No dia 8 de abril, o Paiol Literário — um projeto realizado pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba — recebeu o escritor sergipano Antonio Carlos Viana. Numa conversa com o escritor e jornalista José Castello, mediador do encontro, e o público que compareceu ao Teatro Paiol, Viana falou sobre sua obra literária e a profissão de professor, discorreu acerca do cânone e do mundo acadêmico e contou de que forma trabalha com o erotismo em sua escrita e a timidez em sua carreira. Confira os melhores momentos do bate-papo.
• Reforço de consciência
Será que a literatura é capaz de mudar o mundo? A primeira resposta que posso dar é não. É impossível que a arte realmente mude o mundo. Ela pode mudar indivíduos. Mudar não: fazer com que as pessoas fiquem pelo menos mais conscientes de seus problemas, de suas emoções, de seus sentimentos. E essas pessoas realmente conseguem evoluir nesse sentido. Agora, uma literatura capaz de mudar a história? Não tenho conhecimento disso. Acho difícil. Porque se trata de uma transformação muito individual. Para se transformar todo um grupo é muito complicado. É difícil mudar toda uma sociedade por meio de uma obra — ou mesmo de várias obras. Também não acredito que a literatura dê consciência às pessoas. Ela dá consciência àquelas que já têm consciência. Ela reforça a consciência. Por exemplo: é melhor uma pessoa ler auto-ajuda do que não ler nada? Também não acredito. Quem começa a ler auto-ajuda fica na auto-ajuda. Porque o leitor de auto-ajuda encontra ali fórmulas tão perfeitas, tudo tão bem acabado, tudo que ele queria ouvir e receber, que não vai querer dar um salto para se desestruturar.
• Ponto-chave
Para alguém chegar à literatura, ele depende muito da educação que teve. E esse é o ponto-chave de tudo no Brasil, não é? Temos uma educação — todo mundo já está cansado de falar isso — de péssima qualidade. Dentro da educação brasileira, a literatura ocupa um lugar ínfimo. E apenas porque cai no vestibular. Isso é uma lástima. O aluno lê só para fazer um concurso vestibular. É obrigado a ler. Sou contra esse tipo de obrigatoriedade. A literatura vira um castigo. Até gostaria que alguém fizesse uma pesquisa para descobrir quantos desses leitores de vestibular continuam leitores depois que entram na universidade. É preciso fazer isso. Porque a gente não sabe realmente qual o efeito dessa leitura nos alunos.
• De volta ao zero
Fui professor universitário por mais de 20 anos na Universidade Federal do Sergipe. E o nível de leitura dos alunos do próprio curso de Letras era muito baixo. O pior de tudo era que muitos nem gostavam de ler. Então, eu sempre dizia para eles: “Se vocês não gostam de ler e de escrever, não sei qual é o seu papel no curso de Letras. Não dá para entender”. Daí, claro, existe resposta para tudo. Alguns me diziam que precisavam ter nível superior, ter um nível no Estado, o nível um, dois, três, quatro, cinco. Alguns, com o tempo, se tocavam de que era preciso ler mesmo. E continuavam lendo e escrevendo alguma coisa. Mas a maioria não. No exterior, fiz um curso altamente sofisticado, que é o de Literatura Comparada. E, sinceramente, nunca dei uma aula de Literatura Comparada. É um paradoxo. A universidade me paga, fico quatro anos na França, estudando, e, na volta, a universidade simplesmente não se digna a me oferecer um curso de Literatura Comparada. Voltei com aquele ideal de começar a fazer estudos comparativos — meu trabalho era sobre a poesia de Paul Valéry e João Cabral de Melo Neto. Cheguei aqui e só uma ou outra vez me chamaram para fazer uma palestra sobre o assunto. Portanto, três anos depois da minha volta da França, percebi que eu estava chovendo em terra árida demais. Começava a falar e os alunos não entendiam absolutamente nada. Por que falar de Mallarmé, de Valéry? As pessoas nem sabem quem é Mallarmé. O que foi que eu fiz? Eu disse: “Vou voltar ao zero”. Simplesmente voltei a ser professor de redação. Parece uma coisa meio maluca, contraditória. Elaborei um projeto para redação dentro da universidade e não fui muito bem visto. As pessoas achavam que, por eu ter um doutorado, seria um retrocesso dar aulas de redação. Mas não adianta exigir Teoria Literária de quem não sabe nem escrever um parágrafo.
• Erotismo e iniciação à literatura
Venho de uma família que não tinha grandes recursos. Eu morava na periferia de Aracaju. Não era nem periferia: naquele tempo era mato, mesmo. Mata Atlântica fechada. Hoje, já devastaram tudo aquilo — como sempre fazem no Brasil. Eu morava no sítio da minha família e meu contato com a cidade era muito pequeno. Ir à cidade era uma festa. Eu caminhava uma légua até chegar lá, uma caminhada e tanto. Isso me fortaleceu bastante. Minhas pernas, minha saúde. Mas, no sítio, não havia muito que fazer. Havia uma escola onde minha tia era professora. Foi ela quem me iniciou nas letras — algo que eu odiava. Não gostava realmente de estudar. Mas aconteceu o seguinte: ela tinha um baú cheio de livros. E sempre me dizia: “Você pode ler todos os livros deste baú, menos um”. E justamente aquele eu fui ler. Meu interesse pela literatura começou aí. Quando ela saía para fazer a feira, eu ficava sozinho com meus irmãos menores e ia ao baú. O livro proibido era O tempo e o vento, de Erico Verissimo. Comecei bem, por acaso. Minha tia dizia: “O tempo e o vento não. Você pode ler tudo aqui, até livro religioso”. Mas O tempo e o vento não. Ele tinha passagens eróticas e ela era muito carola. E eu me apaixonei pelo livro, simplesmente, pelo romance entre Ana Terra e Pedro Missioneiro. Não conseguia mais parar de ler. Com 12 anos, senti que havia alguma coisa a mais no mundo, algo que eu não captava muito bem. Um sortilégio, uma espécie de feitiço das palavras sobre mim. Só sei que consegui ler as quinhentas e tantas páginas do livro de Erico. Isso me marcou profundamente. Achei, então, que deveria haver outras coisas como aquelas. Só que eu não as encontrava. Se eu lesse um livro e não achasse erotismo nele, eu o deixava para lá. Hoje, talvez você me faça esta pergunta: “Por que seus contos são tão eróticos?”. Olha, nunca fiz psicanálise para saber por que o erotismo brotou na minha literatura, mas, depois de O tempo e o vento, ele apareceu. E eu não tinha mais como fugir da literatura.
• A paródia
Eu estudava no Salesiano, um colégio super-repressor. Lá, minha diversão era ler os textos dos livros de português. Enquanto o professor explicava sujeito, objeto direto e indireto, eu ficava com o livro. Era um pouco de indisciplina da minha parte, mas como eu era muito quieto, o professor não ligava muito para mim. Então, eu vez de eu estar na página de análise sintática, eu estava na da escritora Júlia Lopes de Almeida. Li o conto A caolha, e aquilo me emocionou profundamente. Tanto quanto O tempo e o vento. E quando o professor me mandou fazer uma redação, escrevi uma história parecida com a da caolha. Foi omeu primeiro conto — eu tinha 12 anos, por aí. Era a história de um homem que mancava de uma perna. A criançada ia atrás dele, o tempo todo: “Perneta! Perneta!”. No final, o perneta contava para um menino que ele era assim porque tinha ido para a guerra e, de repente, uma bomba besta… Daí, todo mundo parava de brincar com o homem. Nunca me esqueço do que o professor escreveu na minha redação. Ele me deu nota 10, mas não deixou barato, não. Botou: “Paródia bastante bem-feita”. Só que eu não sabia o que era paródia. Fui ao dicionário e li: “Paródia — história semelhante e não sei o que lá”. De qualquer forma, para mim foi uma vitória tirar 10 naquela redação. Era uma história longa. Enquanto o pessoal escrevia uma página, eu escrevia dez, com aquela letra de menino, ainda meio torta. Aquilo me deu certa força. Ler é tudo. Não parei mais.
• Camões e a arquitetura do texto
No primeiro grau, nos obrigavam a ler Os lusíadas. A gente lia Camões, o que hoje é uma coisa impensável. Pior: a gente fazia análise sintática de Camões. “Onde é que está o sujeito?”, perguntava o professor. Você procurava o sujeito na primeira linha do poema, e ele estava lá no último verso. Esse é um exercício de raciocínio que considero muito bom. Faz você realmente ter o domínio da arquitetura do texto.
• Poeta zombado
Peguei uma alergia de poeira de tanto ir à biblioteca. Descobri Jorge Amado, José Lins do Rego. Foi paixão à primeira vista. Menino do engenho, Vidas secas, Capitães de areia, Mar morto, Jubiabá. Daí, pronto: a fila não parou mais. Fui em frente. Mas aconteceu o seguinte: comecei a descobrir a poesia. Comecei por Camões. Ele me impressionou muito. Então vieram Drummond, Aída Costa, Olavo Bilac, Alphonsus de Guimaraens. Esses poetas me fascinaram tanto que achei que também devia ser poeta. Comecei a escrever poesia, só que não a mostrava para ninguém. Quando mostrei pela primeira vez, houve uma zombaria muito grande lá em casa. Porque só eu gostava de literatura. Minha mãe era costureira, tinha estudado até o segundo ano primário. Meu pai era sapateiro. Meu irmão mais velho era muito estudioso — hoje, é físico nuclear e mora em Brasília. Ele gostava mais de física e de matemática. […] Pois fiz uma poesia, no São João, que até hoje não é uma poesia ruim — lembro dela perfeitamente. E até hoje meus irmãos zombam de mim. Pela primeira vez, vou recitar este meu poema inédito: “Mastros mortos/ folhas mortas/ fim de São João// Face triste/ lábio amargo/ fim de ilusão”. Para um garoto de 15 anos, eu acho que estava bom. Por isso, comecei a fazer poesia, mas sem mostrar para ninguém. Foi quando descobri Fernando Pessoa, Manuel Bandeira e Cecília Meireles, por quem me apaixonei. Ela apaixona qualquer estudante de segundo grau.
• Timidez crônica
Eu gostava muito de francês. Tive um professor me incentivou muito. Ele sempre me dizia: “Você nasceu na França, está aqui por acaso”. Comecei a estudar francês na primeira série ginasial. Lia textos em francês, ia ao dicionário. Eu era muito curioso. Com 12 anos, me veio esse sonho de morar na França. Mas não sabia como. Dinheiro, eu sabia que não tinha. Assim, quando chegou a hora de decidir o que fazer na faculdade eu optei mesmo foi pelo curso de Letras. Quis ser professor — e ser professor não era bem o meu ideal. Tenho uma timidez crônica, não sei se ela está aparecendo ou não. Às vezes, a gente finge. Mas, realmente, foi um drama. Meus primeiros anos como professor foram terríveis. Eu enfrentava uma turma de 50 alunos e saía suado. Mas era o único jeito de ganhar algum dinheiro lendo, fazendo aquilo que eu queria. Eu não gostava de advocacia, de economia. Era ler, ler, ler. Para mim, ler era tudo.
• Ler com olhos de criança
É como diz Daniel Pennac. Você tem que “desautomatizar” esse tipo de leitura que se faz com background teórico. Ele fala que o primeiro contato do aluno com o livro deve ser a leitura em voz alta. Ele não deve nunca ler um livro para depois fazer um resumo. Isso mata completamente a vontade de ser leitor. Pegar um livro para depois cobrá-lo no vestibular? Não entendo por que o Brasil continua fazendo isso, sabendo que não está no caminho certo. É muito ruim. Não forma leitores. Então, essa leitura em voz alta é importante. É importante voltar a ler com olhos de criança. Aquela primeira leitura, ingênua mesmo, que você vai degustando. Inclusive, como defende Daniel Pennac, com o direito de pular páginas. Ele diz que se interessou muito por Guerra e paz, mas que pulava as páginas que não lhe interessavam. Só estava interessado na paixão retratada no livro. Então, pulava tudo que dizia respeito a técnicas de guerra.
• Sem chão
Eu era professor de segundo grau no Rio de Janeiro. Para sobreviver. Nessa época, eu não pensava em ser contista, isso não passava pela minha cabeça. Eu achava que seria poeta. Mas quem me fez desistir dessa idéia foi João Cabral de Melo Neto. Quando o li, pensei: “Poesia é isso e isso eu não consigo fazer. Ele já fez”. A partir de João Cabral, meus poemas foram sendo esquecidos. Eu fiquei sem chão. João Cabral e Clarice Lispector me tiraram o chão.
• Cachorro-quente com Proust
Decidi que seria escritor. Eu estava recém-casado, era professor em vários colégios. Já era até considerado um bom professor. E o que foi que eu fiz? Simplesmente pedi demissão de tudo. Pedi demissão do Estado. E eu ganhava bem. Dava para viver, ter carro, pagar apartamento, só trabalhando no Estado, no Rio de Janeiro. Escola particular, então, pagava o dobro. Eu levava um vidão. Mas queria ser escritor, não tinha outra alternativa. Simplesmente pedi demissão de tudo. Todo mundo achou que eu tinha enlouquecido, que aquilo não era possível. Pedi para ser demitido, para eu receber o Fundo de Garantia, para poder me manter até arrumar outro emprego. Mas eu não queria outro emprego, queria escrever. Meu sogro tinha uma casa em Teresópolis e eu me articulei para morar lá, para não pagar aluguel. E, não sei como, me deu uma luz: “Vou vender cachorro-quente”. Comprei uma carrocinha. Quando a gente é jovem, tem muita coragem. Abri mão de tudo. Vendi meu carro, meu primeiro fusquinha; até minha máquina de escrever eu empenhei. Fiquei escrevendo à mão — depois recuperei a máquina. Fomos para Teresópolis e minha mulher me deu a maior força. A família dela deve ter ficado com aquela interrogação: “Nossa filha casou com um maluco”. Em Teresópolis, toda madrugada a gente acordava cedo, fazia pastel, preparava o cachorro-quente. Eu ficava lá, sentado no meio-fio, lendo livros que nunca tinha lido: Proust, Virginia Woolf, Freud. Foi bom. Foi interessante. Havia várias brigas na rua. Tinha um vendedor de pastel que não gostava de mim. Ele me hostilizava o tempo todo. Uma vez, tentei escrever sobre isso, mas não consegui. Não consigo escrever sobre o real. Meu negócio é ficção mesmo, o real não me chama.
• Então não estou errado
Um dia, eu disse: “Está na hora de levantar a tenda”. E, com meu primeiro livro na mão, começamos a peregrinação, eu e minha mulher. Ela, que também gosta muito de ler, batia à máquina, dava pitacos: “Aqui está bom, aqui está ruim”. Mostrei meu trabalho para um dos editores da José Olympio, que gostou dele, mas veio com aquele papo de sempre: “Não dá para publicar, tem muito livro na frente”. Daí, procurei, procurei, procurei. Até que encontrei a Editora Cátedra, de Moacir Lopes. Ele leu o livro, gostou e publicou. Um livro tosco, péssima revisão. Me pediu que tudo fosse feito só em duas cores, porque se colocássemos mais uma, ficaria muito caro. E ficou aquela coisa colegial, parecendo mimeógrafo. Mas tive sorte. Em 1974, saiu uma crítica muito favorável de Haroldo Bruno a esse meu livro, Brincar de manja. Uma crítica que o colocou nas alturas. Sempre fiz tudo muito humildemente, sem achar que fazia grandes coisas. E é claro que, quando um crítico de valor escreve sobre seu livro, você toma fôlego: “Puxa, então não estou errado, escolhi meu caminho, vou continuar”.
• O João Cabral do conto
Eu estava me impacientando com o livro Cidades da planície, de Cormac McCarthy. Mas, de repente, fui descobrindo alguma coisa. A secura dele é cabralina. Tem uma poesia por trás. E quando descobri que esse era o veio pelo qual eu poderia andar, fui em frente e terminei apaixonado — pela obra e pelo autor também. Uma vez, o Paulo Henriques Britto me disse: “Você é o João Cabral do conto”. Fiquei lisonjeado, é lógico. O Paulo Henriques me dizer isso? É um autor que estudei — e estudo — bastante. Busco a secura total. Se a emoção se derramar é porque ela vem pelas palavras. Jamais escrevi um diminutivo em um conto. “A criança tem um coraçãozinho.” Isso acabaria com qualquer literatura.
• O leitor que faça “oh!”
Paul Valéry dizia que a inspiração não está no poeta, e sim no leitor. Cabe ao escritor despertar a inspiração no leitor. Você nunca é inspirado, você é o fabricante. Você fabrica o texto. Você é o fabricante da sua prosa, da sua poesia. O escritor vê apenas a técnica; o leitor que faça “oh!”. Valéry dizia: “Muitos pensam que escrever é só festa. Festa nada: festa é depois, para o leitor”. Nosso trabalho é suado. É aquele trabalho ali, de corpo-a-corpo com o texto. É o escritor suando, sofrendo mesmo, se angustiando com a indústria da forma. E essa é uma poética que, pelo menos, eu tento seguir.
• A volta do parafuso
Quando fiz meu primeiro livro, senti que alguns contos pulsavam mais do que eu podia dar. Havia neles um erotismo latente que eu não tinha coragem de abordar. Senti que algumas personagens exigiam algo mais e eu segurava aquilo, porque não estava muito seguro de nada. Àquela altura, eu já tinha lido Emílio Borba Filho, Henry Miller, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan — que admiro bastante, pois ele não se derrama, vai direto ao ponto. Quando publiquei meu segundo livro, em 1981, ele já tinha um pouquinho mais de erotismo. Chamava-se Em pleno castigo — palavras tiradas da epígrafe de O castelo, de Kafka: “Nada temíamos do porvir, porque já estávamos em pleno castigo”. Todas as personagens desse livro estão passando por algum castigo, seja ele qual for. Sem horizonte de redenção. Tenho muito essa preocupação de estruturar meus livros de forma que seus títulos consigam agrupar seus textos. Em O meio do mundo e outros contos, todas as situações são situações-limite. Seus personagens estão vivendo o momento em que suas vidas vão dar uma guinada. É a volta do parafuso. Por exemplo: um menino é levado pelo pai por um caminho enorme, extenso, seco, sem muito sol. Com sede, ele não sabe para aonde está indo. E caminha, caminha, caminha. Até que chega em um determinado lugar, onde o pai o deixa com uma mulher suja. Uma carvoeira fedorenta, completamente desarrumada. O pai empurra o menino, que até aquele momento não sabia nada do que iria acontecer. O homem conversa um pouco com a carvoeira, vai embora e deixa seu filho com ela. No momento em que o menino saiu de casa, era um inocente; na hora em que ele voltar, não será mais. E eu penso em tudo, em todas as palavras. Por que O meio do mundo? Porque é o meio do mundo é a linha que divide, que corta a vida em duas partes.
• O prazer nunca é absoluto
De repente, aquele menino descobre que foi àquele lugar só para ser seduzido por uma carvoeira. É sua iniciação sexual, ele não tem como escapulir. Ele tem realmente que enfrentar, com coragem, uma mulher que simplesmente não tem atrativo algum. Daí é que entra o erotismo no livro. Ele sempre se dá em um ambiente degradado. Nunca se trata de um momento de prazer absoluto. Não há motéis no meu livro. Há sempre um ambiente onde cada situação se dá de forma inusitada, justamente para acentuar ainda mais a gravidade do problema. Porque se fosse com uma mulher bonita, não aconteceria nada. “Quando ela puxou o seio para fora, ele era de um rosado triste”, diz o menino. Era um seio sujo de carvão. O menino tinha um universo muito pequeno. Ele vivia no interior. Então as comparações que faz são as comparações do autor? Não. E então entramos naquela questão: até onde vai o autor e até onde vai o personagem? Quando o menino faz comparações eróticas, ele faz comparações com o mundo dele. Eu não poderia dizer assim: “Foi um momento em que as estrelas brilharam”. O momento do orgasmo. Seria uma coisa totalmente falsa. Nesse momento, o que é que ele pensa? Ele morava no sertão, em um lugar seco. Então, ele fala: “Uma campina verde devia ser assim”. Ele compara seu momento de prazer com os elementos que faltam a ele no seu entorno. Então, esse erotismo vem de uma forma mais avassaladora do que antes, mas sempre, desde o começo, ele existe.
• Pegada
Antes, eu queria escrever sobre erotismo e não conseguia. Havia um monte de bloqueios. Primeiro, a religião. Fui criado em um colégio de padres. E todo mundo sabe o que é uma educação salesiana. Rígida demais. O corpo é fonte de pecado. Sexo só no casamento, para a procriação. Então, o que foi que eu fiz? Eu estava totalmente bloqueado, não conseguia escrever. E queria escrever sobre essas coisas. Fui a uma terapia. Lá, a sexóloga me disse: “No interior, ainda existe o hábito de os pais levarem seus filhos para a primeira relação sexual”. E na hora me deu um estalo. Pensei: “Vou escrever uma frase”. Porque o conto vem, pelo menos para mim, da seguinte forma: se sinto que a primeira frase tem pegada, sei que dali vai sair um conto. Então, quando ouvi a sexóloga falando, veio a seguinte frase à minha cabeça: “O caminho era comprido que nem só. Mais comprido que o do Mulungu onde a gente ia ver doutor uma vez por ano”. E senti que essa frase tinha futuro. Daí, fiz esse conto. Seu erotismo foi brotando da situação do pai, daquele silêncio dele com a mãe do menino. O pai pede dinheiro à mãe, mas não diz para que é. Diz que é para comprar um remédio para carrapato. Mas não era, era para pagar a prostituta. Fui escrevendo, escrevendo e, de repente, o conto estava pronto. Um desses contos que vêm quase que de uma vez só.
• Meus três leitores
Trabalho e retrabalho meus contos até chegar ao ponto em que ou eu paro ou eu pioro tudo. Tenho três leitores. Um deles é o Paulo Henriques Britto. É ele quem me lê primeiro. É ele quem me diz: “Este aqui vai, este aqui não vai”. Ele é muito leal. E também manda algumas coisas para mim, às vezes, para eu dar os meus pitacos. E olhe lá. Outro leitor é meu filho, André Viana. Ele é jornalista e mora em São Paulo, trabalha no grupo Trip. E tem outra pessoa em Aracaju, uma professora de Teoria Literária em quem confio muito. Esses três têm que me ler antes de eu publicar qualquer coisa. Isso me dá segurança.
• O real (criado pela ficção)
Nunca parto de um fato real. Acho dificílimo. Já tentei e não consigo. Como já falei, o conto nasce do estalo de uma frase na minha cabeça. Às vezes, me contam uma história e dizem: “Isso dá um conto” Eu digo que dá, que realmente dá um conto. E, na hora em que vou passá-lo para o papel, não consigo escrever. Mas é claro que os contos sempre falam do real. De um real criado pela ficção.
• Um ator apaixonado
A questão do feio, do pornográfico, está na cabeça de quem lê e de quem escreve. Se uma personagem exige determinado tratamento, não há porque eu bloquear isso. Se o fizer, vou bloquear a própria construção da personagem. Como tenho um compromisso muito grande com o literário, libero o que tem que ser liberado. Libero um palavrão, se uma personagem é capaz de dizê-lo. Como pessoa, eu não sei falar palavrão, entende? Não consigo. Tanto que o pessoal em Aracaju, cidade pequena, diz que não consegue conciliar o escritor que sou com a minha pessoa. Porque meu livro é uma coisa avassaladora, de pegar o leitor e deixá-lo no chão, muitas vezes perplexo, sofrendo junto com a personagem. E eu sou essa pessoa tímida, incapaz de falar um palavrão, de elevar a voz, de brigar com alguém. Sempre procuro a reconciliação. Mas, para efeitos literários, perco todos os pudores. O que me ajudou foi a psicoterapia. E isso foi muito bom. A psicoterapia também me liberou mais, me ajudou a falar aqui, para vocês. Eu rejeitava mil convites. Eu não saía, não ia a lugar nenhum. Quando fui à Flip, foi um drama na minha cabeça. Chegar lá e enfrentar uma tenda com não sei quantas mil pessoas? Mas me forcei, acabei indo e não achei ruim. A gente vai melhorando nossa performance. Porque o professor tem que ser um artista. Um artista mambembe, de circo. Um ator. Eu tenho me esforçado. A gente só faz realmente direito aquilo que abraça com toda a paixão.
• A chama da literatura
Não há um minuto em que eu deixe de pensar em literatura. Tudo é pensado em função da literatura. Se eu estou aqui, a literatura também está presente, com toda a sua força. Meus alunos até me desconhecem em sala de aula. Eles dizem: “Puxa, na sala de aula você é outra pessoa”. Fora, não sou muito de oba-oba. Mas, na sala de aula, parece que me acende uma luz diferente. Voltando ao princípio da nossa conversa, Daniel Pennac diz o seguinte: “Se você é incapaz de despertar a chama da literatura no leitor, você não é um professor”. Ele conta a história de um professor numa cidadezinha da França. O professor chegava na aula e a primeira coisa que fazia era pegar um livro e ler algo em voz alta. Aquilo ia tomando conta dos alunos. Ele não mandava ler, não dizia “vocês vão ler”. Eu acho que as pessoas têm que ter essa chama. Não para mostrar que a literatura é capaz de mudar o mundo, mas para mostrar que ela é capaz de mudar algumas pessoas. Pessoas que queiram ser mudadas. Acho. Uma vez, escrevi um artigo sobre isso: “A auto-ajuda só ajuda a quem já se ajudou antes”. Você deve estar convencido de que quer ser feliz, lê um livro de auto-ajuda e vê que já era feliz e não sabia.
• Um ponto mínimo
A literatura, a arte em geral, é muito maior que o artista. Você vai ser sempre um ponto mínimo dentro dela e se conformar com isso. Agora é preciso fazer o possível para fazer o melhor. Se você não faz o melhor, tem que procurar talvez um outro caminho, não sei. Mas acho que a literatura salva aqueles que querem ser salvos por ela.
• Crítico da academia
Sou um crítico da academia, realmente. Nos cursos de Letras, parece que a literatura, muitas vezes, só chega até Guimarães Rosa e Clarice Lispector. E a academia devia acompanhar a produção literária do país. Mas só se estuda Graciliano Ramos, Rosa, Clarice. E hoje? Parece que não se produz nada. E se produz muito, temos grandes autores. Quando estava na academia, sempre lutei muito, justamente com essa dicotomia: a realidade literária e o que a academia coloca como programa. Como nunca me conformei com isso, fazia de tudo para dar um curso que chegasse aos autores atuais.
• Matar o ensino
O vestibular limita muito o gosto pela leitura. Pede a leitura de dez livros. O aluno lê aqueles dez — quando lê. Geralmente, lê um resumo. O que é pior ainda. Faz a prova com aquilo, passa e depois abandona completamente a literatura. Minha estratégia de incentivar o gosto pela leitura é aquela de que fala Daniel Pennac. O professor tem que chegar na sala e ler um livro, como faz o José Castello na oficina dele. Ler um livro para todo mundo querer saber como é que termina aquela história. Temos que despertar nos outros a curiosidade pela história, pelo livro. Você vê coisas assim: “Comente o livro, no parágrafo tal…”. Isso é matar o ensino da literatura. É um absurdo. Não é estudar literatura. Literatura é entrar na alma do livro, e não ficar perguntando: “João Cabral usou que rima?”. A rima é uma técnica que o poeta tem que conhecer.
• Adormecer com Machado
Dar Machado de Assis para um menino de 15 anos é querer que ele não goste de literatura, nunca mais. Machado exige maturidade. Você pode dar um conto ou outro de Machado para ele, mas se você der Memórias póstumas, Dom Casmurro ou Memorial de Aires, vai acabar com o seu gosto pela literatura. Como diz Daniel Pennac, o menino vai para o quarto, bota o livro no peito e adormece. Machado de Assis é uma coisa elaborada, como Clarice Lispector. Você não pode dar Água viva para um menino de 14 anos. Talvez a Hora da estrela seja um livro mais acessível — e olhe lá.
• Ler sem medo
Escrevi um livro — espero que ele saia logo — sobre redação e leitura. Sempre faço esta ponte: sem leitura, não há boa redação. No final do livro, sugiro 45 autores imprescindíveis para os alunos de segundo grau. E coloco quem? Sei que muitos professores vão dizer: “Puxa, acho que esse cara não valoriza a literatura brasileira”. Mas acho que os alunos podem ler Kafka e John Fante. Duvido que um menino leia Fante e não goste. Podem ler García Márquez, Crônica de uma morte anunciada. São 45 livros que você pode ler sem medo. Não tem Machado de Assis. Daí, vão dizer: “Você não gosta de Machado de Assis?”. Para aquele momento, não. Gosto das crônicas de Rubem Braga, de Cecília Meireles, do livro O anjo pornográfico, de Ruy Castro sobre Nelson Rodrigues, uma leitura que você não consegue parar.
• Maluco
A formação do professor, esse é o ponto nevrálgico da educação no Brasil. Enquanto ele não for desatado, você pode fazer projetos como aquele do MEC, de se chegar ao Primeiro Mundo em 2022. Eu duvido. É preciso fazer um projeto de reforma. Para que os professores sejam bem formados, para que fujam do cânone. Os professores têm medo disso. Quando falo que um aluno não deve ler Machado de Assis, meus colegas acham que eu estou maluco, que não sou um bom professor.