Ana Maria Machado abriu em março a edição 2007 do projeto Paiol Literário — realizado em parceria entre o Rascunho, Sesi Paraná e Fundação Cultural de Curitiba. A partir de uma pergunta inicial — qual a importância da literatura na vida cotidiana? —, a autora falou de sua paixão pela literatura, dos caminhos para a formação dos leitores, de literatura infantil, entre outros assuntos. Confira alguns momentos do encontro.
• Livros na trouxa
Nos últimos dois anos, fui chamada para fazer palestras em vários lugares diferentes — em universidades, na Câmara Brasileira do Livro, na Bienal de São Paulo —, e o tema era sempre “A importância da literatura”. Nisso, há uma pergunta implícita: será que esse troço ainda vale alguma coisa? Não passa pela cabeça de ninguém chamar alguém para dizer por que é importante respirar, tomar banho ou dormir. […] Mas a importância da literatura na minha vida é total. Eu nem desconfiava disso — de que era a literatura. Para mim, eram histórias. Eram livros. Sempre vivi cercada deles. Não porque minha família possuísse bibliotecas riquíssimas. Nada disso. Mas prezava muito o livro. Meu avô paterno era um imigrante. Veio de Portugal já com alguma idade. O meu bisavô, sogro dele, é que tinha vindo para cá muito pequenininho. Mas meu avô veio já com 20 e poucos anos, formado em Farmácia. E trouxe com ele uma trouxa, na qual vinham dois livros. Livros que eu herdei — um deles, uma gramática latina.
• A questão da valorização
Esse meu avô valorizava muito o livro. Fazia questão de que os seus filhos estudassem. Mas nem sempre isso foi possível. Muito cedo, meu pai teve que parar de estudar para trabalhar. No quarto ano primário, foi trabalhar de frentista num posto de gasolina. Só muito mais tarde, quando conheceu minha mãe, que o convenceu a voltar a estudar, ele fez o supletivo da época. Mesmo assim, só fez um ano e acabou autodidata. Mas sempre procurou ter livros. Ela, por outro lado, era filha de um lavrador que colhia café no norte do Espírito Santo e havia estudado numa escola pública rural. Quando aprendeu tudo o que a escola tinha para lhe ensinar, meu avô materno se mudou para a grande cidade próxima, que era São Mateus. Um lugarzinho pequenininho. De lá, foi para Vitória. Depois estudou. Foi professor de matemática e trigonometria durante 20 anos. Também valorizava muito o livro. Eu tinha, em volta de mim, a questão da valorização do livro.
• Ler histórias
Minha mãe trabalhava na Biblioteca Nacional. […] A gente sempre tinha livro em casa, emprestado ou não. Aprendi a ler sozinha muito cedo, estimulada por esse ambiente. Quando fiz cinco anos, ganhei de presente o Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Foi um encantamento enorme. Li e reli aquele livro. Reli para filho e reli para neto. É um livro que me acompanhou a vida toda, assim como vários outros do Monteiro Lobato. Depois, saí lendo tudo que encontrava pela frente. Para mim, isso era “ler histórias”.
• Mais importante do que eu
Minha mãe teve nove filhos e ficava lendo em casa, enquanto amamentava. Às vezes eu ia falar com ela e ela dizia: “Espera. Me deixa acabar isso aqui antes”. Então devia ser alguma coisa mais importante do que eu, do que os meus irmãos. E eu queria estar naquele mundo também. Eu tinha um exemplo de leitura em casa. Depois, fui estudar Letras. Fui professora de Literatura.
• Seduzir Deus
Palavra é sedução, sempre. Até quando a gente reza está querendo seduzir Deus.
• Um acréscimo
A gente pode ler teatro e ler ensaios, mas as coisas mais imediatas, o romance e a poesia, nos permitem viver outras vidas. Temos muita curiosidade de viver outras vidas, de sair um pouco da nossa. E a gente não pode sair de verdade. Não podemos morar em outra cidade, casar com outras pessoas, ter outras profissões. Mas na literatura vivemos essas experiências, não como uma fuga, mas como um acréscimo. Como possibilidade de entrar na pele de um outro e se sensibilizar. Esse enriquecimento que a literatura traz é imediato. Os estados de alma que a poesia evoca, muito fortes, nos permitem crescer, experimentar outras vivências. Sem elas, ficaríamos mais pobres.
• Erico e o amor duradouro
Há também o encantamento da linguagem. […] Eu devia ter oito anos. Foi no dia da minha primeira comunhão. Ganhei de uma amiga do papai um livro do Erico Verissimo, A vida de Joana D’Arc. Ela achava que vida de santo era um presente bom para quem estava fazendo a primeira comunhão. Aquele era um livrão grande. Eu olhei para ele. Vida de santo? Não quis nem pegar. Num primeiro momento, nem dei importância para o livro. Mas sempre tem uma hora em que você pensa: “O que vou ler hoje?”. Passaram-se dias, meses, semanas. Eu já tinha lido tudo o que tinha na casa. E peguei aquele livro e o folheei. Será? Abri o livro, para ver o que é que tinha ali. E, logo na primeira página, eu leio: “Lá vêm duas pombinhas saltitando pelas pedras da estrada”. Aí, chegava-se mais perto, como o zoom de uma câmera, e o Erico escrevia que não, que não eram duas pombinhas. Eram “os pés descalços da menina Joana”. E eu parei. E disse: “O que é isso? Como alguém faz isso?”. Aquilo era mais que Monteiro Lobato. Era diferente ou era uma outra coisa. Aquilo me pegou. Li aquele livro com fascínio. E depois li Aventuras de Tibicuera, de que não gostei tanto, mas era do mesmo autor. Me apaixonei pelo Erico. Botei os nomes dos personagens dele nos meus filhos. Foi um caso de amor duradouro.
• Paisagem bonita, flor perfumada
Minha sobrinha dizia que queria ir para a piscina, pular do “trampulinho”. Coisas assim parecem Guimarães Rosa. Outra vez, na beira da praia, veio uma onda. E, com os pés enfiados na areia, ela disse: “Quase caí. Parecia uma areia ‘malvadiça’”. Minha filha, num dia de calor como o de hoje, perguntaria assim: “Aqui não tem ‘ar com dicionário’, não?”. Então, ler — sobretudo poesia — desperta na gente essa alta sensibilidade para a linguagem. Isso nos faz bem. É como ver uma paisagem bonita, ir para um lugar onde haja uma flor perfumada.
• Grande contribuição
Eu achava que seria pintora. Me preparei para isso. Mas fui quase expulsa da pintura, eu acho. Eu já estava estudando literatura, já era professora, e continuava pintando. Achava que eu estava fazendo faculdade para poder sobreviver, mas que seria pintora, mesmo. E aí chegou a arte conceitual. Para ela, a etiqueta do quadro era mais importante que o quadro. A entrevista do pintor era mais importante que a sua pintura. E os meus quadros todos tinham o mesmo nome: “Sem título”. […] Fui percebendo que os artistas tinham que explicar muito os seus quadros. Que não havia mais lugar para um quadro que não viesse acompanhado por uma grande entrevista… E eu pensei: “Ah, mas eu posso dar entrevistas maravilhosas. Só que não teriam nada a ver com o quadro. Então vou escrever de uma vez”. Acho que foi isso. Na época, eu já estava exilada em Paris. Tinha participado de uma exposição lá. E estava muito desgarrada da minha luz, das minhas cores. Isso influenciou muito. Tinta, lá, era muito caro. E eu estava numa crise muito grande. Foi quando comecei a escrever ficção para crianças. Eu não era da pintura. Não tinha uma grande contribuição para dar a ela. Essa humildade a gente tem que ter. Mas eu tinha um grande contribuição a dar para a literatura infantil.
• Não sou a Maria Clara
Eu costumo dizer que não escolhi a literatura infantil. Fui escolhida. Só que não fui escolhida por um chamado de Deus, não, mas por 250 mil leitores por semana. No finalzinho de 1968, me procuraram. Eu dava aula de literatura na Federal do Rio de Janeiro. Me telefonaram de São Paulo. A Abril faria uma revista nova, semanal, para crianças. A Recreio. E eles estavam procurando alguém que escrevesse para crianças. Minha primeira reação foi dizer: “Vocês estão me confundindo com a Maria Clara Machado. É ela quem escreve para crianças”. E disseram: “Não, a gente quer exatamente você, a professora de Letras. Queremos autores que nunca tenham escrito para crianças e que não sejam viciados numa linguagem tatibitate”. E eu: “Mas por que vieram a mim?”. Essa conversa toda foi com Sônia Robato [primeira editora da Recreio]. Ela explicou: “A gente andou perguntando em várias faculdades: quais são as aulas que os alunos não gostam de matar?”. Eles partiam do pressuposto de que esses professores sabiam se comunicar com jovens. Eu sabia. Mas os alunos tinham 20 anos e eu, 27! É claro que eu sabia. Eles eram a minha gente.
• Medo da água molhada
Eles me pediram para escrever uma história. Eu a escrevi, do jeito que achava que ela devia ser. E a Sonia a rejeitou. Ainda bem. A história era um horror, toda cheia de intenções. “Não escreve como você acha que deve ser; escreve como você é capaz”, ela disse. “O que será esse conselho?”, fiquei pensando. Naquela época, eu já tinha um filho de um ano, o mais velho, que odiava parar de brincar para ir tomar banho. E, um dia, eu estava naquela de “vamos pro banho, Rodrigo?”. Brincando com ele, eu disse: “Você tem medo da água fria?”. E ele: “Não, tá calor”. Perguntei outra: “Tem medo da água molhada, então?”. Ele deu uma gargalhada. E eu: “Epa. É por aí”. Escrevi a história de um patinho que não queria entrar na água porque achava a água molhada. Chama-se Quenco, o pato. Foi a minha primeira história publicada na Recreio.
• As minhas circunstâncias
Quando as histórias eram minhas ou da Ruth Rocha, a revista vendia cinco vezes mais. Então começaram a alternar: em um número era eu, no outro, a Ruth. Por isso é que eu digo: fui escolhida pelos leitores da revista. Não por acaso. Era aquela coisa do Ortega y Gasset: sou eu mais as minhas circunstâncias. E a circunstância era que se estava discutindo uma nova lei de diretrizes e bases de educação, que entrou em vigor em 1972. Ela recomendava que os professores levassem textos de escritores brasileiros para a sala de aula. E uma recomendação da ditadura era uma ordem. A essa altura, eu já estava no exílio, escrevendo e mandando as minhas histórias para cá. […] Então os professores começaram a comprar a revista e recomendar aos alunos que a comprassem ou copiassem. Não sei bem o que faziam, mas tenho certeza de que isso empurrou muito a gente. Esses números fantásticos de venda em banca tiveram a ver também com uma ressonância da recomendação escolar daquela época. Nos deu um grande empurrão, a toda literatura infantil brasileira.
• Crítica dura
A crítica mais dura que eu recebi foi de um menino de três anos chamado Rodrigo. Meu filho. Escrevi uma história chamada Severino faz chover e a li para ele. Eu sempre fazia isso. Um teste. Ele ouviu e continuou com a sua brincadeira. Não era a reação de alguém que tivesse gostado. E eu perguntei para ele: “Não gostou?”. E ele disse que não. “A história é legal, mas ninguém fala.” E eu: “Como ninguém fala? Olha aqui: ‘Severino perguntou ao pai por que chovia. O pai explicou…’” E ele: “Tá vendo? Ninguém fala”. E eu: “Ah, é assim que você quer? ‘Severino perguntou: — Papai, por que chove? Por que tem chuva? O que é chuva? O papai explicou: — Meu filho, é porque as nuvens…’.” E ele: “Ah, agora sim”. Foi uma crítica dura. Mas exata e precisa. Descobri que as crianças, mesmo muito pequenas, sabem exatamente por que gostam ou não gostam de alguma coisa. Isso quando estão acostumadas a ouvir histórias.
• Um grego, três mil anos atrás
Uma vez, numa escola do México, fui conversar com crianças que tinham lido livros meus. E um menino, de dez anos, muito tímido, índio, bem mexicano, estava querendo falar. Quando a gente estava conversando havia mais de uma hora, e ele estava mais à vontade no grupo, fez suas perguntas. Primeiro: “Quantos anos você tem?”. Na ocasião, eu tinha 57. Respondi. “Você mora no Brasil?” Eu disse que sim. E ele: “E como é que uma senhora brasileira de 57 anos sabe exatamente o que está dentro da cabeça de um menino mexicano de dez?”. Não havia o que dizer. Só podia dizer a ele que houve um grego, que viveu três mil anos atrás, que sabia exatamente o que estava dentro da minha cabeça e da dele também. E esse é o mistério da literatura, mesmo da literatura traduzida. Essa é a importância da literatura.
• Leitura e afetividade
No Brasil, os pais lêem muito pouco. As mães ainda lêem um pouco, mas os pais… […] Quando há um adulto leitor na família — pai, mãe, tio, avô, avó — é muito bom. Porque é uma coisa carregada de afetividade.
• Injustos na educação
Uma vez, em Montevidéu, eu estava lançando Uma vontade louca, uma novela juvenil, cheia de personagens e capítulos, com cento e tantas páginas. Estava num auditório para 200 professores. E o primeiro deles que me fez uma pergunta — depois de eu ter apresentado o livro, falado do que se tratava — queria saber quantos personagens tinha o livro… Se no país mais alfabetizado da América Latina, o Uruguai, um professor vem perguntar quantos personagens um livro tem, as coisas vão muito mal. Mas, no Brasil, a gente não tem muita escolha, não. Estamos entre a primeira e a segunda geração leitora agora. Somos muito injustos, muito desiguais na educação. Até duas gerações atrás, a imensa maioria da população brasileira não era alfabetizada.
• A mídia: um caso perdido
A mídia tem dois soluços anuais. Hic! Abril. Hic! Outubro. Em abril, tem o Dia Internacional do Livro Infantil. Em outubro, o Dia da Criança. Nessas duas ocasiões, publica-se a mesma reportagem. Todo ano. Você pode só trocar o nome dos lançamentos. Eles telefonam e fazem as mesmas perguntas aos mesmos escritores. É um rito sazonal. Perguntam se a televisão atrapalha, se as crianças de hoje estão lendo menos. Aí a gente mostra, com números, que as crianças de hoje lêem muito mais. Lêem mais que os adultos até. E eles não acreditam. Seis meses depois, aquilo se repete outra vez. E os jornalistas não acreditam, não lêem, não vêem o que um livro do Pedro Bandeira ou do João Carlos Marinho pode ter de fascinante. Não lêem, não sabem. Mas quando ouvem falar de Harry Potter se arreganham e dão a ele uma capa colorida. A mídia é um caso perdido.
• Os netos dos acadêmicos
Quando fiz a campanha para a Academia Brasileira de Letras, fui visitar os acadêmicos, para me apresentar e pedir votos. E descobri que eles sabiam muito bem quem eu era. Mas como autora de romances para adultos. Como autora de ensaios. Já tinham ouvido falar que eu escrevia para crianças, mas não tinham noção do que era esse meu escrever. Não tinha noção de quantos livros, de quantos prêmios, nem da densidade do que eu escrevia. Não tinham lido. […] Mas, de repente, começou. Diziam: “Meu neto disse que eu tenho que votar em você. Se eu não votar, ele briga comigo”. E me descobriram como autora infantil. Movidos pela curiosidade, foram ler. E viram que aquilo não estava em choque com a obra que eles admiravam, para a qual já haviam até dado um Prêmio Machado de Assis, votado em assembléia.
• O parceiro certo
Eu tive uma livraria infantil, por 18 anos [a Malasartes]. Eu vendia e recomendava livros. Com freqüência, alguns pais me diziam: “Eu queria tanto que meu filho lesse, mas ele não gosta”. Acho que dizer “não gosto de ler” é o mesmo que dizer “não gosto de namorar”. É só porque aquela pessoa ainda não encontrou o parceiro certo. O livro certo. Esse não está lhe dando prazer? Passa para outro. Porque você vai encontrar um outro. E vai descobrir o barato que é. Mas eu perguntava aos pais como era a tal criança, do que ela gostava. E era infalível: tratava-se de um menino que não gostava de ler nunca. Eu dizia: “Pára de mandar ele ler e ‘esquece’ um livro no banheiro. Primeiro, O menino maluquinho [de Ziraldo]; em seguida, Raul da Ferrugem Azul [da própria Ana Maria Machado]; e depois O gênio do crime [de João Carlos Marinho]. Com algum desses três, ele vai descobrir que adora ler. Não vai conseguir largar o livro, e vamos ter uma criança indo no banheiro toda hora”. Não porque ela esteja com dor de barriga, mas porque quer ler sem que a família saiba. Não quer dar o braço a torcer.
• Dona Benta e o come-come
Monteiro Lobato me marcou para sempre. Com valores, com uma compreensão meio darwinista de como funciona a natureza. A vida é um come-come danado. Enfim, uma compreensão da cadeia alimentar — que a gente vai aprender depois. Das guerras, que são uma estupidez. Essas coisas todas estavam lá. A Dona Benta já dizia. E estão comigo.
• Língua falada brasileira
Minha literatura infantil dialoga com minha literatura adulta o tempo todo. Elas saem de uma mesma raiz. Sou eu. Mas dentro disso que eu sou está minha relação com a língua portuguesa. O que é que eu mais fiz em imprensa? Trabalhei no rádio. Então, há um fascínio pela língua falada do Brasil. Gosto muito de exercitar a possibilidade de uma criação literária mesmo, artística. Usando essa linguagem que é a língua familiar oral brasileira. Ela tem muita flexibilidade em relação aos modelos castiços, portugueses, de norma culta. Ela se permite experimentar o limite. Sem romper com ele, sem nunca fazer aquela coisa errada, que dói no ouvido. Por exemplo, num livro meu, para crianças, o personagem não fala que “eu a vi ontem na rua”. O narrador pode até falar, mas o personagem não diz isso. Mas também não diz “eu vi ela”. Então, como construir essa frase de modo a driblar isso? É só escrever “eu vi fulano”. Ou “eu vi sua irmã”. Ou “eu vi você”, “eu tinha visto”. […] Nossa língua falada, no Brasil, é muito colorida. Ela tem uma ginga, ela se adapta às situações, ela merece um status literário, merece que a gente reconheça isso e a coloque na literatura. O que, aliás, já era um projeto dos modernistas da Semana de Arte Moderna de 22. Mas eles, às vezes, tinham umas bizarrices — como escrever “milhor” com “i”. Depois, autores como Rubem Fonseca, Chico Buarque, Jorge Amado, Erico Verissimo e Fernando Sabino realmente fizeram isso. Isso me fascina muito. É nesse registro que eu gosto de trabalhar.
• Mosqueteiros de moto?
Teoricamente, a internet deveria ter mudado o ritmo da cabeça das crianças. Mas não é o que a gente vê na prática. Duas coisas me espantaram ao longo desses 37 anos em que eu estou escrevendo. A primeira: o que as crianças liam e a maneira como liam antes e lêem agora são coisas muito semelhantes. A segunda: em lugares completamente diferentes do mundo, a reação das crianças a um livro é a mesma. Intrinsecamente, o ser humano é sempre igual. Muda tudo em volta. As circunstâncias, a embalagem. Várias vezes, já se tornou necessário refazer as ilustrações de um livro. Há livros que já estão na quarta ilustração. É preciso modernizar o seu formato, dar uma cara nova a eles. Recentemente, um de meus livros estava chegando a uma terceira edição, dessas de cara nova. E como no livro eu falava que não sei quem tinha um toca-fitas, me perguntaram: “Você não quer trocar por um DVD?”. Eu disse que não. Os Três Mosqueteiros não percorreram a França de moto. Vamos deixá-los a cavalo? Como fui jornalista durante muito tempo, aprendi um pouco das diferenças entre mídia e literatura. Uma delas é esta: a mídia tem um compromisso com o hoje, com o agora. Porque amanhã ela estará velha. A literatura não. Amanhã, estará tão nova quanto hoje. Às vezes até mais nova. É muito mais fácil ler Kafka hoje do que quando ele escreveu seus livros.
• É nóis!
Ouço muito. Sempre gostei de conversar. Tive uma vida muito variada. Isso ajuda muito. Tenho um lado muito cosmopolita. Viajei muito, falo uma porção de línguas, estudei fora. E tenho outro lado absolutamente pé-no-chão, da roça. Eu sempre passava as férias na casa dos meus avós, no Espírito Santo, num lugar que não chegava a ter 200 habitantes. Depois, fiz uma casa lá, onde morei, direto, três anos. […] Todo mês, passo pelo menos cinco dias naquela casa. Tenho isso muito forte em mim. Quando tem a banda de congo, eles me deixam tocar, participar. Só entra nativo na banda. E eu sou considerada nativa. Quando entrei na Academia, deu no Jornal Nacional. Eles me ligaram às dez e meia da noite, da birosca, da vendinha local. E era um porre só, todo mundo festejando. Eles diziam: “Entramos na Academia! É nóis!”. Então essa riqueza que a vida me deu, ter esses dois lados, é muito bom. Ouço não só o malandro carioca. Ouço também o pescador capixaba. Gosto de ouvir. Gosto muito de gente. Uma das coisas que me faz escrever é isso. Gosto de gente. Gosto de ouvir. Gosto de conversar.
• Vestir o pensamento
Aconteceu uma vez de eu chegar num colégio em Belo Horizonte, onde me perguntaram o que eu estava escrevendo naquele momento. Eu falei sobre o projeto e nunca mais consegui retomá-lo. Porque quando você fala sobre algo, dá uma roupa feita de palavras ao seu pensamento. E aí, ele já assumiu aquela roupa. E não veste mais aquela outra, a que vestiria se fosse direto para a página. Então aquilo se gasta. Se desperdiça. Não sei se é assim com todos os escritores.
• Hábito e paixão
Entre as palavras hábito e paixão deve haver alguma coisa. Paixão? Você não transmite. Você sente. E hábito é escovar os dentes, é tomar banho. Na verdade, eu não gosto muito de usar esta expressão: o “hábito de ler”. Prefiro despertar o gosto pela leitura. Acho que é mais por aí. Contagiar com o gosto pela leitura, despertar o prazer dela. E paixão? Não se pode obrigar alguém a se apaixonar ou a se desapaixonar. Isso é de outra esfera. A paixão manda em você, e não você nela.
• Palavras obedientes
Procuro escrever todo dia. Isso não significa que eu aproveite aquilo que escrevo todo dia. Escrever não quer dizer publicar, não quer dizer aproveitar. Quer dizer escrever todo dia. Há os mais variados exercícios. Quando você está sem nenhuma idéia do que fazer, descreva o que está vendo pela janela, ou um sonho que teve, um pedaço de conversa que ouviu no elevador. Elevador é ótimo. As conversas, ali, ficam aos pedaços. Andando no calçadão, outro dia, ouvi uma ótima: “Mas justo no dia do casamento?”. Só ouvi isso. É maravilhoso. Você imagina o que houve antes, o que houve depois. […] Não tenha pressa nenhuma de publicar. […] O importante é escrever. Uma hora amadurece. Posso estar enganada, mas acho que tem muito mais bobagem publicada, do que genialidade não-publicada. O que é bom mesmo acaba saindo. […] Descreva o mal-estar que você sente ao sentar numa cadeira que não é agradável. Descreva pequenas coisas. Descreva a delícia que é sentir um perfume bom. O cheiro de um sabonete gostoso. O que caracteriza a sua cidade. Escreva sobre aquilo de que você sentiria mais saudade se estivesse longe daqui. Faça exercícios. Treine. Eu sou casada com um músico. Sei que se ele não tocar a escala todo dia, quando ele chegar ao palco, seus dedos não vão obedecer. E as palavras têm que nos obedecer. Quando você precisar delas, elas têm que vir.
• Espelhos
A ilustração brasileira se desenvolveu muito. O design gráfico brasileiro se desenvolveu mais ainda. Os livros brasileiros estão muito bonitos. Mas tive uma grande surpresa quando comecei a lançar livros no exterior. Descobri que a ilustração não é uma linguagem universal — como a gente e sobretudo os ilustradores pensam. É muito difícil conseguir que um livro seja publicado no exterior com a sua ilustração original. Não pela sua qualidade, mas pelo tipo de informação que a ilustração passa para as crianças de lugares diferentes. É fácil de entender. […] Uma boa ilustração é um pouco como um espelho. E nem sempre esse espelho viaja bem.
• Porque existe Hemingway
Acredito em jornalismo literário, é claro, porque existe Hemingway. Mas o próprio Hemingway disse — e isso, para mim, é definitivo — que o jornalismo nunca fez mal a um escritor. Desde que largado a tempo.
• Imaginário empobrecido
Quando li O vermelho e o negro pela primeira vez, imaginei como aquilo tudo seria. Quando o li pela segunda vez, eu já tinha visto o filme. E o Julien Sorel já era o [ator] Gérard Philipe. Então, nenhuma criança lê Harry Potter sem imaginar a cara do ator que o interpreta no cinema. Talvez no primeiro livro da série ela o tenha imaginado diferente. Isso é algo que empobrece.
• Crise de excesso
Em toda parte, as livrarias estão mudando. Algumas estão encontrando nichos, se especializando. Mas, de qualquer modo, a produção hoje é tão grande que não dá para um livreiro ter um estoque de tudo. A livraria começa a funcionar como um show room. Você pergunta pelo livro, eles não têm. Mas encomendam. É assim. Aonde isso vai parar, eu não sei. Agora, isso é uma situação dos livros, não da literatura. A literatura já existiu em suportes diferentes. Já foi cantada com liras e alaúdes, já esteve em papiros e pergaminhos. Enfim, a literatura continua. Quem sente falta dela vai atrás dela. Entra na internet, encomenda pela Amazon. Hoje, temos mais possibilidade de acesso aos livros do que antes. Tenho uma amiga que mora no Alto Solimões. E está sempre atualizada. Tem computador, entra na internet e compra livros que chegam até ela. Quem quer não usa isso como pretexto. Acaba descobrindo os livros. Não dá mais para a mídia acompanhar tudo o que sai, é verdade. Há muitos livros. Um excesso. A crise é uma crise de excesso. A economia livreira ficou muito próxima do ritmo das bancas de jornal. Algumas revistas duram uma semana; outras, um mês. Os livros estão durando dois. Mas isso não é só aqui. Acontece também nos países desenvolvidos.
• Garfo e faca
Quem lê muito escreve direito. Acho que se as crianças lerem mais, vão escrever melhor. Podem estar escrevendo mal na internet — “vc” em vez de “você”. Podem estar abreviando as palavras, naquele jargão, naquele código. Se ficarem escrevendo só na internet, é complicado, sei que é um problema. […] Mas não sou muito apocalíptica. Acredito na literatura. Sem ela, não vai dar. A gente come de garfo e faca porque viu pai e mãe comendo de garfo e faca. Criança lê porque vê adulto lendo. Se nunca vir, corre o risco de se repetir um fenômeno que acontece no Brasil. As pessoas lêem muito quando crianças; mas, quando adolescentes, deixam os livros para trás, junto com os brinquedos. Deixam essa fase para trás. Uma tristeza.
• Criança não é escritor
Criança não deve publicar. Para publicar, ela tem que estar sujeita à crítica. Dar a cara a tapa. E é um crime bater em criança. Metaforicamente. Quer dizer, uma criança publicar um livro e alguém levá-lo a sério e dizer que ele não vale nada é um horror para a criança. E vai fazer o quê? Paternalizar e dizer “que bonitinho”? Para ela pensar que aquilo vale alguma coisa, quando não vale? Criança não é escritor. Criança brinca. Tem que brincar. Que escreva bilhetinho, trabalho de colégio. Que faça um diário. Não tem que publicar. Já tem coisa demais publicada. Só temos que publicar o que for fazer diferença para os outros. E eu nunca vi uma criança gostar do texto de outra criança. São aqueles textos que a gente acha que estão uma gracinha, que ganharam nota dez do professor, que o vovozinho achou geniais. Você dá aquilo para outra criança ler e ela acha chato. Porque falta uma transcendência. Um artifício. Falta a arte. Não tem que ser “mais um livro para crianças”. Tem que ser mais uma obra literária. E criança não tem como fazer isso.