Carlos de Brito e Mello

“Não demos conta de produzir uma educação questionadora da nossa própria capacidade de ser/estar uns com os outros.”
Carlos de Brito e Mello. Fotos: Guilherme Pupo
24/12/2018

O escritor Carlos de Brito e Mello foi o penúltimo convidado da temporada 2018 do Paiol Literário — projeto do Rascunho, com patrocínio da Caixa Econômica Federal e apoio da Fundação Cultural de Curitiba e do hotel Centro Europeu. O bate-papo aconteceu em 6 de novembro, no Teatro do Paiol, em Curitiba (PR), com mediação do escritor e jornalista Rogério Pereira.

Mineiro de Belo Horizonte, Carlos de Brito e Mello nasceu em 1974 e aos 10 anos, durante as férias de julho da escola, escreveu seu primeiro livro. “Essa experiência de escrever um livro, nesse momento, foi fundante. Foi determinante de um destino. Nessa hora, decidi que seria escritor”, diz o autor dos contos de O cadáver ri dos seus despojos (2007) e dos romances A passagem tensa dos corpos (2009) e A cidade, o inquisidor e os ordinários (2013).

Hoje, aos 44 anos, Brito e Mello afirma a importância da literatura como algo capaz de contornar o comodismo mental e abalar a modorra do cotidiano. Na entrevista a seguir, ele fala da relevância das palavras, do papel da escola como instância de invenção e, entre outros assuntos, discute a falta de leitores no Brasil.

• Instância de partilha
Embora a literatura se realize com muita frequência em instâncias solitárias — seja a do escritor, seja a do leitor, e é importante que exista essa dimensão de uma solidão fundamental para que essa experiência se realize —, existe uma outra dimensão que nos reúne. É a possibilidade de se reconhecer numa dimensão comum instaurada pelo texto, pela obra. Instaurada pela ficção. Porque existe um desejo, e muitas vezes a gente não tem nem muita clareza de que desejo seja esse, que faz com que, dentre as diversas coisas que poderíamos fazer durante um dia, durante um mês, durante um ano, durante a vida, a gente escolha ler. Ler um livro. E que isso possa ser algo, em alguma medida, reunido num espaço comum e num tempo comum. Que a literatura possa ser uma força capaz de estabelecer um tempo e espaço comuns, em que essas experiências singulares, íntimas, solitárias, fundamentalmente solitárias, possam se dirigir a esse lugar de uma certa partilha. O que não significa, absolutamente, a instauração ou definição de um sentido único que deverá, a partir de então, guiar o que foram as experiências singulares. Pelo contrário, elas inclusive se tornam mais importantes, mais significativas na medida em que se dirigem a essa instância de partilha.

• Fissura na realidade
Outra força da literatura que a torna importante, nessa dinâmica social, é a possibilidade de, seja como escrita ou leitura, promover uma interrupção da realidade. De promover uma fissura na realidade. Numa realidade que a gente comumente entende ou experimenta como algo uno. Como algo que vai se sucedendo um dia após o outro, um encontro após o outro, uma troca após a outra, um compromisso após o outro, uma sucessão de demandas que todos têm — de trabalho, familiares, financeiras, as mais variadas, com as quais a gente tem que se haver. Outras experiências também têm essa capacidade, mas a literatura pode produzir uma interrupção da realidade. Um certo estado de suspensão em que as significações correntes, os consensos pouco questionados, o senso comum, tudo isso é suspenso. E alguma coisa dessa realidade é colocada em questão pela experiência, de modo que um retorno a essa realidade não pode mais ser inocente ou desavisado. Alguma coisa aconteceu que produziu então uma certa irrupção de sentidos outros, significações outras, ou de dúvidas, que fazem com que esses consensos possam ser eventualmente questionados. Que essas significações mais corriqueiras, com as quais nós nos acostumamos, possam ser confrontadas. Se a literatura é capaz de fazer isso, já está fazendo muita coisa.

• Para além do banal
Embora a gente leia no ônibus, na hora de dormir, ao acordar, em horas furtivas, não conseguimos parar o mundo para ler. Mas a leitura, num certo sentido, produz um recuo dessa realidade. Não digo no sentido de que a gente está fora da realidade, como se tivesse um espaço e tempo absolutamente outros, para não criar essa dicotomia — o mundo da fantasia e o mundo em que as coisas de fato são como são. Acho que, inclusive, a realidade pode ser confrontada com uma experiência da literatura, em que aí é que as coisas são como são na sua dureza, na sua crueza. Em que a gente pode ter uma experiência de ser/estar que não se confunda com uma certa banalidade dos nossos compromissos, protocolos, obrigações. Ou de uma certa nomeação que nos antecede — quem eu sou? De onde eu vim? O que eu faço? Literatura tem a possibilidade de recolocar essas questões de uma maneira muito mais aguda. E, ao fazer isso, produz esse recuo. Não se lê e não se escreve como se faz qualquer coisa. “Sou escritor, como eu poderia ser qualquer outra coisa.” Não acho que seja tão simples assim. O que não significa, também, que a gente vá elevar esse lugar da escrita a algo inatingível. Não se trata disso. De novo, não é uma dicotomia. Mas não é também uma coisa que se faria como outra qualquer. Não é outra coisa qualquer. Justamente porque desse recuo a gente volta de maneira mais incomodada. Mais irritada. Mais perturbada. Aí há uma interferência nesse lugar-comum. Nesse lugar de onde se partiu.

• Literatura no Brasil
Eu teria muita dificuldade para pensar uma resposta que desse conta do tamanho dessa encrenca [por que a literatura encanta tão poucas pessoas no Brasil?]. A experiência literária, não é única, mas a gente está tratando dela aqui, é trabalhosa. É difícil, morosa. É uma experiência com alto grau de indeterminação. Sem promessas. Sem garantias — nem de prazer, nem de contentamento. A gente não lê necessariamente para sair do texto apaziguado, satisfeito, como eventualmente saímos satisfeitos do supermercado ou de ter comido alguma coisa gostosa. É preciso lidar com algo que a gente não está necessariamente acostumado. Claro que a literatura é extremamente prazerosa. Também para não criar essa ideia de que é preciso escalar um rochedo, que é uma coisa impenetrável, que é sofrida. É sofrida, também, mas tem alguma coisa ali que é muito importante. Que é decisiva. Mas, para isso, é preciso alguma entrega a essa experiência. Tem uma certa experiência de passagem, em que a gente vai circular ou se aproximar dessas zonas nas quais o sentido escapa. Que as significações ficam mais rarefeitas. Há uma dificuldade própria, um desafio próprio, um trabalho próprio que diz respeito à literatura. Agora, para além disso, me parece que o fato de a gente ler tão pouco é mais uma das coisas que, nós brasileiros, não demos conta de fazer. Claro que estou falando de maneira genérica e, com isso, as especificidades acabam um pouco atenuadas. Não demos conta de produzir uma educação questionadora da nossa própria capacidade de ser/estar uns com os outros. O que foi esse mal-cuidar de algumas questões fundamentais brasileiras que resultaram em maneiras tão estreitas, tão violentas de viver? Seja a vida que cada um vive ou a vida em comum. A literatura é uma dessas coisas que paga o preço altíssimo de uma falta de compromisso com um projeto de país, que a gente descobre que não tinha. Ou, quando a gente descobre que tinha, é o mesmo da colonização. No final das contas, era o mesmo projeto desde sempre.

• Projeto de aniquilamento
Venho de um estado [Minas Gerais] em que parte da campanha relacionada à cultura do governador que foi eleito diz assim, mais ou menos deste jeito: “A cultura é um fenômeno espontâneo das sociedades, que naturalmente se desenvolvem e se alimentam das trocas sociais…”. Tem todo um blábláblá para, no final, dizer assim: “Razão pelo qual não vamos fazer nenhum investimento em cultura”. Isso é um projeto. E ganhou. É um projeto de aniquilamento. Me parece que a literatura faz um apelo àquilo que se opõe ao aniquilamento. Ou que deveria pelo menos colocar isso em questão. Não é que a literatura seja uma coisa boa para combater o mal, mas ela coloca isso em choque. Leva isso a uma certa instância de questionamento, de debate. Coloca em crise. E a crise, nessas instâncias, é importante para a gente pensar alternativas e possibilidades. Abrir certos campos do possível. Certas zonas de possibilidade e de respeito, em que eu possa pensar: “Será que quero ser do jeito que sou? Será que quero esse modo de viver que é meu, ou que é da minha comunidade, do meu estado, do meu país? É um modo de viver que abre ou que fecha? Ele contempla, aponta, ou segrega, aniquila?”.

• Impotência da palavra
Dentre outras coisas que a atualidade mais recente me traz, me parece que a palavra passou a não valer quase nada, ou nada. Num seriado chamado O bem-amado tinha o Odorico Paraguaçu, um político com conversa afiada, promessas. Quando tocava o telefone, ele vestia o paletó para atender. Tinham as promessas. Um clichê imenso do político. Quando você tem essa figura que mente, que diz uma coisa e faz outra, ou que faz um certo jogo de aparências, curiosamente você ainda tem confiança na palavra, no sentido de que a palavra pode ser algo que eu use para trapacear, para mentir. Hoje não tem nem isso. Não é preciso mentir, dizer uma coisa para parecer outra. A coisa não precisa nem ser dita, ela é atuada. É exposta. Obscena. Não tem mais uma cena que eventualmente possa ter um “por trás dos bastidores”, que eu possa imaginar o que se está passando nos bastidores. Agora temos uma situação que é obscena, escancarada. Aí a palavra não tem mais importância. Se disse ou não disse, não tem mais significação.

• Potência da palavra
Levando em conta que a palavra é a matéria com a qual a literatura trabalha, me parece que hoje ela tem sim um compromisso [social], porque tem que fazer uma certa salvaguarda da linguagem, no sentido de que a linguagem importa. A linguagem tem valor. A linguagem conta. As coisas não podem simplesmente ser ditas, ou deixar de ser ditas, e tanto faz. As palavras têm consequências e presença. As palavras se impõem. A literatura talvez seja a principal arte que reivindica essa palavra para dizer “a linguagem conta, a linguagem importa”. E inclusive na sua materialidade. Vamos lembrar que os livros eram queimados em outros momentos, então há uma materialidade da palavra que já foi combatida, cancelada. Isso mostra que tem importância.

“Não é que a literatura seja uma coisa boa para combater o mal, mas ela coloca isso em choque.”

• Comodismo mental
É algo que tenho achado profundamente dramático. Em algumas conversas, às vezes, é como se você estivesse alucinando. Você está escutando a pessoa falar coisas que são escancaradamente contraditórias, e isso é encadeado num sentido único, como se aquilo fosse coerente. Como se aquilo tivesse consistência dentro do próprio discurso e ao que o discurso se refere. Só que não tem nenhuma. A pessoa não está escutando o que fala. A experiência da literatura demanda, se é que não exige, um certo silêncio. Tem que parar para prestar atenção em alguma coisa, produzir uma escuta. Tem que ter uma certa sujeição, uma experiência da palavra. Essa palavra vai operar, naquele que a experimenta, de alguma forma. O que é dramático é isso. Tenho escutado pessoas falando algumas coisas e é como se aquilo estivesse assentado numa coerência interna, com relação aos referentes, mas é completamente esvaziado. A pessoa está assentada naquilo e está tudo bem. Não tem drama. Não tem susto. Não tem horror. Não tem dúvida.

• Tornando-se leitor
Minha casa sempre teve livros. A leitura era uma coisa muito enraizada no cotidiano. As pessoas liam. Tinha o momento da leitura, os livros eram trocados. Se havia um livro que alguém gostava, esse livro circulava pela família. As pessoas conversavam sobre os livros. Em algum momento pensei que devia haver alguma coisa muito interessante nisso aí que eles trocam, conversam, passam tempo. Antes mesmo de ser alfabetizado, as pessoas liam para mim. Minha vó lia para mim, minha mãe lia para mim. Eram as principais leitoras. Era um ler para mim, mas também um ler comigo. Isso talvez tenha sido muito importante. Era um ler comigo, de uma maneira que eu me sentia muito engajado afetivamente naquele momento. Minha avó paterna morava numa cidade do interior, de onde meus pais vieram, chamada Visconde do Rio Branco, e ela vinha periodicamente para Belo Horizonte, na ocasião dos aniversários, ou numa dessas festas em que a família se reúne. Eram aqueles aniversários que a família mesmo organizava — os doces, o bolo. Minha avó era doceira, fazia bolos maravilhosos. Ela vinha um mês, um mês e meio antes. Tinha um livro de capa vermelho, já surrado, com as histórias da Chapeuzinho vermelho, Os três porquinhos. Eram as mesmas histórias, mas era o livro da minha vó, que ela lia para mim à noite no quarto em que ficava. Eu deitava com ela — era grande, gorda, macia, tinha um cheiro adorável. Um cheiro inesquecível, cheiro de vó. Cheiro de acolhimento. Lembro do barulhinho da boca pronunciando as palavras. Lembro do cheiro de café. Ela gostava muito de café. Cheiro do hálito de café. Essas marcas foram impregnando ao longo do tempo. Fui virando leitor desde aí.

• Na escola
Tinha uma preocupação com a literatura. A gente fazia uns exercícios de composição de histórias em que a sala inteira participava, opinava. A história era depois desenhada, ganhava desdobramentos. Depois, quando saí dessa escola, fui para um colégio mais tradicional que também tinha cuidado com a literatura. Tive uma professora de português, não era nem uma professora que eu tinha extrema simpatia, mas ela me ganhou imensamente quando propôs como dever das férias de julho que cada aluno escrevesse um livro. Isso foi francamente odiado pela maioria dos meus colegas. Foram as férias mais incríveis, as melhores férias de todas que já tive. Além das férias, que já eram ótimas, teve a escrita de um livro. Essa experiência de escrever um livro, nesse momento, foi fundante. Foi determinante de um destino. Nessa hora, decidi que seria escritor. Devia ter 10 anos, por aí. Escrevi a história, meu pai datilografou. Tinha que fazer a edição, então teve um trabalho artesanal. Inventar o nome de uma editora. Minha editora se chamava Cervantes. A coisa ficou séria. Muito boa de fazer. Muito marcante.

• Lugar de invenção
A escola é fundamental. Fico vendo pelas minhas filhas. Minha filha mais nova nasceu em abril deste ano, então ainda não está lá. Mas minha filha mais velha vai fazer 4 anos agora, está na escola desde os 2 anos. Vejo, com ela, a escola funcionando como esse lugar da invenção. Esse lugar de inventar história. Primeiro, aprender que existem histórias. Que histórias podem ser narradas. Podem ser musicadas, desenhadas, encenadas. Lá, elas ganham esses diversos desdobramentos. Entra um elemento aí, para além desse exercício comum de você aprender a conviver num momento chave. A escola pode ser esse lugar potente, o lugar do encontro. O lugar de uma sociabilidade e partilha nascentes. E você aprender que pode inventar uma coisa. Isso é genial. É importante que a gente se dê conta de que é possível inventar a maneira como vivemos, nessa intersecção das palavras com as pessoas. Talvez em outros momentos eu pudesse até dissociar um pouco mais as palavras das pessoas. Atualmente, acho que essas instâncias são muito fundantes uma da outra. Saber e descobrir que você pode inventar alguma coisa. E que a brincadeira, inclusive, é uma forma de você ficcionalizar. A criança ficcionaliza desde pequena. Eventualmente, para-se de fazer isso, e é uma pena. Talvez essa dimensão da invenção devesse ser frequentemente estimulada em todo o processo educacional. Sei que tem uma hora que devemos formalizar o que aprendemos, mas é como se, em algum momento, a invenção fosse uma coisa supérflua. Fosse um falseamento. Fosse um faz de conta um pouco ingênuo e bobinho que, comparado à realidade, se perde. Não. Acho que não. Aí, de novo, a experiência literária te traz isso e a escola também pode te trazer. Mesmo que ela não traga um ensino, um saber sobre a literatura, que a literatura seja incorporada como um modo, um jeito, uma maneira de você saber sobre si e sobre o mundo.

 

Curitiba, Parana, Brasil, 02 de outubro de 2018. Legenda: O escritor Carlos de Brito e Mello no Paiol Literário. Foto: Guilherme Pupo

“É bem pessoal, mas acho muito difícil a pessoa ser conquistada pela literatura se ela vai de cara num José de Alencar.”

• Despertar
Esse momento de [escrever um livro aos] 10 anos de idade é de clarividência, mas não de entendimento. Isso foi virar um projeto literário de fato muito depois, tardiamente até. Escrevi muito, antes de publicar o livro de contos [O cadáver ri dos seus despojos (2007)]. Nesse primeiro momento, foi incrível o prazer da invenção. Esse primeiro momento de infância. Alguma coisa se mostrou incrivelmente interessante de se fazer, que era inventar uma história — escrever, passar um tempo imaginando aquela narrativa, redigir aquilo e aquilo virar um livro. Foi incrível. Muito tempo se passou com isso bastante adormecido. Fiz faculdade de Jornalismo porque gostava de escrever, embora seja um discurso de outra natureza. Na faculdade reapareceu esse desejo de maneira um pouco mais clara.

• Estreia literária
Eu e um amigo, o escritor e poeta Rafael Romanizio, criamos um jornal, um manifesto, um fanzine chamado Súcia. Publicávamos nossos textos, textos de amigos que gostavam de literatura. Aí começa um momento. A literatura é muito o terreno da experimentação, sem compromisso estabelecido até com projeto e publicação. Escrevi os contos de O cadáver ri dos seus despojos ao longo de uns 8, 10 anos. Claro que eu já tinha mais claro que gostaria de publicar, mas aquilo não era ainda um livro. Eram contos dispersos, sobretudo escritos ao longo de um tempo grande. Não têm exatamente uma linearidade, um encadeamento em termos estilísticos. Têm saltos de um conto para o outro. Era um momento de experimentação forte. A gente se reunia com periodicidade para trocar alguns textos, trocar algumas leituras, falar sobre literatura. Em algum momento, achei que tinha contos suficientes para um livro. Comecei a reler, reescrever os contos. Selecionei alguns. Em 1998, se não me engano, tinha ganhado um prêmio com um conto chamado A cunhada. Era um prêmio da Rádio França Internacional, que achei que foi importante. Você manda um sinal para um lugar, sem saber direito que lugar é esse, e em algum momento respondem àquele sinal. Esse prêmio teve um pouco essa força. Quando vi que tinha um livro, trabalhei para ele.

• Outros rumos
Publiquei O cadáver ri dos seus despojos no ano em que comecei a fazer formação psicanalítica. Fez parte da mesma decisão. Eu fazia aula de desenho, de pintura, num determinado ateliê. O Marcelino Peixoto, que ministrava as aulas, orientava e conduzia os processos, me chamou para montar um ateliê com outra artista, a Margarida Campos. Esse ateliê também surgiu no mesmo ano. Me parece que não é à toa que isso aconteceu numa determinada época. Aconteceu numa época em que eu estava um pouco cansado de determinadas experiências profissionais e ligadas a outros campos, outros tipos de discurso. Havia um certo tipo de esgotamento dessas experiências. Me parece que a literatura, as artes plásticas e a psicanálise coincidiram nesse lugar. São três instâncias que provocam essa suspensão da realidade, essa interrupção da realidade. Alguma coisa ali se abre. Uma certa fissura se apresenta de maneira incontornável. A seu modo, tanto a psicanálise quanto as artes plásticas e a literatura podem cuidar dessa fissura, dessa interrupção, inclusive alastrando essa interrupção para outras dimensões da realidade.

• Morte como tema
N’O cadáver ri dos seus despojos, a morte aparece sob diversas figurações — o desaparecimento, a loucura, a perdição, a própria morte se evidencia em alguns momentos. Mas isso não era o ponto de partida. O título veio num conto, talvez o último. Não tinha sido um ponto de partida, mas me dei conta que a morte era uma questão ao final desse livro. Quando comecei o seguinte, assumi a morte como ponto de partida.

• Encarnação das palavras
Defendi meu doutorado em junho. Pesquisei por quatro anos a obra do Arthur Bispo do Rosário. Nem entrei exatamente com essa definição de que pesquisaria a obra do Bispo, mas, quando o Bispo tomou a cena, foi uma experiência de possessão. Já não tinha mais como acordar e dormir sem que ele não estivesse pairando, impregnando aquilo que eu pensava ao longo do dia. Para o Bispo, a palavra se apresentou como a própria maneira de ele figurar a si mesmo como o filho do homem, como ele se dizia. Ele se anunciava como o filho do homem que fez sua passagem pela Terra e que, no Juízo Final, conduzia essas pessoas para a salvação. A experiência de leitor do Bispo foi tão radical para mim que — é claro que não é sempre que isso vai acontecer — minha escolha do que ler passa muito por esse gesto decisivo dele. É preciso escolher e se colocar diante de uma palavra que tenha essa força de instauração de ser. Desse ser que é figurado na palavra que ele mesmo tece. Na materialidade da palavra. As minhas escolhas têm passado muito por aí, inclusive por esses textos que conseguem produzir quase uma encarnação para essas palavras.

• Autores imprescindíveis
O Lúcio Cardoso é uma referência. Lavoura arcaica, do Raduan Nassar, é um desses livros intermináveis. É o livro de um possesso. Uma coisa que não para de ser intensa e vibrante. Desconcertante. Tenho voltado muito aos clássicos. Durante a escrita d’A cidade, o inquisidor e os ordinários, inicialmente era o formato de grandes depoimentos, depois esse formato não foi funcionando mais, foi se esfacelando e as palavras, as vozes, foram se multiplicando e houve uma aproximação grande com a experiência expressiva do teatro. Fui muito para o teatro. Fui muito para o Beckett. Para mim, o Kafka já era uma referência até então, e quando entrei nesse universo jurídico, num certo projeto moral e jurídico que o inquisidor tenta realizar nessa cidade, voltei com mais atenção ao Kafka. O Beckett, que eu também já tinha percorrido, voltei com muita atenção. Essa volta aos clássicos é voltar ao teatro. Por conta das disciplinas que fui fazendo para o doutorado, fiz uma na Filosofia que era justamente o estudo de obras do teatro — Medeia, Édipo Rei. A gente elegeu algumas obras para tratar especialmente do tema da paixão, que acabou aparecendo na tese. Tenho circulado muito por esses textos.

• Experiência da leitura
Quando estou escrevendo, tento não pensar muito no leitor. Não é que esteja me lixando ou não me importe, pelo contrário, o leitor, a experiência de leitura, é fundante da experiência da escrita. Antecede e dá base para a experiência da escrita. Mas, na hora que estou escrevendo, se for possível, ou tanto quanto for possível, é melhor não considerar o leitor, ou não antecipar o que talvez possa ser o efeito disso no leitor. Com isso, inclusive, evito entregar cartas muito marcadas. Evita que eu indique muito, pavimente muito, elabore já certos percursos de entrada para o leitor. Uma das coisas incríveis é que se é livre para começar o livro, abandonar o livro. E a leitura também pode ser uma experiência de iniciação. Cada vez mais, para mim, o texto produz em torno dele uma certa experiência iniciática. E se isso puder acontecer na leitura, se eu puder não atrapalhar isso, tanto melhor.

• Público-alvo
Não tenho. Acaba sendo inevitavelmente um público adulto que, de alguma forma, topa essa escrita. Como em A passagem tensa dos corpos, ela tem uma dimensão lacunar, fraturada, que também foi uma coisa que, ao longo do processo de escrita, foi aparecendo. Uma certa dicção que deveria ocorrer contemplando a fratura, quase como uma alusão àquilo que a morte produz — interrupções, lacunas, fraturas. Mas não tenho uma ideia de quem vá ler. Vou citar duas situações absolutamente inimagináveis que aconteceram no ano seguinte ao lançamento desse livro. Uma, acho que era o secretário de turismo da cidade, uma figura ligada à prefeitura, fez um texto me desancando, dizendo que teve contato com um tal de Carlos de Brito e Mello que escreveu uma obra e, na obra, diz que ocorreu uma morte horrorosa nessa cidade. E que ele, como cidadão de Bom Jesus do Galho, pode assegurar que jamais aquela morte aconteceu ali. Que o povo de Bom Jesus do Galho nunca seria capaz de produzir uma atrocidade daquela. E que então ele, em nome da população da cidade, me condenava, condenava o livro. Dizia que nós tínhamos desrespeitado a alma civilizada, amistosa, fraternal de Bom Jesus do Galho. Achei genial. E uma outra situação foi um roteiro literário que fiz pelo interior do estado de São Paulo, o Viagem Literária, em que eu ia por algumas cidades. Na primeira cidade, tinha muita gente. Achei aquilo muito interessante, muito incrível. Em algum momento, me dei conta que a maioria das pessoas estava vestida de branco. Dali a pouco, quando começam as perguntas, começo a sacar quem eram as pessoas. As perguntas eram mais ou menos assim: “Quando você estava escrevendo, como é que foi a influência dos espíritos na sua inspiração?”. Num primeiro momento, não me lembrava especialmente de ter tido uma experiência transcendental dessa natureza. Mas fiquei meio tateando na resposta. Dali a pouco veio outra pergunta: “E com relação às suas crenças?”. As perguntas foram se acumulando e percebi que a comunidade espírita inteira da cidade estava ali, entendendo que era um livro espírita. Inclusive quando terminou vieram conversar comigo, queriam saber mesmo da experiência mais íntima. Pensando essa questão do público, é um pouco por esse lado. A leitura leva a obra para um lugar que não é mais o do autor. Também para o bem da obra, o autor perde o controle sobre ela. A obra vira alguma outra coisa que não é mais de sua propriedade.

• Autor e leitor
Nessa mesma viagem literária, passei por uma biblioteca em que as crianças de algumas escolas trabalharam A passagem tensa dos corpos. Eram meninos de 10, 11, 12 anos. Tinha uma fatia grande de meninada. O encontro era super cedo, 7h da manhã, que era horário da aula. Achei que iam detestar. Quando cheguei, era uma biblioteca meio improvisada, num galpão. O galpão estava tomado de imagens fabricadas a partir do livro, de ilustrações, de desdobramentos de narrativas que eles construíram ao longo de um mês. Eles produziram coisas para além do livro, o que é uma coisa genial. Lembro nesse dia de um menino sentado bem na frente, ele estava com uma cara de aborrecimento total. Eram perguntas sempre muito interessantes. Ele levantou a mão, nem olhou para mim para fazer a pergunta. No livro, já que é um livro que trata de morte, tem um personagem que está morto. A pergunta dele era em que medida eu, como autor, me identificava com esse morto. Pensei em todas as perguntas que já tinham me feito sobre o livro, e fiquei atônito. Porque ele tinha matado uma charada que eu nem sabia que tinha formulado sobre mim mesmo. Eu como o morto, presente no livro. Levei um tempo para passar um certo choque, porque esse menino tinha feito uma leitura capaz de revelar para mim mesmo e algo sobre o processo de escrita daquele livro que nem eu tinha me dado conta, embora estivesse lá desde o início. Nessa hora, aconteceu alguma coisa de muito maravilhoso. Se para ele ficou reduzido àquela pergunta, se foi uma pergunta que foi forçado a fazer, se a pergunta é resultado de algum processo dele relacionado à obra ou à literatura de maneira geral, torço que seja.

• Impacto da obra
Não sei se, ao escrever, eu tenha como meta o trabalho importante de atrair os jovens para a literatura. Acho que, em grande medida, o impacto da obra sofre ou se vale de uma grande indeterminação. Você não sabe exatamente o que vai impactar. E você não sabe exatamente o que vai impactar, por que vai impactar, nem a quem vai impactar. Há uma alegria íntima, que é do autor e do leitor, quando eventualmente descubro que a obra impactou por uma determinada razão. Que pode ser até uma razão que soe estranha num primeiro momento. No dia do lançamento d’O cadáver ri dos seus despojos, teve uma pessoa que eu conhecia, tinha um certo convívio, mas não era muito íntimo, que se aproximou e disse: “Já estou lendo seu livro. Estou um pouco impressionada, porque você está falando da morte. Tem o cadáver, esses contos. Pois é, eu até achava, te olhando, que você fosse feliz”. Achei adorável, esse comentário. O que eu ia dizer? “Realmente não sou muito feliz!” Porque não tinha uma resposta. Era dela, esse impacto. Era dela, essa impressão. Não escrevi sobre as mortes para que ela pensasse isso de mim. Mas essa hora é a hora importante, e ela já apareceu para mim. Os autores têm prazer em fazer isso, gostam dessa experiência, que é o contato com os leitores e outros autores, porque esse é o momento de troca.

• Literatura e psicanálise
A experiência psicanalítica é fundamentalmente de palavra. Essa palavra é uma palavra que tem força de ato. Tem uma presença. Ela é o lugar da experiência na análise. É inclusive com a palavra que é possível dar conta, ao longo do processo analítico, daquilo que é inominável. Impronunciável. Irrepresentável. Me parece que, nesse sentido, uma experiência forte de literatura é uma experiência que acena com essa dimensão — do impossível de ser dito, nomeado, conhecido. E que, no entanto, nos constitui, assim como constitui um texto. Essas dimensões se aproximam. Não são exatamente aplicáveis uma a outra. Acho que quando isso acontece há risco de um certo empobrecimento — se produz uma leitura psicanalítica de uma obra literária, ou que se faça literatura diretamente a partir da experiência psicanalítica. Uma coisa não se conjuga com a outra de maneira tão direta. Mas existe um lugar, esse do impossível de ser dito, que a literatura tem a possibilidade de evocar, ou apontar, ou passar perto, e a experiência psicanalítica passa perto. Se é uma experiência levada adiante, ela passa perto desse lugar, ela trata desse lugar. Mas, em termos de uma inspiração, de alguma coisa vivida em um lugar que é levada para outro, aí não [há relação entre literatura e psicanálise]. São experiências que têm seu lugar de acontecer.

• Ensino de literatura
Da minha experiência, e da de muitos colegas e pessoas que me contaram como foram essas experiências, o contato com a literatura nas escolas foi sofrido. Um contato protocolar. “Temos que saber sobre literatura, então vamos começar de onde a literatura brasileira começa. A gente tem que passar pelos autores que formam certo cânone.” É bem pessoal, mas acho muito difícil a pessoa ser conquistada pela literatura se ela vai de cara num José de Alencar. Muito difícil. Quando você começa a curtir, pode ser incrível. Mas você ter que passar por isso… Alguma coisa que tem de anteceder o saber acerca da literatura, que é a experiência do prazer de leitura. Isso teria que ser vivido, mais do que trabalhado. Vivido lá nos primórdios, nessa dimensão da invenção, nessa dimensão mais palpável que a criança pode ter com a invenção. Se a literatura entra em termos de mais um saber dentre tantos, você perde o principal. Você pode se tornar um bom sabedor de literatura, conhecedor, eventualmente isso pode ser incrível e prazeroso. Você pode se tornar um pesquisador da literatura porque se encantou com esse saber. Mas a experiência transformadora, revolucionária e íntima que é de cada um, que talvez precise desse contato mais corpo a corpo com o texto, me parece que deveria ser fundante e primeiro.

Paiol Literário

O projeto Paiol Literário, realizado pelo Rascunho desde 2006 em Curitiba, já contou com a participação de mais de 70 autores brasileiros. É um grande acervo sobre a literatura brasileira contemporânea. Os encontros são iniciados sempre com a pergunta: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”.

Rascunho