Bernardo Carvalho

"Eu acredito na literatura. É uma ilusão que dá sentido para a minha vida."
Bernardo Carvalho no Paiol Literario. Foto: Matheus Dias/Nume
01/08/2007

Bernardo Carvalho foi o quinto convidado da temporada 2007 do Paiol Literário, projeto realizado pelo Rascunho, em parceira com o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba. A partir de uma pergunta inicial — qual a importância da literatura na vida cotidiana? —, Carvalho discutiu a força do mercado, a sua obra, entre outros assuntos.

• Elite grosseira
Se eu tivesse de responder em uma frase à pergunta “qual a importância da literatura no Brasil”, eu diria: “nenhuma”. É um país de analfabetos. Durante algum tempo, trabalhei na periferia de São Paulo com o grupo de teatro Vertigem. Ali, fiz alguns ateliês e oficinas de criação literária com jovens. Foi a pior experiência da minha vida. Eu me dei conta, não só que as pessoas são analfabetas, mas que o texto não faz parte da cultura brasileira; faz parte apenas de uma cultura de classe média irrisória no país. Mas o texto — e não precisa ser necessariamente literatura — não faz parte do cotidiano das pessoas. Além disso, o Brasil tem uma elite muito grosseira, muito iletrada. Em comparação com a elite de outros países, a brasileira é especialmente ignorante, e cultiva e reproduz a ignorância para os seus filhos. Isso é muito chocante e revoltante.

• Sem conseqüência
Para escrever o romance Mongólia, eu ganhei uma bolsa e fui para aquele país. Durante o meu tempo lá, eu viajava de carro com um motorista e um guia. Foi o meu primeiro contato com o Oriente e me dei conta de um negócio muito impressionante. Fui para a Mongólia profunda, vilarejos, sempre nos lugares mais esquisitos. Me dei conta de que o Oriente é um lugar em que a literatura e as artes, como eu imagino, não fazem sentido. A Mongólia foi um país que passou de um feudalismo totalmente dominado pela Igreja budista para um estado comunista. No feudalismo, a arte funcionava para a Igreja, com representações de coisas que servissem para a prática religiosa. Sem conhecer o capitalismo, o mundo moderno, passaram para um estado comunista, em que a arte servia aos interesses do estado. O meu guia, por exemplo, admirava um poeta mongol, cujo principal poema é uma ode à merda seca das ovelhas. Na Mongólia, não tem muita lenha. Então, no inverno, eles queimam fezes secas de animais. Essa própria adoração denunciava uma arte em função do estado. Para mim, esse negócio começou a ficar sufocante. É uma concepção de arte que funciona na sociedade: ou ela serve para uma prática religiosa ou serve para o estado nacional, autoritário. Mas a arte que eu defendo — que não funciona na sociedade, que não tem função, que entra em desacordo — não tem lugar no mundo oriental tradicional. Quando eu voltei, iniciei o projeto com o grupo Vertigem na periferia de São Paulo, e aí me dei conta de que aqui também não tem essa arte. Eu vivo num mundo de fantasia. Crio um tipo de literatura que eu acho que tem alguma importância porque preciso continuar criando, mas que, na verdade, não tem nenhuma importância, não tem nenhuma conseqüência social. E no capitalismo tem um negócio que se estabeleceu: o mercado. A arte já não funciona mais para o estado, para a religião, mas se também não funciona no mercado, ela não faz sentido. Isso é terrível. Nessa situação, eu sou nada. A minha literatura pode ser de resistência, mas é muito pequena, não tem o menor significado. É nada. O que eu faço é totalmente insignificante.

• Idéia política
A idéia de que a literatura não serve para nada surgiu na modernidade; e a considero muito importante. É uma idéia política. É essa idéia que vai fazer a literatura de verdade sobreviver. A literatura que serve para alguma coisa é a que o mercado quer. Se vivêssemos na Idade Média, a literatura serviria para a Igreja. Se vivêssemos num país comunista, faríamos literatura oficial. Não servir para nada é um negócio radical e muito importante; permite que se faça uma literatura de ruptura, que não obedece a demandas preexistentes; cria uma nova demanda. Não é o novo pelo novo. Não é isso. É criar um mundo que ainda não existe. Criar uma vontade nas pessoas que elas ainda não têm. Isso é genial. É uma oferta para ver se germina. É lógico que eu acho que a literatura serve para alguma coisa. Mas preciso manter esta idéia, porque é uma idéia política, de resistência: literatura não serve para nada mesmo. Mas eu vou continuar fazendo. A ilusão de que não tem função é superimportante. Para mim, é fundamental; me dá um alento; me deixa respirar.

• A importância do mercado
Para o tipo de literatura que eu faço, há cada vez menos espaço. Isso é uma coisa que já discuti com o pessoal da Companhia das Letras. Se eu começasse a publicar hoje, acho que a editora não me publicaria. Eu estou meio decepcionado. Recentemente, passei dois meses na Itália, na casa de uma baronesa que recebe escritores do mundo inteiro para ficar lá escrevendo. E essa baronesa está meio falida e recorre a países que dão dinheiro para esse tipo de iniciativa: Estados Unidos e Inglaterra. Então, a maioria dos escritores é composta por ingleses e americanos. Passei dois meses convivendo com alguns escritores anglo-saxões e me dei conta de que a importância do mercado é um negócio chocante. Esses escritores só funcionam em função do mercado porque se você for um escritor nos Estados Unidos e na Inglaterra e não funcionar no mercado, você não existe. Não tem vez para você. Para mim, fazer literatura com essa preocupação é algo muito sem graça.

Bernardo Carvalho no Paiol Literario. Foto: Matheus Dias/Nume

• Sempre o mercado
Mas acho que o mundo da literatura sempre foi guiado pelo mercado. Um estudo do Franco Moretti [professor de literatura comparada da Universidade Stanford] — que pretende dar uma objetividade aos estudos literários — buscou respostas de por que alguns romances policiais do século 19 sobreviveram e milhares caíram no esquecimento. A Inglaterra, por exemplo, publicou milhares e milhares de autores policiais no século 19. Então, ele começou a analisar quais eram os dados nos romances que fizeram com um sobrevivesse e outro desaparecesse na história da literatura. Uma espécie de darwinismo literário. Desde sempre, o negócio é o mercado. Os nomes que ficaram, que se tornaram grandes escritores, são aqueles que deram ao público aquilo que o público queria. O escritor que ficou, que hoje celebramos como grande autor, é aquele que atendeu a uma demanda de mercado. No século 20, depois da Segunda Guerra, naquele clima barra-pesada, aquela destruição absoluta da humanidade, as pessoas, sobretudo na Europa, se imbuíram de um espírito de sobrevivência do humano, de como celebrar o humano, e como celebrar a arte em suas formas mais radicais, mais inovadoras. Um Beckett, por exemplo, que aparentemente é um escritor totalmente niilista, é uma celebração do humano. Você lê algo que é terrível, em que o ser humano acabou, não presta, mas que ao mesmo tempo se contradiz pela própria obra. Isso pôde surgir por causa da Segunda Guerra, do horror que as pessoas passaram, e da necessidade de dar uma chance às artes, à cultura ocidental, à ruptura que o Ocidente tentara defender nas artes, na literatura. Eu acho que esse negócio foi cedendo. Se um cara como Beckett surgisse hoje, não teria a menor chance. Para esses escritores ingleses com quem eu estive na Itália, que são supercaretas, supertradicionais, se você fala em Beckett, eles respondem: “gênio”. Eu pensava, é hipocrisia; esse cara não acha Beckett um gênio. Ele acha Beckett um gênio porque está no cânone, está consagrado. Se eu desse um livro do Beckett sem o nome do autor, ele iria achar uma porcaria. Aí, eu perguntava: “por que Beckett é bom?” Ele respondia: “porque escreve muito bem”. Mentira, porque não é isso que o Beckett faz. O Beckett faz um outro negócio. Mas não escreve bem, não é isso que salta aos olhos.

• Imperialismo anglo-saxão
Tivemos um intervalo que valorizou as vanguardas, uma arte mais inovadora, dissonante, mas agora a coisa é cada vez mais careta. É um movimento respaldado pela imprensa. Hoje, entre os jovens críticos, por exemplo, qualidades inquestionáveis na literatura são personagens bem construídos psicologicamente e uma trama bem construída realisticamente. Qualquer crítico literário jovem vai tomar isso como um juízo de valor. Quando isso deveria ser um dos modelos. O crítico deveria entender que esse aí é um modelo de literatura e que existem outros que vão contra esse modelo. Mas isso é consensual. Isso é muito terrível porque não há literatura dissonante que sobreviva num clima de consenso. Eu acho que esse consenso se dá porque há um imperialismo do mercado anglo-saxão, onde impera esse juízo de valor, e uma subserviência do resto do mundo. A trama bem construída e personagens bem construídos realisticamente são tradições da literatura anglo-saxã e muito bem-feitos no século 19 por grandes autores. Isso não quer dizer que esse modelo deva ser hegemônico e se impor ao resto do mundo. Mas é lei na imprensa, e entre as editoras.

• Imposição
Qual mercado importa hoje no mundo? O anglo-saxão. E o que ele faz em ficção? Faz um texto bem construído, com personagens críveis e psicologicamente bem construídos. É isso que vende, é isso que o público quer. É isso desde o século 19, segundo a pesquisa do Moretti. Volta e meia a imprensa — tanto a americana quanto a inglesa — frisa que a literatura francesa acabou. Talvez tenha acabado mesmo. Mas por que é importante para a literatura anglo-saxã que a francesa tenha acabado? Porque é um modelo divergente, que não se aplica ao modelo da trama bem construída. A outra coisa que o mercado anglo-saxão impõe e o resto do mundo compra é a literatura de testemunho, literatura jornalística. Por exemplo, aquela coisa de quem viveu na África uma guerra terrível e resolve contar isso em livro. Isso é tudo que o mercado anglo-saxão quer. E por tabela, o resto do mundo, subservientemente, resolve comprar. Ao mesmo tempo, acho muito chato o discurso do ressentido. Parece que estou aqui falando que tenho raiva do mercado, que os meus livros não vendem, eu sou uma porcaria. Mas não é isso. É uma constatação de um negócio que é fato, é claro. Ao mesmo tempo é engraçado.

• Livros verdes
Literatura é uma coisa subjetiva. Não dá para ser objetiva. Sou fruto da minha educação, formação, de onde nasci, do que li. Pelo tipo de educação que tive, o Paulo Coelho é uma porcaria. Mas isso não quer dizer que ele seja. Pode ser que a porcaria seja eu. O mercado tem um modelo: a demanda. Se todo mundo fosse marciano e só lesse livro verde, o mercado só publicaria livro verde. O mercado não tem vontade própria; é a lei da oferta e da demanda; supre o que você pede. Se você lê Paulo Coelho, ele continua te oferecendo Paulo Coelho. Se amanhã, você começar a ler Kafka, o mercado começará a oferecer Kafka. O mercado publica o consenso. Até os anos 80, a literatura tinha sido relativamente preservada da lei do mercado porque era considerada uma coisa de alta cultura, era para pouca gente, não era um concerto de rock. Tudo é menor na literatura. A partir dos anos 80, nos Estados Unidos e na Inglaterra, começaram a ser criados grandes grupos corporativos, que devoraram as pequenas editoras. O dono do estúdio de Hollywood é dono da revista, da editora. E você não sabe. O resenhista que fala bem na revista trabalha para o cara que é dono de tudo. Foram criados grandes conglomerados que hoje devem ser quatro ou cinco. Isso supõe que a literatura foi puxada para o mundo pop: do cinema, da música. Então, tem de corresponder a esse mundo. Há salários astronômicos para os editores. Economicamente, sem juízo de valor literário, o cara que ganha um salário de milhões de dólares não pode publicar um livro que não pague o salário dele. O Nove noites foi vendido para vários países. Acho que em todos eles é a mesma editora. A Random House, por exemplo, é dona da editora espanhola, da inglesa, da alemã, da francesa, da americana. Então, tudo tem de dar muito dinheiro. A livraria de bairro sumiu. Hoje, há a Cultura, Fnac, etc. Também são grandes conglomerados vendendo livros. O tipo de livro que vai corresponder a essa venda é o livro que bate com a demanda do público. Não é um livro que contraria a demanda, que quer criar uma demanda que não existe. Coitadinho do autor que faz um livro que é uma ruptura literária, que deseja romper com o consenso, criar uma literatura totalmente nova. Esse cara não vai ser editado. E se for, não vai ser vendido pelo livreiro que é dono de uma rede de 50 livrarias. Mercado significa fazer a literatura vender igual à cultura pop. Qual literatura vai vender como cultura pop? O mercado não sabe. É o leitor quem vai dizer. É o leitor do Paulo Coelho que diz que se deve publicar Paulo Coelho. O problema é quando os escritores começam a funcionar nessa lógica de mercado. Se a literatura gira em torno do mercado, ela sai empobrecida. A pergunta é “como dentro desse mercado, desse mundo dos grandes conglomerados, pode ser criada alguma coisa interessante”? O padrão do mercado é o lugar-comum. De vez em quando acontece de as pessoas defenderem uma arte mais estranha, mas em princípio não é esse o padrão.

• Literatura de viagem
Escrevi O sol se põe em São Paulo como reação à recepção a Nove noites e Mongólia. Nove noites é baseado na história real de um antropólogo americano que se matou no Brasil entre os índios, em 1939, quando tinha 27 anos. O livro foi construído a partir desse dado, mas não é um livro sobre história real. Quando eu o escrevi, tinha escrito uns livros esquisitos, que não vendiam, que as pessoas não gostavam. Então, eu fiquei irritado e entendi o que as pessoas queriam: história real, livro baseado em história real. Pensei: “se é isso que eles querem, é isso que eu vou fazer”. Mas resolvi fazer algo perverso para enganar o leitor, criar uma armadilha. O leitor acha que está lendo uma história real, mas é tudo mentira. Tinha foto, autobiografia, etc. E não é que funcionou. O pior é que a minha intenção de criar uma armadilha, de brincar, de ser irônico, foi lida em primeiro grau, não foi lida em segundo grau. A maioria não percebeu que eu estava fazendo um jogo com aquilo. Com Mongólia, os leitores acharam que o que estava ali era um país real. Numa palestra em Goiânia, havia uma professora que imprimiu um jornal com todos os dados geográficos da Mongólia: população, renda per capita, etc. Eu falei para ela que a Mongólia do romance é um país imaginário, que eu inventei. O meu guia, por exemplo, odiou o livro, porque não é a Mongólia. É o mesmo se viesse um estrangeiro para o Brasil e escrevesse um delírio sobre o país. A professora ficou muito chocada, pois era um país real com o arcabouço subjetivo de um sujeito que não tem nada a ver com aquele país, em choque com aquela realidade. Outra professora universitária escreveu um ensaio longuíssimo sobre Nove noites e Mongólia, dizendo que em ambos o personagem era um gay enrustido. E como os romances eram autobiográficos, só podia ser eu o gay enrustido. Então, com O sol se põe em São Paulo, eu queria fazer um livro que essa professora não descobrisse que o gay enrustido era eu. Até agora ela não descobriu. Então, essa idéia de uma literatura que não é testemunho, não é representação imediata do autor, e não serve para o mercado, Igreja, estado, que não serve para nada, é fundamental para a minha vida. Ela não é a expressão de mim — ainda que seja; é óbvio que vai ser; se eu trato de gay enrustido, é porque isso me interessa, mas aquele não sou eu. A literatura que me interessa é a que não responde a uma demanda do mercado, a que tenta criar uma demanda que não existe.

• Obra incrível
A literatura de Beckett e Thomas Bernhard é o pior dos mundos. Mas você acaba de ler e fala “tem alguma coisa estranha aqui”. O autor está falando do pior dos mundos, onde o homem não tem vez, mas ele escreveu esse livro. Ele podia não ter escrito nada. Se fosse realmente o pior dos mundos, não teria escrito nada. Só que ele escreve algo que demanda uma força incrível porque é uma coisa dissonante, que está tentando criar uma demanda. Antes dele, não existia nada como ele. Essa criação de algo totalmente novo e inovador demanda uma força de vida incrível. Por que você sai contente da leitura de um Beckett e de um Bernhard, se o mundo deles é o mais sombrio que pode existir? É porque este livro, sem ele te dizer, está te dando um negócio que ninguém mais dá: uma obra incrível. Se não existissem Beckett e Bernhard, minha vida seria pior. A força que eles tiveram para fazer o que fizeram nem todo mundo tem. Isso é um elogio do ser humano, é uma celebração incrível do humano. Obviamente, eu não sou Beckett nem Thomas Bernhard, mas é dessa literatura de que eu gosto. É essa literatura que eu gostaria de fazer, do meu jeito, do jeito que eu sei escrever.

• Paranóia
Eu sou um pouco paranóico. Mas se pode ver a paranóia como a criação do sentido. Se o mundo não faz sentido — e não faz —, o paranóico é que aquele que vê sentido onde não tem. O mundo não faz sentido, a vida não tem sentido, não faz sentido eu estar vivo. A paranóia me atraía como uma matriz de sentido, uma matriz desvairada. A idéia da paranóia me atraía como ficção, como produção de ficção.

• O jogo
Eu escrevo os romances que eu gostaria de ler. É importante que o leitor participe de forma ativa da leitura, que seja empurrado para dentro do texto não de maneira meramente passiva, queria deixar isso claro. Então, o jogo em meus livros é importante. Tem a função de cooptar o leitor, de fazê-lo ter uma participação ativa no livro.

• Linguagem banal
O Nove noites saiu há três meses na Inglaterra e não recebeu nenhuma linha na imprensa, nem para o bem nem para o mal. O livro foi totalmente ignorado. Então, a baronesa italiana — com quem a relação no início foi muito difícil, mas aos poucos fomos nos entendendo — empurrava o livro a todos que chegavam na mansão. Eu ainda estou para entender: eu não sei se era porque era brasileiro, mas as pessoas chegavam a folheá-lo e achavam que aquela linguagem era banal, que aquilo não era literatura de verdade, que não valia a pena ser lido. Tenho várias hipóteses. No Nove noites, há dois tipos de escrita: um deles é deliberadamente banal, quase corriqueiro. O leitor já não percebe isso em segundo grau, acha que está mal escrito, que não é literatura. Talvez eu escreva muito mal. Mas O sol se põe em São Paulo, que as pessoas disseram que é muito mal escrito, eu reescrevi 20 vezes. O primeiro livro, Aberração, foi deliberado: eu não queria que nada fosse poético, não queria que as frases fossem poéticas, não queriam nada bonito, não queria metáforas. É curioso, e assustador também, as pessoas não perceberem isso. Talvez seja um bando de loucos, ou eu seja realmente muito louco por ver uma coisa que as pessoas não vêem; ou que eu leia um livro do que jeito que as pessoas não lêem. É possível também. Para mim, algo mal escrito é quando o autor floreia. São modelos diferentes.

Bernardo Carvalho no Paiol Literario. Foto: Matheus Dias/Nume

• Metalinguagem
A metalinguagem — isso de falar da própria literatura — é uma coisa ruim. Mas ao mesmo tempo, é muito importante para mim, está em mim. Em O sol se põe em São Paulo, acho que a coisa passou um pouco do ponto, por uma especificidade do livro. É um livro em estado de crise, feito muito em conseqüência das minhas preocupações com a literatura, com as coisas que estavam acontecendo depois de Nove noites e Mongólia. Era como se eu não tivesse escrito nada antes desses dois romances, os mais bem-sucedidos do ponto de vista do mercado. Como se aquilo fosse o modelo que eu teria de seguir dali em diante. Eu queria me livrar daquilo, eu queria me livrar do Nove noites e do Mongólia de qualquer maneira. A discussão literária sobre ambos começou a me irritar. Então, eu tive vontade de falar um pouco de literatura, da literatura de que eu gosto. E é curioso porque é um livro que trata de literatura japonesa, e o Japão, talvez por influência do Ocidente no século 20, ao contrário da China, tem escritores incríveis. Não são um ou dois. São vários grandes escritores. E eu fiquei encanado como no Japão — cuja sociedade não preza a individualidade, não preza o estilo individual — a ruptura não faz parte da tradição cultural. Sempre fiquei muito intrigado com a sociedade japonesa, com essa coisa do conjunto, da corporação, da nação. E, de repente, no meio daquilo surgem obras absolutas, de uma individualidade absoluta, muito incisivas, muito enfáticas e, ao mesmo tempo, discretas porque o escritor vai lá, como quem não quer nada, como se fosse um japonês totalmente integrado, e escreve um livro que é uma bomba. Mas ele fica quietinho, calado, respeitando as tradições. Então, eu queria fazer um elogio desses autores, sobretudo o Junichiro Tanizaki. Um elogio desse sujeito que, ao mesmo tempo que parece estar reproduzindo a tradição, está criando uma literatura totalmente revolucionária, inovadora. Tinha a ver com a minha idéia de não se submeter a uma literatura consensual. Fazer um elogio do meu defeito como qualidade.

• Jeito de escrever
Em Aberração, descobri um dos meus jeitos de escrever, que é compactado, hipersucinto. Os contos foram escritos como sinopses de romances. Eu queria afirmar isso como meu estilo, como algo positivo. O Aberração é uma sucessão de sinopses de romances, cada frase poderia ter sido desdobrada em várias outras, em várias outras páginas. Foi a primeira manifestação de que o defeito é a qualidade. Nem todo mundo concorda. Era tudo muito deliberado. A idéia era que o leitor lesse uma frase, fechasse o livro e começasse a pensar, e que um mundo começasse a se desdobrar dentro da cabeça dele.

• Sem pensar no leitor
Se eu pensasse no leitor, eu não escreveria. Eu escrevo o livro que eu gostaria de ler. Eu não tenho talento para saber o que o leitor quer ler. Mas há autores que sabem. O Paulo Coelho, por exemplo, tem uma sintonia entre a oferta e a demanda. Há uma sintonia absoluta.

• Autores preferidos
Gosto de um monte de gente. Gosto de Philip Roth, os melhores livros do Thomas Pynchon, Don DeLillo, o argentino Juan José Saer (autor muito difícil, meio esquecido, meio injustiçado), o espanhol Javier Marías. Alguns alemães que andam meio esquecidos, como o Peter Handke, escritor incrível que sumiu porque não corresponde ao modelo atual. Entre os brasileiros, cito Sérgio Sant’Anna e Milton Hatoum. Eu não leio muito a literatura que está sendo feita ao mesmo tempo em que escrevo os meus livros porque tenho uma fragilidade. Isso me atrapalha, cria um país real para mim. Eu não posso ter este país real. Não sei como explicar. Consigo ler americano, inglês porque não quero fazer literatura como eles, não vou fazer o modelo deles.

• Sade e o jogo
O Sade é para mim o mesmo que Beckett e Bernhard. Eu o vejo dentro desta mesma sintonia. As pessoas lêem o Sade como crítica, por exemplo, como o Pasolini leu, ao fascismo. Ou como alguns psicanalistas lêem: elogio do desejo, pornografia desenfreada. O que me interessa é uma força da literatura, uma voz totalmente dissonante, totalmente única, criando um negócio chocante também, incompatível com seu tempo. Com uma literatura muito forte, Sade propõe um paradoxo: se você não tiver nenhuma repressão dos seus instintos, dos seus desejos, você pode matar o outro. Ele faz um elogio do assassinato. Mas também podem te matar. É um paradoxo. É um desejo totalmente desvairado. É um desejo suicida. Isso é curioso como literatura. Filosoficamente é muito interessante. Medo de Sade [Companhia das Letras, coleção Literatura ou morte] foi um livro de encomenda: escrever um romance policial, cujo personagem principal era um dos grandes nomes da literatura. Mas não é um romance policial e o Sade não aparece em momento algum. É apenas uma sombra na primeira parte. Não tem Sade e não é um romance policial. Então, comecei a jogar com isso, a fazer uma literatura do contra. O negócio do jogo está em tudo o que eu faço.

• Guimarães Rosa ignorado
Outro dia, num jantar, um jornalista americano me falou: “o Brasil tem de criar uma literatura forte, porque assim vocês vão conseguir se impor lá fora”. Era como se o Brasil nunca tivesse existido até ele pisar aqui. Agora, que ele conhece o Brasil, vai começar a existir uma cultura aqui. Eu falei para ele do Guimarães Rosa, que eu considero um gênio. Há três traduções no mundo do Rosa: duas boas (Itália e Alemanha) e uma na França (mais ou menos). Mas se perguntar para um alemão, italiano ou francês quem é Guimarães Rosa, ninguém sabe. Nos Estados Unidos, Grande sertão foi traduzido como bangue-bangue. Este jornalista nunca ouviu falar em Guimarães Rosa. É triste: você pode ser um gênio da literatura, pode fazer uma obra incontestável, e mesmo assim não vai ter lugar para você. No cânone internacional, ocidental, não tem lugar para o brasileiro, pode ser o maior gênio da raça. Você fica babando ovo para escritor inglês e americano (há alguns geniais), mas não tem a contrapartida. Ninguém vai ler escritor brasileiro. E não é escritor pequenininho como eu, é Guimarães Rosa. Ninguém sabe quem é Guimarães Rosa e nem quer saber. A cultura brasileira é samba, futebol e música popular. Não é alta cultura. O Brasil tem a oferecer cultura popular, futebol e administração da miséria. Se você souber administrar bem a miséria, você pode exportar esse modelo para a África. A ONU vai achar ótimo. Mas você não pode ser um indivíduo, autor, cientista, e criar alguma coisa que bata de frente com a produção desta cultura hegemônica. Isso é muito terrível. É irreversível. Pode bater a cabeça no chão, fazer uma revolução. Então, não sei como lidar com isso. O jeito é continuar a fazer o que faz, sem a perspectiva de que precisa ser reconhecido pela hegemonia que determina o que existe e o que não existe no mundo.

• Sem emoção
Na mansão da baronesa italiana, os escritores me perguntavam: “e o Borges, é bom mesmo esse cara?”. É um escritor racionalista, os personagens não são psicológicos, não tem drama, não emociona. E para o mercado, literatura que não emociona o leitor não é literatura. É cerebral. Quer coisa pior do que cerebral! Isso mostra a mentalidade de mercado. Uma mentalidade literária, como a minha, não está preocupada com o mercado, cabe todo mundo. Eu tenho interesse em saber quem é o coreano genial, o vietnamita genial. Qual é a tradição literária do Vietnã, da Coréia? Isso me interessa, me enriquece. Me enriquece ler o romance chinês do século 18 e saber que aquilo é um negócio estranho. Isso me enriquece como escritor, como leitor. Na mentalidade do mercado, não enriquece porque não cabe todo mundo. Não cabe outra tradição, não cabe outro modelo, é preciso vender. Nas entrelinhas tem um negócio para destruir qualquer modelo que não seja o modelo hegemônico, consensual. Entre escritores é isso: o interesse é alimentado pelo esquema de imagem, de sucesso. O chato é reclamar, porque aí é o ressentido falando. Não estou reclamando. Não quero nada. Só estou constatando.

• Por que escrevo
Eu escrevo porque não daria para não escrever. Não sei explicar. Quando eu não escrevo, fico agitado. Mas não é terapia. É fundamental, é a minha vida. É mais importante que qualquer outra coisa. O chato é quando vejo que é uma ilusão. Uma ilusão que eu criei para mim, mas é uma ilusão que dá sentido para a minha vida. Acredito nesse negócio. Tem um negócio meio religioso. Igreja de um homem só. Vou lá, rezo, e acredito naquele negócio. E funciona. Não acredito em Deus, não acredito em nada. Em alguma coisa, eu tinha de acreditar. E, aí, sobrou a literatura. É ótimo. Agora, não dá para ficar sem. Igual a uma pessoa que acredita em Deus e não consegue passar sem essa crença. Tem de acreditar que Deus existe. Eu acredito na literatura. É uma ilusão. Cada um arruma uma forma para viver. A literatura é a minha.

• Manipulação do leitor
Os meus livros explicitam a manipulação do leitor até quase o grotesco. É muito visível. Minha obra é quase só a manipulação do leitor. É o princípio do todo romance, de toda obra romanesca — o que o romance faz é manipular o leitor e fazer com que ele participe. Agora, quando se explicita isso, como é o caso dos meus livros, dá-se ao leitor uma participação mais ativa. Você mostra que está jogando com ele. É quase um convite explícito. No romance do século 19, este convite está lá, mas é mais implícito. Nos meus livros, eles quase se reduzem à explicitação desse jogo.

Paiol Literário

O projeto Paiol Literário, realizado pelo Rascunho desde 2006 em Curitiba, já contou com a participação de mais de 70 autores brasileiros. É um grande acervo sobre a literatura brasileira contemporânea. Os encontros são iniciados sempre com a pergunta: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”.

Rascunho