Tralha linguística

“O estrangeiro” nasce de um desabafo de Plínio Salgado e é um amontoado de palavras vazias
Plínio Salgado, autor de “O Curupira e o Carão”
03/07/2014

O primeiro romance de Plínio Salgado, O estrangeiro, é resposta direta à Semana de Arte Moderna. Plínio foi convertido à estética futurista por Menotti del Picchia, cujo empenho, mesmo antes de 1922, consistia em defender o que chamava de “apostolado do verbo novo”. A base do programa estético dos modernistas está, portanto, nessa obra de 1926: nacionalismo exacerbado e tentativa de rompimento com a sintaxe da língua portuguesa — reações brasileiras ao entusiasmo do fascista Filippo Tommaso Marinetti pela velocidade, pela tecnologia, pela violência.

Nacionalismo panfletário
Várias histórias se cruzam em O estrangeiro: Carmine Mondolfi, imigrante que enriquece graças ao próprio trabalho e à contribuição providencial da natureza; Nhô Indalécio e Zé Candinho, par de caboclos: o primeiro, um corajoso domesticado pela vida, o segundo, persistente e indomável; Juvêncio de Ulhoa, professor em cidadezinhas do interior paulista, patriota inveterado e narrador da trama; Arquimedes Pantojo, milionário quatrocentão que perde a fortuna enquanto a família se desagrega moralmente; Ivã, revolucionário russo, fugitivo do czarismo, constantemente em busca de sua própria identidade; além de várias outras personagens menores.

Ivã é a mistura de Milkau e Lentz, imigrantes alemães que Graça Aranha reuniu em seu afetado Canaã. O Milkau para quem “as raças civilizam-se pela fusão; é no encontro das raças adiantadas com as raças virgens, selvagens, que está o repouso conservador, o milagre do rejuvenescimento da civilização”, se reflete no Ivã que descobre, em seu novo país, “o balbucio das formas ideais da nação vindoura”, um Brasil “ainda não estilizado”, onde não existe “a íntima comunhão dos homens, de que resulta a consciência criadora das formas definitivas”. Mas há espaço também, nessa personalidade inadaptada, para o pessimista Lentz, pois Ivã acredita não ser o imigrante ideal: “Trago muita Europa no sangue, na inteligência, na alma. O homem transportado para a América deve ser bronco, boçal. Sua influência cultural será nula”.

Esquerdista que, depois de trabalhar num cafezal, acaba por se tornar empresário, Ivã não supera seus antagonismos — “Sentia-se o homem anulado por todos os personagens criados pelo demônio da sua própria inteligência” — e sucumbe no niilismo que sempre o norteou, envenenando, em pleno ano-novo, seus operários e um grupo de russos brancos que imploravam sua caridade. Ele próprio ingere o veneno, mas não morre sem discursar:

Como um destino implacável, antes que os homens achassem o Novo Mundo, cinco estrelas formaram a cruz do suplício, para que a Humanidade soubesse que, em toda a parte, o sofrimento a persegue. Tudo é repetição de cansados martírios e, nem a luta, nem a esperança dissimulam a nossa miséria. Este país nasceu velho como a nossa Rússia; e tudo quanto aqui fizerem não será mais do que acelerar a construção de novas barreiras e novos impossíveis.

Na verdade, Ivã e o narrador, Juvêncio, são complementos da mesma filosofia, do determinismo que impulsiona também as patriotadas desse professorzinho interiorano, capaz de repetir, copiando Euclides da Cunha:

Como estuava, no caboclo forte, a vitalidade da raça, livre das contaminações dos grandes centros! E como era diferente dos brasileiros urbanos, chocados, ao desequilíbrio das civilizações improvisadas!

Ou defender absurdos como este:

O urbanismo é a morte da nacionalidade. Porque é a morte do homem transformado no títere cosmopolita. O homem degrada-se em contato com o homem; só a íntima correspondência com a Natureza o eleva à condição universal de símio.

Dessa barafunda de pensamentos, de concepções estereotipadas e preconceituosas, semelhantes às de Graça Aranha, surge inclusive uma paráfrase do conhecido final machadiano: “Seguir sozinho! Não deixar rastro na memória amorosa do próprio sangue…” — que se concretizará no funesto aborto de Maria de Lurdes, amante de Ivã.

Juvêncio, nacionalista e pretenso inovador, é a figura do adepto do modernismo que justifica, com superficialidade, as predileções estéticas:

Fizera o curso da Normal de São Paulo e amara a literatura. Perdera noites pelas revisões dos jornais, publicara sonetos camonianos […].

E tanto corrigiu pastéis e apanhou gatos, que acabou odiando os escritores exigentes que reclamavam vírgulas e crases.

Seu nacionalismo, aliás, descamba para ideias estapafúrdias:

A Iara, de verdes cabelos compridos, teme o confronto com os penteados parisienses?

E o Saci deixa ao Pinóquio os becos do Brás e do Bom Retiro?

E o Caapora, por onde anda, com seu cigarrão de palha, com seu garrafão de pinga, de sorte que nem dele tem notícias a sociedade que fuma cigarrilhas egípcias e bebe cachaça inglesa de Johnnie Walker, com gosto de cheiro de defunto?

Impossível não recordar as propostas panfletárias de Oswald de Andrade em 1924, no Manifesto da poesia Pau-Brasil: “O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica”. Ou, em 1928, no Manifesto antropófago: “Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará”.

O idealismo de Juvêncio, contudo, também degenera em loucura: numa excursão da escola ao Salto do Avanhandava, o professor leva consigo três papagaios que, presenteados a Carmine Mondolfi, aprenderam “o hino fascista de Mussolini”. A cena, apesar da evidente pretensão dramática, é caricata:

O Tietê tombou, de chofre, com ribombo e estilhas. Catadupa de ouro líquido. Piscina larga de muros a pique. E os papagaios de Carmine gritavam, roucos:

Giovinezza, giovinezza,

Primavera di bellezza!

Uma grande arara gargalhou gostosa no alto de um ipê. Juvêncio, de pé sobre uma rocha, exclamou:

— Quem ri desta cachoeira?
E, voltando-se para os discípulos e para os caipiras amontoados:
— Vamos! Algum de vocês é capaz de rir desta cachoeira?
E explicou:
— Esta queda de água poderia fornecer força a muitas cidades, mover usinas e iluminar. Assim é o homem da nossa terra. No litoral, ele se desmancha em arroios, mas aqui é bruto e forte.
Agarrou, então, os papagaios — giovinezza! giovinezza! — e, um por um, os foi estrangulando, atirando-os na onda brava da catadupa.
— Indignos todos os seres que falam como os papagaios, sem pôr nas palavras a força e o calor da Terra! Indignos todos os homens que falam com os lábios e acabam transformando-se na insensibilidade dos fonógrafos!

Em 1935, no livro Despertemos a nação!, Plínio Salgado diria: “O meu primeiro manifesto integralista foi um romance. Quatro anos levei a meditá-lo e a escrevê-lo, desde uma luminosa manhã de setembro em que viajei pelo sertão paulista, onde o Tietê explode nas pedreiras do Avanhandava”.

Desatinos
Acusado de imitar o estilo de Oswald de Andrade em Memórias sentimentais de João Miramar, de 1924, O estrangeiro está realmente coalhado daquela linguagem que, na falta de melhor inspiração, celebra o telegrama:

Dia 30 de abril. Casamento do Humberto.
Maio. Dias limpos e altos. A estrela da tarde, tremendo no crepúsculo fino.
Sumo doce no íntimo das Horas.
Céu pernalta, das noites de junho oblíquo.
Jongo.
Na colônia, cantigas marinhas — Santa Lucia lontana… Fogueiras de Santo Antônio e São João.
Beijos e ineditismos. Indolências macias de carícias curiosas de lua de mel.
Amor curioso como lanternas.
Quitação plena e geral selada ao Destino e pazes com a Vida.
Mocidade dos beijos. Beijos. E beijos.
Calor familiar da lareira.
Violas-sabiás!

Há também lugares-comuns para todos os gostos: a “alma dos pássaros errantes e dos ventos que passam na liberdade das alturas”; a “vida palpitante e dolorosa dos bairros pobres”; os “róseos lábios entreabertos e os olhos de ternura molhada”; e, para não dizer que Plínio esqueceu da metafísica, “a cruz do destino” que “cai sobre os ombros como o peso do Universo”.

O autor demonstra carinho particular por expressões que não ultrapassam o nível da bobagem: “A madrugada madrugou”, salienta, de repente. E o que se considera, por um momento, licença modernista, torna-se verdadeira muleta: “andava estudando vagos estudos”; “endesejando-o de desejos”; “vida colorida de cores alegres”; “imagem viva da vida vidente”; “o corpo auroreal de lascívias e desejos clamava, com uma voz que chama”; “o zum-zum zunzunou”; “vadiava vadiagens distintas”; “vozes pescadoras pescavam pormenores”; “o carro trepidava na trepidação”; e “ouvidos levavam gemidos gemendo”.

Vários dos trechos citados até aqui anunciam os horrores do discurso retórico. E, de fato, ele contamina o romance:

[…] Toda a sua beleza parecia provir do espírito meigo e submisso da sua raça, de um permanente sonho construtivo, insinuando a carícia maternal propiciatória dos triunfos pacíficos do homem…
A septicemia provocada pelo aborto leva Maria de Lurdes à morte. Enquanto a mulher, febril, sofre alucinações, Ivã deita-se ao seu lado e o narrador profere desatinos:
O corpo de Maria de Lurdes era um mormaço tropical. E, naquele contato, o homem das latitudes glaciais sentia a terra brasileira.
Meios-dias quentes, mamões mornos, musgos cálidos… Largas folhas de bananeiras curvadas para os banhados; balouço mole de palmeiras.
Cipoerais-abraços. Beijos-pitangas. Flexibilidade de caule indolente…
Crepúsculos esbraseados de bruscas atonias sincopando violentos ardores de ar trêmulo, de céu trêmulo…

Inesgotável, a linguagem ornamentada e vazia produz docilidades como esta: “Na manhã rosa-lírio, acharam-se às margens do Tietê verde-garrafa”. Certa personagem passa a madrugada “sozinha, no seu leito viúvo de uma geração caprípede”. Às vezes, torna-se impossível visualizar o que a frase sugere: “Estagnava-se uma luz emílio-zola de nuvens pardas”. O reencontro de alguns amigos se transforma na “palestra aplacadora de saudades”. Ao invés de usar o verbo “prostituir-se”, o narrador prefere dizer: “Oficiava o rito noturno do amor cigano”.

Simbolismo oco
Talvez O estrangeiro nasça de uma decisão refletida em busca da arte “sintética, simultânea, dinâmica, intencional”, que, segundo o narrador, deve ser o “recreio rápido de gente atarefada”. Ou, quem sabe, a história foi apenas consequência das “crises de maleita” em que “Juvêncio ardia e delirava”, segundo palavras do próprio autor, nas páginas finais do volume. Prefiro acreditar, entretanto, na explicação reticente que Plínio Salgado utiliza no prefácio à 1ª edição: “Este livro é, antes de tudo, um desabafo. Nele se notará que se quis dizer alguma cousa”. Só mesmo altas doses de indeterminação poderiam ter produzido tanto simbolismo oco, tamanha tralha linguística.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Adelino Magalhães e A hora veloz.

Plínio Salgado
Nasceu em São Bento do Sapucaí (SP), em 1895. Iniciou sua atividade na imprensa em 1916, em sua cidade natal, no semanário Correio de São Bento.
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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