficar só. Você está sempre rodeado de coisas. Isso te deixa triste, porque quando não se está rodeado de coisas faz o quê? Você nunca se viu. É complexo. Não é coisa de velhinha comunista. Estou muito preocupada com a meninada. Onde estão as utopias, para a gente poder se irmanar coletivamente? Fico preocupada com isso.
• Utopias 3
Estou com uma clareza cada vez mais forte: a literatura também pode ser ativismo. Acho que é possível chegar junto das pessoas através do texto escrito, da oralidade. Fico sonhando com nossas escolas abarrotadas de escritores das mais diversas matizes que pudessem se entregar a um processo de letramento real. A arte tem uma capacidade de transformação e de aglutinação enormes. A periferia é latente nisso. O rap, os slams. É impressionante. Os movimentos do hip-hop. Como isso é potente. Esta é minha utopia.
• Movimento de Cultura Popular
Tem uma coisa que aconteceu em Pernambuco chamada MCP e que teve alguns foguinhos no Brasil. O MCP foi um movimento de cultura popular, no governo Arraes, que envolveu Ariano Suassuna, Josué de Castro, Abelardo da Hora, um dos grandes escultores do Brasil, o Paulo Freire — que arengou porque a turma queria fazer uma cartilha. Ele saiu do MCP porque disse que o que ele queria fazer não cabia numa cartilha, depois fez uma cartilha. Como aquilo foi incrível. Como até hoje encontro gente que diz que se formou como artista no MCP, aprendeu a ler, formou-se politicamente. Fiz uma live há dois meses com a Silke Weber, uma das únicas do MCP que ainda está viva. Ela foi secretária de educação no segundo governo Arraes. Quando ela foi para o cargo, todo mundo achava que ela ia criar um novo MCP. Ela disse, na live: “Não existe um novo MCP, porque aquele era realidade daquela época. A gente tem que encontrar a nossa utopia de hoje”.
• Desmonte cultural
O desmonte da cultura e da educação começa no governo Temer, que botou o Mendonça Filho como ministro da Educação. Um homem que não é dessa área. Nem os governos de direita anteriores ousavam fazer isso. Você podia ter um foco até mais conservador, mas tinha pessoas do ramo, que entendiam disso. Que tinham um projeto, mesmo que não fosse um que você defendia. O problema é que não temos projeto nenhum hoje, a não ser o de desmonte da educação brasileira. Estamos vivendo um momento de desmonte de uma construção que tem 40 anos. A construção de uma educação democrática. A educação tem toda uma história autoritária, no Brasil e no mundo. Das crianças errarem na escola e ajoelharem no milho. Da palmatória. Isso não está muito distante. Há 40, 50 anos, lá para os lados de Bodocó, ainda davam palmatória nos meninos que eram indisciplinados na escola. Não estamos distantes da palmatória.
• Lei da mordaça
Estávamos num processo, com toda dificuldade que é construir um sistema de educação democrático, com formação de professores melhores. E aí, o quê que acontece? Primeiro, uma lei da mordaça. Os professores estão sujeitos a serem denunciados a qualquer instante, numa imparcialidade que não existe. Na verdade, isso é fascismo. Temos o desmonte de um Ministério da Cultura, que já é uma Secretaria de Cultura — com um secretário [Mário Frias] que, além de estar envolvido em todas as denúncias de corrupção, não sabe nada. Como é que você pode ter na Fundação Palmares um homem negro [Sérgio Camargo] que quis desmontar o acervo? O acervo mínimo da história da negritude desse país, que já é tão precária, uma história não contada. Já é uma história completamente não contada.
“Não temos projeto nenhum hoje, a não ser o de desmonte da educação brasileira.”
• Retrocesso
Bem triste isso. Nós andamos 40, 50 anos para trás. Estou muito aflita para derrubarmos o Bolsonaro, mas reconstruir o Brasil é uma questão de paciência. Está havendo um desmonte muito grande. Mais complexo do que derrotar o Bolsonaro é derrotar o bolsonarismo, porque 27% da população acredita nisso. Como fazer a luta de ideias no que diz respeito ao negacionismo, à falta de ciência, e a uma elite que acredita que pobre não pode comer camarão? Que acredita piamente que pobre não tem que andar no elevador principal nem no avião? É um país, estruturalmente racista, que permite que um negro seja arrastado numa moto por um policial. O racismo estrutural é tão grande que ele acha que pode reproduzir a cena que acontecia antes da abolição, que era amarrar um homem escravizado a um jumento e arrastá-lo. É a mesma coisa, no século 21.
• Ler e militar 1
Sou uma velha comunista. A gente está precisando da utopia, mas também é um momento de estudar muito. Isso faz parte da utopia. Tenho lido coisas que me agradam. O Jessé [Souza] aponta caminhos. O João [Cezar de Castro Rocha], no Guerra cultural e retórica do ódio, aponta caminhos. Minha mãe dizia: “Orar e vigiar”. Eu digo: “Ler e militar”. Se não é tua praia ir para a passeata, se engajar num movimento, mas tu é progressista, tu tem a capacidade de estudar. É um momento de refletir, de publicar. De entender o que está acontecendo. Apontar caminhos. Essa também é uma grande trincheira de luta.
• Ler e militar 2
A história intelectual do Brasil começa, de um ponto de vista de pensamento nacional, com Sérgio Buarque, Darcy [Ribeiro], Gilbero Freyre — tem que refazer a leitura deles, porque eles têm essa coisa do mito da democracia racial. A partir deles, começou-se a pensar uma cultura. Uma identidade nacional. Acho que para a juventude que não quer, não pode, não é a dela ir para a militância, a militância passa a ser se dedicar a estudar, entender, publicar, debater. Nossa moçada tem que ler Sérgio Buarque [de Holanda] de novo. Tem que pegar alguns dos nossos teóricos. E ler alguns novos, que estão — no meu entender — complementando e descolonizando algumas coisas. Tem que ler Jessé Souza, tem que ler A ralé do Brasil. A gente está precisando tentar entender isso tudo que está acontecendo, para tentar encontrar caminhos.
• Comunista de sacristia
O Paulo Freire é respeitado até lá em Tio Sam. Tem escolas nos Estados Unidos que utilizam o método Paulo Freire. Ele é doutor honoris causa, inclusive, em algumas universidades de lá. Como é que diacho você tem uma tentativa de negar esse legado? Isso é muito complicado, porque está ligado ao fundamentalismo religioso. Os negacionistas e fascistas se juntam aqui, em terras brasileiras, como a turma do conservadorismo e do fundamentalismo religioso. A gente tem que passar a entender. Vou muito à periferia. Quando você vai na periferia, tem uma igreja evangélica, uma pentecostal, em todo canto. Às vezes, cinco ou seis. Aquela mãe que está com um filho usando drogas, que está desempregada, chega lá e consegue cesta básica, recebe iluminação de vila. A igreja católica, os ateus praticantes, têm que ir para a luta de ideias nesses espaços. Quando falo da igreja católica, me refiro à progressista — que foi desmontada pelo Papa João Paulo II. Todo mundo achou lindo. Ele foi o desmontador da teoria da libertação e o povo mistifica essa criatura, um homem de direita que desmontou toda uma construção na América Latina. Aí é que tá, ele era midiático. Viajava. Falava não sei quantas línguas. A partir dele que começou a surgir esses padres cantores que juntam multidões. Não estou falando disso, não. Vá juntar multidões pra cantar, tudo certo. Estou dizendo do meu lugar, tenho formação católica grande. Digo que sou comunista de sacristia, porque minha formação vem daí.
• Brasileiro cordial
Esse mito do brasileiro cordial já está desmistificado há muito tempo. Do ponto de vista intelectual. Mas, do ponto de vista do senso comum, não: “Nós não somos racistas. Aqui, negro casa com branca”. Como se isso bastasse para não se ter um país racista. Na verdade, a própria formação do Brasil se confunde com a formação do capitalismo, do patriarcado. Tudo ao mesmo tempo. Não tem como discutir a questão de raça e a questão de gênero, no Brasil ou no mundo, sem ser dentro de uma teoria de interseccionalidade. Classe, raça e gênero são coisas ligadas. Quando você vai para os percentuais, quem é que está passando fome? Tem branco? Tem. Mas 75% são pessoas negras. Esse apartheid é real. Quando você estratifica isso, percebe quem está embaixo da pirâmide. A gente meio que botou debaixo do tapete, para ter convivência, o tiozão bolsonarista. “Ah, ele é tiozão.” Não é isso, não. Ele pensa isso. Pensa assim. É machista. Misógino. Racista. Se você me perguntasse “tu acha isso bom ou ruim?”, diria que acho que é melhor lutar com o inimigo às claras.
• Acordar para Jesus
A turma da literatura está acordando para Jesus. É o seguinte. Eu e três mulheres amadas tínhamos um grupo de recitação feminista. A gente só recitava mulheres, isso tem uns 15 anos. Não canso das vezes que ouvi poetas famosas do nosso círculo dizendo que nunca sofreram machismo. Como não, minha filha? Como sou feminista desde criancinha, sei que sofreu. Só que a pessoa não se apercebia. Há 12 anos nós fizemos uma mostra contemporânea de literatura de mulheres, eu como curadora do Sesc. Tu não tem ideia do fiasco que foi. A imprensa não quis dar espaço, pouca gente foi. As pessoas que a gente convidava diziam: “Não acho que tem que ter essa segregação, não”. Não é segregação. Na verdade, você quer fazer um recorte. Aí, depois do Mulherio das Letras, depois de algumas mulheres se posicionarem publicamente, o pessoal se tocou que as mulheres têm que discutir, do ponto de vista sociológico, sua participação na literatura. Mais e mais escritores têm ido a público se contrapor ao fascismo, etc. Quando digo que acordaram para Jesus é porque a turma estava enxergando política como lugar menor, como “não vou me misturar com isso”. Política é o lugar onde se dá a decisão da vida das pessoas. E a literatura e a arte não podem estar apartadas disso.
• Luta de ideias
Essa história de “sou apolítico” me dá agonia, desespero. Homem, se tu é um escritor de direita, tu vai lá e diz que é um escritor de direita, um escritor conservador. A gente tem dificuldade de pensar Nelson Rodrigues como um homem conservador, não tem? Ele era. E assumia isso. Se você é um escritor conservador, vai lá e assume. E vamos fazer a luta de ideias. Mas, por exemplo, quando a gente tem o Itamar Vieira Junior como o cara mais badalado da literatura hoje no Brasil, isso é lindo. E isso é um recado. O livro Torto arado já nasceu clássico. É um grande recado. Um escritor preto escreve aquela obra, com aquela potência, é a prova de que tem lugar para essa literatura no Brasil. E para essas discussões. É impossível ele ir num lugar e não falar sobre isso. Ele está falando sobre o quê? Política. Raízes do Brasil.
• Literatura é política
Para mim, sempre. Mesmo aquela obra experimental, que não quer se alinhar a nenhum pensamento de nada. Uma obra experimental, o conteúdo para dentro de si, de si para dentro do conteúdo. Isso é um ato político, porque é uma escolha. Quando leio os irmãos Campos, aquilo é política pura. De conteúdo, inclusive, porque eles eram muito bons de conteúdo político, embora neguem.
• Vozes de Pernambuco
Vou falar da minha aldeia para o Brasil. Sou muito animada com a literatura brasileira. Vou pegar exemplos de prosa e poesia, aqui do meu estado. Quando você pega Sidney Rocha, Raimundo Carrero, Ronaldo Correia de Brito e Mário Rodrigues. A prosa desses quatro é de uma potência. E eles são nossos contemporâneos. São estilos diversos, né? Bem diversos, os quatro. Potentíssimos. Agora, pegando a poesia da minha aldeia. A nossa Jussara Salazar, ela tem uma poesia muito feminista, todos os livros de Jussara têm uma linha específica. Ela parte de pesquisas, parte de reflexões específicas. Tem uma poesia que não é de fácil entendimento, mais hermética. Adoro. Tem gente que não gosta. Você pega a Micheliny Verunschk — estou pegando pessoas da minha aldeia que nem estão morando aqui, mas são do lado de cá. Pega a Luna Vitrolira, uma explosão. E aí pega uma jovenzinha, que precisa ser pesquisada: a rapper Bione, de 18 anos. A potência, do ponto de vista da oralidade do rap, é uma coisa assim de uma explosão. São pessoas bem diversas. Pega a Bell Puã, que ficou finalista comigo no Jabuti. Tenho muita fé nessa literatura. Até porque existe uma vontade de escrever sem amarras dos jovens. Eles estão tentando inventar coisas novas.