Andréa del Fuego entra na sala e senta-se na cadeira à minha frente. Os olhos fechados por trás dos óculos. Leio a ficha: “Andréa Fátima dos Santos”. Seu nome não é Andréa del Fuego, claro. Tiro uma miniatura da gaveta e aponto para a cara dela. A expressão estaria plácida, uma Gioconda fora do Louvre, não fosse o biquinho contraído. Noto que ela está reagindo.
(– Andréa, o que tanto o seu globo ocular está dançando atrás da pálpebra, hã?)
Estou na Padaria Real, perto da minha casa. O rapaz que vem me entrevistar é um fofo, mas está atrasado. Deixei o Francisco em casa com o pai e estou preocupada porque logo ele vai querer mamar. Tiro o baralho da bolsa enquanto o rapaz não chega. Estou me familiarizando com as cartas por causa do meu novo romance, As miniaturas. Não entendo bulhufas, mas sei embaralhar como ninguém. As pessoas da padaria se aproximam pra ver os meus truques com as mãos. O atrasado chega com sua cara fofa. Dou o último gole no milk shake, o canudo ronca, rrrr, pergunto pra ele: o que você sonhou ontem, meu anjo?*
(— Ótimo, pode acordar, Andréa. Parece que está funcionando direitinho. Agora trate de jogar uma água no rosto e troque de lugar comigo, por favor. Assim que eu cochilar, a gente começa. Na dúvida, guarde o biquinho.)
Fábrica de sonhos
As miniaturas começa no Edifício Midoro Filho, no centro da cidade. É dentro desse obelisco espelhado que os oneiros orientam os sonhos das pessoas, que já não conseguem sonhar sozinhas. Os médicos aconselham a prática uma vez por semana, no mínimo. E na medida em que cada sonhante entra na saleta e senta na cadeira — olhos fechados, placidez, biquinho a depender do paciente —, o oneiro então retira uma miniatura da gaveta, aponta para o sujeito e sugere uma frase-chave. Com o auxílio do instrutor, os sonhos vão sendo construídos na cabeça do paciente, que no auge das ações internas chega a dar cambalhotas com o globo ocular, por debaixo da pálpebra. Ao final, os dados coletados com cada mini-objeto são catalogados na biblioteca do edifício, novas miniaturas são produzidas e o aparato de dirigir sonhos fica mais completo.
(— Não estou vendo nada, Andréa. Você ainda está por aí?)
Do lado de fora, os sonhantes não se lembram de haver entrado pela recepção na noite anterior, tomado o elevador e passado às salas de atendimento. Durante o dia eles seguem normalmente suas vidas pela cidade. Quem está do lado de fora não consegue ver o edifício onde acontece a montagem dos sonhos. Da mesma forma, os oneiros têm apenas uma vista modesta da Praça da Sé da sua saleta. No entanto, por uma falha no sistema de triagem, mãe e filho são colocados na agenda de um mesmo oneiro, nosso oneiro-narrador. Ele não só se apega aos familiares, como fica tentado a uma experiência maior, uma fresta mais ampla, que jamais veria da sua janela nem viveria com sonhantes individuais: “Penso neles o tempo todo, confesso que fecho os olhos e ignoro quem está na sala, menos os dois. Sendo um a continuação do outro, tenho a mesma pessoa em desejos distintos. A mesma pessoa em dois territórios, um na juventude e a outra com medo da velhice”, confessa ao leitor.
(— Olhe, não tenho problemas com a escuridão, Andréa, mas preciso do seu comando de voz.)
Deste funcionário, de quem se esperava a mesma eficiência de Bartleby, o leitor ouve as frustração de um artesão fadado a um plano de carreira: “Essa é uma característica do Edifício Midoro Filho, vagabundo senta na minha frente com aquela cara de morto, se diverte com a minha criatividade e disso nem se lembra”. Cansado de operar com sonhos burocratizados, ele burla as regras do manual do oneiro para se dedicar aos pacientes da mesma árvore genealógica. Maria Aparecida, a mãe, é taxista e faz as corridas sozinha desde que foi abandonada pelo marido. E junto dela vive o filho, Gilsinho, a quem paga o curso técnico de publicidade e acaba de arranjar serviço de frentista no Posto Jacaré, onde o padrasto é gerente. Do lado de dentro, o oneiro consegue relatar ao leitor apenas o que vê nas sessões oníricas, enquanto os pacientes estão apagados. Já do lado de fora, mãe e filho narram a outra parte da história, à qual o manejador de sonhos não tem acesso.
(— Seja lá onde você estiver, Andréa, eu mesmo vou usar as palavras-chave daqui pra frente, ouviu?)
Vertigem
Fosse escolher uma miniatura para o romance, ela seria um pequeno carrossel. Cada capítulo está fincado no seu lastro, como um cavalinho lustroso. A narrativa se mostra em círculo, em torno do próprio eixo. Um após o outro, vem o Oneiro, vem a Mãe, vem o Filho. Ainda que a grande roda narrativa continue a girar, as versões de cada personagem estão presas ao pino metálico. O relato de cada um deles se movimenta noutro sentido, na vertical: começando do alto e descendo até tocar a pata no chão. Cumprida a sua parte da história, o leitor vê imediatamente chegar o cavalo seguinte. Vem o Oneiro, vem a Mãe, vem o Filho.
(— Ok, sugerir o mini-carrossel foi fácil. Mas agora como é que eu produzo essa bendita miniatura?)
O oneiro cria um problema no funcionamento do Edifício Midoro Filho. A estrutura desse órgão não permite a continuidade como procedimento. Embora não percebam, os funcionários não têm acesso ao sonho inteiro. As seqüências que sugerem ao sonhante são impossíveis de serem finalizadas em quinze minutos de sessão. “Nós não vemos seu fim, o fim é dado por esses debilóides que não montam um sonho sozinho mas acham que sim.” O operário rebelde mata a charada e tenta conduzir os sonhos de mãe e filho como bem entende, indo além do uso padrão de miniaturas: “Meu jeito de dobrar o sistema é dar palavras que de alguma forma se aproximem do que eu, pessoalmente, gostaria que ele ouvisse”. O estrago está feito, a brecha é encontrada pelo infrator: “Não basta indicar imagens. O simples fato de eu concordar com sua criação faria sua experiência ficar mais forte e a chance de voltarmos à mesma cena seria enorme. Eu cresço com essa família, percebi com eles que a repetição garante continuidade”.
(— Pronto, está feito! Não é por nada, Andréa, mas ficou igualzinha às suas.)
A continuidade entre os dois lados da narrativa vai sendo experimentada, mesmo que as tentativas do oneiro sejam desengonçadas e os resultados, cômicos. Ele atende o pedido da mãe sonâmbula, que quer os números premiados da loteria: “Dou os números com uma técnica antiga, digo um número em alto e bom som, os demais em voz baixa, inaudível”. E garante: “Dando um número por noite, garanto a presença da mãe aflita em minha sala, quase levantando-se da cadeira ao falar que dividiria a fortuna comigo caso acertasse”. Do outro lado, porém, o filho comenta: “Minha mãe vive jogando na loteria e nunca acerta”.
(— Seja sincera, você acha que alguém vai notar a diferença?)
Afastado do cargo, o oneiro ousa fabricar os próprios objetos: “Fiz dez miniaturas, as latas esculpi com abridor”. Os cavalinhos brilhosos continuam a girar e o leitor começa a ficar zonzo. Os limites entre o Edifício Midoro Filho e a cidade ficam mais borrados. “O edifício sugere o sonho usando o próprio, assim como a gramática usa a palavra para falar da frase.”
O fantástico de Andréa, colocado na mesma superfície da realidade, sempre causou mareio. Em Os Malaquias, primeiro romance da autora, há uma passagem entre Serra Morena e um vale vizinho, que desemboca no mar. Nico, o Malaquias mais velho, cai dentro do bule de café e desaparece por dias. Por fim, em As miniaturas, a linguagem literária trabalha ainda mais a favor do fantástico. Ela não chama atenção para si, não se derrama, não dá piruetinhas, como na sua trilogia de contos. Desse mundo que mostra agora, a “existência não é pré-requisito”, desde que cause vertigem no leitor.
(— Ah, então é só uma questão do carrossel continuar girando, certo?)
*Leia perfil de Andréa del Fuego no Isto não é um cachimbo