Adriana Lisboa

“É uma coisa um pouco esquizofrênica: você é você mesmo, não há como ser diferente, mas, sendo você mesmo, você procura ser, ver e escrever a partir da experiência do outro.”
Christian Schwartz e Adriana Lisboa. Foto: Matheus Dias
01/11/2010

Edição: Luís Henrique Pellanda

No dia 29 de setembro, o Paiol Literário — projeto promovido pelo jornal Rascunho em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba e o Sesi Paraná — recebeu a escritora Adriana Lisboa. Autora de livros como Os fios da memória, Rakushisha, Um beijo de colombina, Sinfonia em branco e o recém-lançado Azul-corvo, entre outros, Adriana nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1970, mas atualmente mora nos Estados Unidos. Tradutora de escritores como Robert Louis Stevenson, Cormac McCarthy e Marilynne Robinson, seu trabalho já foi publicado na França, na Itália, no México, nos Estados Unidos, na Suíça e na Suécia. Na conversa que teve com o jornalista Christian Schwartz, no Teatro Paiol, em Curitiba, Adriana Lisboa falou sobre a construção de sua obra, seu processo criativo, sua admiração pela poesia contemporânea brasileira, a influência da música em sua escrita, a importância da literatura na vida cotidiana e vice-versa. Leia abaixo os melhores momentos do bate-papo.

• Vida insuficiente
Lembro de um pequeno trecho de Fernando Pessoa que sempre gosto de citar: ele diz que toda arte é a confissão de que a vida não basta. Acho que a literatura, enquanto expressão artística, não deixa de ser isso, uma espécie de busca por algo mais, esse reconhecimento de que nossa vida cotidiana não é suficiente. E não é mesmo. A gente precisa transitar, residir um pouco em lugares que são da ordem da imaginação, da fantasia, da poesia. E a literatura entra em nossa vida cotidiana — tanto na vida de quem a faz como na vida de quem a lê — dessa maneira. É a busca por uma espécie de espaço alternativo à vida, algo que nos ofereça outras visões, outras janelas, opções distintas daquilo que a gente experimenta em nossa vida prática. É uma espécie de folga da vida, mas não é uma folga fácil. A boa literatura faz a gente pensar muito, e nem sempre isso é uma coisa tranqüila e prazerosa, no sentido “férias”. Nem sempre é um relaxamento. Muitas vezes é algo que nos mobiliza.

• Cotidiano japonês
A vida cotidiana sempre entra em minha literatura. A gente não tem outra matéria que não seja ela — e aqueles autores que se dedicam à ficção histórica também não têm, mesmo imersos em pesquisas sobre coisas que aconteceram séculos atrás. Porque, se eu quiser escrever um romance ambientado no século 15, vai ser sobre um século 15 que entendo a partir da minha experiência da vida cotidiana. E, no meu caso específico, a vida cotidiana tem, também em termos de temática, uma presença muito grande. Para mim, é muito importante aquilo que vejo. Tenho muita dificuldade para escrever sobre o que não vejo, e por isso, por exemplo, jamais poderia escrever romances históricos. Quando me propus, há alguns anos, escrever um livro que transitava pela obra de um poeta japonês (Bashô, em Rakushisha), isso ficou muito claro. Nunca tinha ido ao Japão, e achei que seria muito difícil fazer um romance com passagens naquele país sem ter colocado os pés por lá, sem tê-lo visto com meus próprios olhos, sem ter vivido a experiência direta do Japão em minha vida cotidiana. Então consegui uma viagem através da Fundação Japão, que me concedeu uma bolsa. Pude ficar lá um mês. Já vinha escrevendo o livro havia pelo menos uns três anos, mas, depois daquele mês, ele mudou completamente, e o reescrevi em seis meses, a partir daquilo que tinha visto e vivido.

• Um pouco esquizofrênica
Não gosto de escrever sobre mim mesma, não me considero um bom tema. Acho que o grande barato, o que existe de mais interessante na escrita de ficção, é você poder transitar por outros mundos, universos que não os seus, e imaginar como seria a cabeça de um senhor de 60 anos — como fiz nesse último romance (Azul-corvo) — ou de um menino de nove, imigrante ilegal nos Estados Unidos. O que essas pessoas sentem, como reagem diante de determinadas circunstâncias? Então, essa tentativa de vestir um pouco a pele do outro, de entrar na vida e no olhar do outro, é o que existe de mais interessante na escrita de ficção. Mas isso, necessariamente, vai passar por minha própria mediação. É uma coisa um pouco esquizofrênica: você é você mesmo, não há como ser diferente, mas, sendo você mesmo, você procura ser, ver e escrever a partir da experiência do outro.

• Solitárias
Fui uma adolescente extremamente solitária e introspectiva durante muito tempo, mas acho que a solidão e a introspecção da minha personagem Vanja (de Azul-corvo) têm outros motivos. Ela é uma pessoa realmente sozinha, perde a mãe muito cedo, com 12 anos, e não conhece o pai. Decide procurá-lo depois que a mãe morre, mas a única coisa que sabe sobre ele é que é americano e provavelmente se encontra em algum lugar dos Estados Unidos. Vanja vai para lá, em busca desse pai. É uma pessoa solitária, sozinha, e perto dela, no mundo, há muito poucas pessoas, mas talvez por conta disso tenha desenvolvido certa resistência. É como se ela se vacinasse. É uma pessoa dramática com relação à própria vida, mas suas memórias não são tristonhas, pesadas, lacrimosas. Pelo contrário, acho até que a Vanja é uma personagem irônica e um pouco agressiva, que encara o mundo de queixo levantado. Fui uma adolescente de 13 anos bastante diferente. Eu não era uma pessoa solitária nesse sentido, mas uma pessoa solitária por opção. Gostava muito de música e literatura, duas coisas que estudei formalmente. A memória que tenho de minha adolescência é esta: tardes e mais tardes escutando música e lendo, tentando ler letras de música e entender o inglês através dessas letras.

• Os caminhos se bifurcam
Em geral, há um grande tema sobre o qual quero falar. Em Azul-corvo, por incrível que pareça, o grande tema era a amizade. Eu queria falar sobre a amizade entre pessoas que não seriam amigos óbvios: uma menina de 13, um sujeito de quase 60 e um menino de nove. Como essa trinca de amigos improváveis lidaria com seus afetos? Como se encontrariam nessa posição de amigos? Então, normalmente parto de um tema e esse tema vai apontando para os personagens. Em geral, sei de onde saio e aonde quero chegar, mas esse miolo se modifica bastante enquanto vou escrevendo. Muitas vezes, personagens secundários aparecem e ganham importância dentro do livro, enquanto outros, que eu havia idealizado, somem. Os caminhos se bifurcam. Muitas vezes nem chego ao final que pretendia originalmente. Mas nunca fui de fazer esquema, de anotar.

• Paisagem física
Me mudei para os Estados Unidos quatro anos atrás, mas não para escrever um livro. Minha ida ao Japão foi o contrário, foi motivada pela escrita de um romance. Mas moro numa região dos Estados Unidos que, para mim, foi uma novidade absoluta. Por acaso, fui parar no Colorado, no oeste do país, um estado que tem uma paisagem física completamente diferente de tudo que eu conhecia, que tem três, quatro meses de neve durante o ano, mas é semiárido. De um lado, você tem uma planície quase deserta e, de outro, as Montanhas Rochosas, imensas. Nada daquilo fazia parte da minha memória visual. Fiquei fascinada e com muita vontade de escrever sobre aquele lugar, de criar uma história que fosse ambientada naquela paisagem física. Surgiram, então, as personagens de Azul-corvo e a idéia da amizade, que mencionei anteriormente.

Adriana Lisboa. Foto: Matheus Dias

• Dor de cabeça
Para mim, é difícil fazer romance histórico, e foi difícil fazer a pesquisa da guerrilha do Araguaia (para o Azul-corvo). Me senti na obrigação de respeitar coisas que talvez preferisse inventar. E a maior dor de cabeça que meu primeiro romance, Os fios da memória, me deu foi essa. Resolvi contar a história de uma família que vinha desde o início do século 19 até os dias atuais e, aí, tive que ir atrás de muitos dados históricos específicos. Que roupa as pessoas usavam? Que comida comiam? Como era o Rio daquela época? Não foi uma coisa que eu tenha gostado muito de fazer, mas me propus fazê-la, como fiz com a guerrilha em Azul-corvo. Só que a experiência de Os fios da memória foi bastante diferente, porque o livro passa por mudanças sociais, e me vi com a tarefa auto-imposta de ir acompanhando o desenrolar e os desdobramentos dos fatos e espaços políticos do Brasil e tudo mais, as coisas mais importantes da história do país nos últimos cem anos. Algo que, hoje, acho extremamente ambicioso.

• A família
Certos temas sobre os quais escrevemos talvez nos escolham mais que nós a eles. Não sei até que ponto me interessa falar sobre a família. Não me interessa falar necessariamente sobre o amor ou a morte, não são temas que conscientemente me interessem a ponto de me mobilizar. Mas acabam aparecendo. Não sei se é por questões pessoais, ou por minha experiência pessoal, ou porque acho que as relações familiares são, na maioria dos casos, muito complicadas e determinantes daquilo que as pessoas serão no futuro e daquilo que os personagens serão nos livros, mas a família acaba aparecendo neles, de algum modo.

• A filha chorando
Azul-corvo tem uma passagem que me foi contada por uma amiga, textualmente. Pedi a ela que me escrevesse o nome da música que sua mãe cantava para ela quando criança, uma música sobre um carneirinho. Todas as vezes em que a ouvia, ela chorava e chorava, e a mãe dela, sabendo disso, a exibia em frente às visitas, cantando a música para que ela chorasse. As visitas chegavam e ela dizia: “Querem ver minha filha chorar?”. Então ela botava a menina ao seu lado e cantava. Essa minha amiga já deve ter seus 50 anos, e até hoje chora ao cantar a tal música. Quando ela me contou essa história, eu a achei tão fascinante, tão incrível, que está ipsis litteris, com todas as letras — e a letra da música, inclusive —, no livro.

• A ordem do prosaico
Não basta ter o mapa de uma cidade e o nome de suas ruas para dizer que um personagem caminhou até a esquina da rua tal com a tal e virou à direita. Isso é algo que você pode fazer em qualquer lugar e em quase qualquer época, desde que tenha esses dados. Para mim, é importante pensar em quem esse personagem esbarrou ao virar aquela esquina, ou no sinal de trânsito que viu ali, ou no que estava escrito no muro. Para isso, é importante ter a experiência dos lugares. Aquilo que mais me motiva a escrever são sempre esses pequenos detalhes e, por causa disso, me interessou também escrever um livro a partir da obra do Manuel Bandeira (Um beijo de colombina), um poeta que dedicou o olhar às coisas da ordem do prosaico, do cotidiano, do pequeno, e não da ordem das grandes estruturas.

• Filigrana
Adoro ler poesia, sempre gostei. E, quando me deparo com aquela pergunta — “quais são as suas influências?” —, muitas vezes acontece de eu citar mais autores de poesia que de prosa. Isso vem desde muito cedo, desde criança eu gostava de ler poesia. As primeiras coisas que escrevi na vida foram poemas, lá na infância. Essa leitura me acompanhou desde sempre, e acho que, em meus livros, isso aparece no nível do tema — quando me dá vontade de fazer algo com a obra de um poeta, como em Um beijo de colombina —, mas de outro modo também. Nunca publiquei poesia, mas quando escrevo percebo o quanto é importante para um poeta usar esta palavra e não aquela, cortar o verso aqui e não depois. E, às vezes, isso é um problemão. Você coloca uma vírgula aqui, ou será que coloca um ponto? Porque isso muda completamente um poema. A poesia trabalha nesse nível de filigrana, nesse nível bem pequeno do texto. Tenho uma relação com a prosa que, obviamente, não é tão obsessiva assim, mas que é também um olhar bem detalhado. Para mim, o som de determinadas palavras é importante. Como elas vão soar dentro da frase? A pontuação, o ritmo da narrativa, é outra coisa importante. Consciente ou inconscientemente, isso tudo talvez me venha da poesia.

• A experiência da experiência do outro
Não sou homem, é claro. Então, para escrever do ponto de vista de um homem, é preciso um distanciamento um pouco maior da minha própria vida, da minha própria experiência. Mas também não sou japonesa, e nem sou um menino salvadorenho. Acho que precisamos desse exercício de sair do nosso próprio universo e buscar a experiência da experiência do outro, por assim dizer. Acho muito cômodo falar sobre si mesmo, escrever literalmente do meu próprio ponto de vista. Ou escrever, por exemplo, sobre a experiência de uma imigrante brasileira da minha idade nos Estados Unidos, alguém que escreve e tem um filho com a idade do meu filho. Acho isso tudo muito narcísico, muito autocentrado. Essa busca do narrador fora de mim é importante. Venho, cada vez mais — e não defendo isso como estratégia literária —, gostando de narrar meus livros na primeira pessoa. Já tive duas experiências nesse sentido e acho que a próxima, provavelmente, também será assim.

• O narrador
O narrador é sempre quem manda na narrativa. É difícil a gente falar de um livro sem falar, antes de qualquer coisa, sobre o seu narrador. O narrador é muito mais relevante que o enredo. Porque você pode ter uma história interessantíssima, mas, se ela tiver um mau narrador, deixa de ser interessantíssima. Uma história sensacional, mal narrada, deixa de ser sensacional.

• Os dois lados da humildade
Não vejo problema nenhum em jogar fora o que escrevo. O Moacyr Scliar sempre diz que escrever é reescrever, mais do que qualquer outra coisa. Mais importante que o momento da criação, em que você está ali e vai começar do nada, é olhar depois para aquilo que já está feito e ser capaz de refazê-lo. Nesse ser capaz de refazer, é preciso uma dose muito grande de humildade, para saber jogar fora aquilo que merece ser jogado fora, mas também é preciso respeito por si mesmo, para não querer jogar tudo fora. Porque, às vezes, a gente relê o que escreveu e fala: “Está tudo uma droga. Vou selecionar o texto todo e apagá-lo”. Acho que a humildade tem dois lados: a humildade de saber conservar e a de saber apagar.

• O horário escolar
A Clarice Lispector falou que, quando a gente é mãe, acabam-se as portas fechadas. Passei por isso. Meu primeiro livro, Os fios da memória, foi lançado um ano depois do nascimento do meu filho. Ele fez 12 anos agora, e o livro foi lançado há 11. Eu o escrevi enquanto meu filho ainda estava para nascer e, depois, com ele já recém-nascido. Então, para mim, a experiência de escrever e a experiência de ser mãe sempre estiveram muito próximas. Os horários do meu filho determinaram os meus horários. Eu não podia ser uma escritora que trabalhasse até as quatro da manhã, porque às seis ele acordava. Hoje ele já está grande, é superindependente, autônomo para uma série de coisas. Mas a gente sabe — é até um clichê, mas um clichê verdadeiro: um escritor precisa de silêncio e solidão, das coisas quietas em torno de si para ter a tranqüilidade de pensar. Então, os momentos que tenho para escrever são aqueles em que todos em casa estão fazendo as suas atividades. Os momentos ativos do meu filho e dos filhos do meu marido são os momentos em que paro para escrever durante o dia. O horário escolar.

• Romances na academia
Minha passagem pela academia foi só esta: ter feito um curso de mestrado e doutorado. Nunca dei aula, nunca tive nenhuma ambição acadêmica. Venho de uma família de músicos amadores, meus pais faziam seresta, e sempre escutei música popular dentro de casa. E aí quis estudar música na faculdade. Mas não era uma coisa cem por cento sincera, era algo meio falso da minha parte. Como eu sempre escrevi, desde criança, houve um momento em que falei: “Não estou mais a fim de fazer esse negócio de música”. Queria escrever, mas, para isso, tinha que ser escritora, e escritores publicam livros. Então escrevi meu primeiro romance e o publiquei. Só que me senti um pouco estranha naquele ambiente literário, não conhecia absolutamente ninguém, não tinha nenhum amigo escritor ou em alguma área correlata. Por isso, meu mestrado em literatura brasileira teve só este objetivo: poder conversar com outras pessoas que estudassem aquilo. Na UERJ, havia gente que escrevia e publicava, tanto alunos quanto professores, havia poetas e ficcionistas. E tanto a minha dissertação de mestrado quanto a minha tese de doutorado não foram trabalhos acadêmicos, foram trabalhos de ficção. A primeira foi Um beijo de colombina, sobre a poesia de Manuel Bandeira; a segunda, Rakushisha, sobre a poesia de Bashô. Foram teses acadêmicas que apresentei como romances.

Adriana Lisboa. Foto: Matheus Dias

• O tradutor fiel
Muitos escritores têm atividades paralelas, pois precisam pagar as contas. Viver de direitos autorais, quando acontece, demora décadas. Assim, a tradução, para mim, foi uma forma de ganhar a vida com a literatura — mas, não necessariamente com a minha. Uma coisa que acho bacana em relação à tradução é me ver obrigada a lidar com estilos completamente diferentes do meu, e a respeitar esses estilos. Um bom tradutor precisa ser extremamente fiel àquilo que está traduzindo. Nem sempre gosto do que traduzo, mas meu eu escritor não pode querer chegar ali e dizer: “Isso eu faria diferente”. Faria, mas não fui eu que fiz. Então, a tradução não deixa de ser um exercício de humildade também.

• Primeiro namorado, primeiro Machado
Eu tinha as minhas leituras de infância, os autores que eu adorava, como a Lygia Bojunga, mas minha primeira experiência com a literatura para adultos — com todas as aspas aí — se deu aos 14 anos, quando ganhei de presente do meu primeiro namorado o Memórias póstumas de Brás Cubas, do Machado de Assis. Foi como se todo um universo se abrisse à minha frente. Com as minhas leituras até então, eu não sabia que aquilo era possível, não sabia que as pessoas faziam aquilo. Fiquei bastante impressionada. Depois, tive outras leituras marcantes. Alguns livros, quando os releio, continuam marcantes. Mas há outros que não posso reler, para não desfazer a boa impressão que tenho deles.

• Valiosos
Eu devia ter uns 18 anos quando fui a uma feira do livro, no centro do Rio, e vi o Memorial do convento, do José Saramago. Eu já tinha ouvido falar dele, e me ocorreu: “Eu podia ler esse Saramago, um escritor famoso”. Levei o livro para casa, comecei a lê-lo e achei aquilo difícil, impossível de ler. Li umas quatro páginas e larguei. De vez em quando eu o pegava de novo, até que venci a tensão superficial daquele texto tão específico e fiquei absolutamente fascinada. Reli várias vezes aquele livro e, dali, passei à obra do Saramago. Aconteceu uma coisa parecida com o Guimarães Rosa. Comecei Grande sertão: veredas e falei: “Não vou conseguir ler isso nunca”. Mas quando você aprende o idioma do livro e o deixa acontecer, aquela se torna uma experiência valiosa para o resto da sua vida. Então, esses autores foram particularmente importantes para mim. E também Gabriel García Márquez, embora eu não o releia, pois gosto da memória do que foi Cem anos de solidão na minha adolescência.

• Poetas daqui e de agora
Gosto muito da poesia brasileira contemporânea. O Carlito Azevedo é um poeta que sempre me acompanha, que leio e releio muito. Paulo Henriques Britto, Claudia Roquette-Pinto, Eucanaã Ferraz. É possível que eu esteja esquecendo alguém, mas esses são poetas cuja obra gosto de acompanhar. Venho ao Brasil e sempre quero saber o que eles lançaram. Ler o último livro do Carlito, Monodrama, foi uma experiência inesquecível.

• Os prosadores
O Marcelo Moutinho é um cara de que gosto muito, um contista que vem escrevendo bastante sobre a cidade do Rio e a cultura carioca. No ano passado, a Claudia Lage, que é colunista do Rascunho, lançou um livro (Mundos de Eufrásia) sobre a (investidora financeira) Eufrásia Teixeira Leite (1850-1930), um romance histórico que ela levou sete anos para escrever e me encantou. E talvez um dos meus autores preferidos seja o Luiz Ruffato, que é um cara preciso no que faz, um cara que tem o seu projeto literário, um cara que tem absoluta consciência daquilo que está fazendo.

• Sofrimento ou prazer
Para mim, nunca foi muito convincente essa associação entre literatura e sofrimento. Não somos obrigados a escrever, e nem podemos dizer que o fazemos pelo dinheiro, como diria alguém num emprego bem-pago. É claro que há dificuldades, mas como em qualquer atividade humana. Imagino um atleta, um maratonista. Há momentos em que ele vai correr com o joelho machucado, e vai chorar de dor. Mas se não houvesse um grau maior de satisfação e prazer por trás disso, algo que justificasse esses momentos dolorosos, esses momentos em que a gente acha que chegou a uma encruzilhada e não vai conseguir passar dali, ele não o faria. E a gente não escreveria. Não acredito na literatura como um mau carma — “sofro horrivelmente, sou profundamente infeliz como escritora”. Não, eu sou profundamente feliz como escritora. Tenho muitos momentos de muita dificuldade, de muita desesperança, momentos em que falo: “Não vou escrever mais nada, nunca mais”. Mas, 24 horas depois, já estou sentada, escrevendo de novo, porque é isso que a gente é. E nem sempre dá para negar essas coisas.

• A ameaça da vaidade
Depois que seu livro sai, você fala: “Nossa, por que publiquei isso?”. Alguém fala mal do que você escreveu e você pensa: “Ele tem toda a razão”. Mas daí outro alguém fala bem daquilo. E você precisa ter muito cuidado para não se deixar levar por todas essas forças. O escritor, como todo artista, lida com o público, e o público sempre traz a ameaça da vaidade. Lógico, o escritor não está escrevendo para si mesmo. Se ele está publicando, está publicando para chegar a um público. É bom ter isso em mente: o que importa é esse trânsito, essa comunicação com o público, mas de modo algum podemos deixar que isso se reverta num estrelismo. O autor não pode ser mais importante do que aquilo que faz. E isso é um risco constante que se corre, para um lado e para o outro. Há autores premiados e elogiados que, de repente, adquirem uma postura absolutamente presunçosa, arrogante, prepotente. Há outros que, porque tiveram uma recepção negativa ou mesmo inexistente, ficam mal e passam a questionar a validade de escrever. Todas essas coisas acontecem ao mesmo tempo, e a gente precisa navegar apesar delas, a despeito delas.

• Um ouvido atrás
O ouvido de alguém que estudou música, ou que trabalhou com música, é um ouvido preocupado com consonâncias, dissonâncias, ritmos, pausas, silêncios e outras coisas dessa natureza. Muitas vezes, eu as vejo quando releio o que escrevo. Sei que há um ouvido ali atrás. É o ouvido da ex-musicista que sou, norteando certas coisas.

• Quase zero quilômetro
É claro que há cuidados específicos para quando se vai escrever para crianças. Você tem limites de vocabulário, de temática, de espaço, de uma porção de coisas. Mas a gente vê muito livro ideológico para o público infantil, muito livro que quer vender uma idéia, “isso está certo, isso está errado”. E literatura não é para isso. As crianças têm uma cabeça completamente aberta, quase zero quilômetro. E a única coisa interessante que a literatura pode oferecer a elas é agitar essa criatividade, fazê-las imaginar outros mundos, outras realidades. Então se você já vem com uma idéia pronta, querendo transmitir uma moral da história, um tema específico, acho isso extremamente nocivo. Isso faz mal para as crianças. Sei porque, na época em que eu lia para o meu filho, vi n livros assim, de ficar indignada e querer jogá-los pela janela.

Adriana Lisboa. Foto: Matheus Dias

• Essa língua sou eu
É difícil falar da língua portuguesa como alguém de fora. Se a língua portuguesa tem uma sonoridade particularmente bonita? É a língua em que sempre escrevi. Para mim, escrever significa escrever em português, embora ache que a experiência de morar fora muitas vezes nos crie problemas. A gente comete certos erros, começam a surgir estrangeirismos no que a gente escreve. Lembramos de determinado termo em outra língua, o traduzimos e traduzimos errado. Lembro do Cortázar, que morou em Paris durante umas quatro décadas e, apesar de uma e outra aventura em francês, o texto dele sempre saiu em espanhol. Então, o português está tão próximo de mim, me sinto tão identificada com essa língua, que é difícil saber se sua sonoridade é feia ou bonita, ou como ela é para os outros. Porque, para mim, essa língua sou eu.

LEIA RESENHA DE AZUL-CORVO

Paiol Literário

O projeto Paiol Literário, realizado pelo Rascunho desde 2006 em Curitiba, já contou com a participação de mais de 70 autores brasileiros. É um grande acervo sobre a literatura brasileira contemporânea. Os encontros são iniciados sempre com a pergunta: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”.

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