Tração 5×5

Cinco novos repórteres entrevistam cinco jornalistas culturais de renome
Ilustração: Tiago Silva
01/10/2014

No Rio de Janeiro, Ronald Robson provoca Paulo Roberto Pires
Atualmente à frente da revista de ensaios Serrote, após ter passado pelas páginas de cultura de O Globo e Época, Paulo Roberto Pires, 47 anos, comenta algumas opiniões bastante difundidas pelo chamado “Sr. Senso Comum” sobre o jornalismo cultural. O também professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) não tem amor pelo papel, não gosta da expressão “crítica especializada” e não sente saudades da era de ouro do jornalismo. Cutucado por seis afirmações geralmente aceitas de forma categórica, o jornalista rebate todas, sem pestanejar. 

• O jornalismo de hoje é incompatível com o exercício da crítica cultural refinada; o jornalismo cultural morreu.
A questão é o porquê de dissociar uma coisa da outra, o porquê do jornalismo cultural não estar mais integrado ao jornalismo diário. São muitos os motivos, mas o principal é a ideia equivocada de que o jornalismo deve atender a determinada demanda de certo público. É claro que não se pode ignorar os leitores, mas é preciso balancear o reconhecível pelas pessoas com o que venha a disparar a curiosidade delas. Quando, no entanto, você estabelece o leitor imaginário médio, opta pelo pior. Por exemplo, uma vez escrevi “Stendhal” em um texto e o copidesque completou: “o escritor francês Stendhal”. Ora, quem não sabe quem é Stendhal não ganhará nada com essa informação. O problema é pautar-se por essa média como um padrão justo de jornalismo e nunca ousar dar algo de inesperado ao leitor.

• A crítica especializada não tem mais lugar no jornalismo diário; até na crítica a internet rouba a cena.
Eu não sei o que seria “crítica especializada”. Seria aquela mais própria à academia? Isso não significa nada. Na universidade temos hoje uma imensa maioria de trabalhos insignificantes. Então essa distinção, “especializada”, não faz muito sentido. E vamos parar com isso de internet e papel! Eu não tenho nenhum amor especial por papel. A revista que eu faço, a Serrote, só não está inteira online por uma questão de direitos autorais. A internet cumpre, sim, a função de espalhar mais certos conteúdos, mas também acaba criando guetos. Há locais em que as pessoas só falam de determinado assunto. Quem gosta de pombo-correio irá entrar num site que só fala de pombos-correios. E assim é cada vez menos dado ao leitor comum saber de uma coisa muito específica, já que esse conteúdo estará na internet, mas voltado a um público restrito. Por outro lado, a internet possibilitou muitas coisas, ainda mais para nós, que vivemos em um país periférico, que falamos uma língua periférica.

• A internet criou um novo tipo de texto.
Fui editor da página de cultura do no.com, um dos desbravadores do jornalismo na internet brasileira numa época de conexão discada. Fomos contratados e nem sabíamos como fazer aquilo. Tínhamos de inventar. Eu não tinha noção do quanto de conteúdo podia entrar no ar em um único dia, nem sabia qual era a extensão de um texto. Papel tem limite. Internet não. É como o surgimento do CD: começou-se a gravar álbuns cada vez mais longos porque cabia mais coisa no disco. Mas é preciso encontrar o equilíbrio. Quem reclama de internet reclama disso. Mas quem diz “eu não gosto de blog” diz algo como “eu não gosto de copo”. A questão da internet é que ela enfraquece a função do editor, é ilimitada na autopublicação. Ao mesmo tempo, são feitas revistas como a americana Slate, que só existe na internet e mesmo assim é uma marca de excelência.

• Jornalismo cultural bom é jornalismo cultural de décadas atrás.
Eu não tenho nostalgia alguma pelo jornalismo do passado. Se o bom existiu na década de 60, então lascou: porque eu perdi… Talvez houvesse mais espaço editorial para a crítica, mas hoje nós temos uma revista como a piauí, com textos enormes, e também os blogs. É outra dinâmica. Mas entendo a nostalgia como nostalgia de um jornalismo cultural de bom nível e livre de guetos.

• O mercado impõe a padronização dos textos jornalísticos.
Quem se padroniza são os próprios jornalistas, é uma servidão voluntária. Eu já trabalhei na grande imprensa diária e ninguém nunca me mandou escrever de um determinado jeito. O que há de perverso no padrão é que ele tende a se perpetuar como um modelo sem que ninguém o imponha. Sempre digo aos meus alunos: o jornalista tem de ler o mínimo de jornalismo e o máximo de literatura. É a literatura que lubrifica a língua. A internet deu mais espaço para estilos pessoais, mas não necessariamente o que é melhor é mais pessoal. Muita gente soltou a franga. Escrever “solto”, na primeira pessoa, pode ser ótimo, mas pode ser péssimo.

• Ensaio é um gênero literário, não jornalístico.
Não existe o cultivo sistemático do ensaio no Brasil, onde sua forma acabou sendo circunscrita à vida acadêmica. Mas paper acadêmico não é ensaio, que é uma “prosa de ideias” de não ficção na qual se faz um exercício de inteligência em torno de alguma coisa. O ensaio não quer esgotar nada, não é preciso começar o assunto desde o início e nem levá-lo até o fim. Seu tema pode ser qualquer coisa, inclusive aquilo que seria notícia. Assim, acho possível ser ao mesmo tempo literário e jornalístico. É uma “prosa raciocinante”, como Manuel Bandeira disse a propósito de outra coisa, que pode ser literária em sua forma e cumprir uma função jornalística.

Em Fortaleza, Antonio Laudenir visita as trincheiras de Dellano Rios
“Eu tinha uns amigos de faculdade que tinham essas ondas: ‘Ah, eu quero cobrir guerra’. Nunca tive esse interesse, queria trabalhar com jornalismo de cultura desde o início.” A declaração de Dellano Rios é enunciada no meio de uma busca por um cantinho silencioso na redação do Diário do Nordeste de onde conduz há quatro anos uma tropa de oito profissionais do Caderno 3, suplemento de cultura do jornal que tem tiragem de 36 mil exemplares. Rios se desarma ao tratar de temas como a importância da crítica, mudanças no profissional de jornalismo e a inserção massiva de notícias.

O frenético consumo de quadrinhos, jornais e publicações como Bizz e SomTrês influenciaram o editor no desejo de atuar nas páginas de cultura. Essa trajetória começou em 2001, no curso de comunicação social da Universidade Federal do Ceará (UFC) e chegou, ainda na condição de estudante, ao veículo em que trabalha até hoje, aos 32 anos. “Eu entrei na redação já no entardecer do jornalista cultural de gabinete com perfil de intelectual”, recorda Rios sobre o antigo ambiente da editoria. Essa definição mostra-se distante da imagem atual desse profissional: “Ele não é mais o especialista de um determinado nicho; é quem consegue passear por três ou quatro temas”. De qualquer forma, o editor defende que uma publicação de cultura deve ser feita por pessoas que têm a cultura como um tema recorrente na vida pessoal.

• O impacto da bomba
A presença deste novo jornalista é creditada à facilidade de acesso a produtos culturais. Entre amontoados de torrents e armazenamentos em nuvem, comunicadores e leitores tiveram suas rotinas alteradas. Rios entende que a internet não é tão generosa como se pensa: “Ela abriu muito espaço para se escrever sobre cultura mas nem tudo que se escreve em sites de cultura possui conteúdo jornalístico ou olhar jornalístico”.

Se o tom apocalíptico muitas vezes acompanha a discussão de pesquisadores sobre o futuro das comunicações, o editor critica a passividade do jornalismo cultural nessa conjuntura: “Todo mundo está preocupado em salvar o jornalismo das transformações provocadas pela internet, mas ninguém está preocupado em salvar o jornalismo de cultura. O público entende que essas publicações virtuais estão suprindo a área”. Mas nem tudo está perdido. Para ele, o melhor material da internet é feito fora do País, como a Revista Ñ do argentino Clarín e todo o conteúdo de cultura do espanhol El País.

• O mundo explode em vertigens
Na data em que Prometheus estreou no Brasil, as notícias já anunciavam que uma possível continuação estaria agendada. O caso que envolvia a produção de Ridley Scott é útil para Rios ilustrar o tom “meio esquizofrênico” das publicações culturais online: “Gosta-se de anunciar o futuro. Eu tenho a impressão de que os sites estão causando a vertigem de que o presente está sempre ultrapassado”.

Para o editor, o “furo jornalístico” do impresso foi para o espaço há muito tempo. Por outro lado, a obsessão pelo acesso é ferramenta do mau jornalismo praticado na rede. Ocupar-se mais com a quantidade do que a qualidade é consequência do profissional despreparado. É por essa falta de direcionamento ou até mesmo especialização que as fronteiras do simples entretenimento e a fofoca dialogam. Diante de tal jornalismo em vigência, sua preocupação é com a qualidade crítica em torno da produção cultural. “Saber se o John Mayer tá pegando a Kate Perry? É o fim! Não interessa que o último álbum lançado pelo cara é uma droga?”

• Todos devem se alistar
Antes de voltar à sua batalha diária, Rios afirma que a disputa com as possibilidades da rede, de forma geral, evidencia um cenário de empobrecimento nas redações do chamado hard news impresso: “Qual é o impacto da internet? É o texto picotado? Afirmam que o leitor não tem mais tempo. Eu acredito que o leitor sente frustração quando se depara com um texto pobre”.

Escondido em sua trincheira, o editor trava uma luta pela manutenção do jornalismo cultural cujos temas como seriedade e profissionalismo ainda são bandeiras a serem defendidas.

Em São Paulo, Júlia Tavares ouve o engenheiro que virou webjornalista Julio Daio Borges
Ao contrário de muitos veículos que nasceram impressos e foram parar na internet por questões de custos ou modismo, o Digestivo Cultural foi concebido para a web. O ano era 2000. O contexto, nada animador. Pouco tempo havia passado desde o estouro da grande “bolha” da rede, marcada pela falência de diversas empresas que haviam superestimado o retorno de altos investimentos.

Ainda assim, por iniciativa de Julio Daio Borges, 40 anos, um entusiasta da internet como um meio privilegiado para a reflexão da produção cultural, a web abrigaria um “digestivo” com comentários rápidos sobre o cenário cultural da capital paulista — um concerto de Nelson Freire, uma exposição sobre Guimarães Rosa, uma peça com Raul Cortez. A proposta era oferecer leitura rápida, sem o “peso geralmente associado à cultura”, conta ele. “Eu o criei porque fazia sentido para mim, no meu momento de vida, independentemente da bolha.”

O momento era mesmo de transição. No ano seguinte, Borges decidiu deixar a carreira de engenheiro de computação para se dedicar profissionalmente a escrever sobre cultura. Foi quando uma equipe de dez colaboradores se uniu ao projeto e o site cresceu em número de acessos e caracteres, assumindo, aos poucos, seu DNA para a crítica.

“Na época em que a gente começou não havia muito espaço na imprensa para algo mais autoral. Os jornais tinham poucos colunistas de cultura e os blogs ainda não existiam”, diz o empreendedor. O desafio foi encontrar um equilíbrio entre a cobertura jornalística e o espaço de liberdade para a opinião dos colunistas — muitos, inclusive, puderam desenvolver seu estilo e se lançaram no mercado editorial, caso de Ana Elisa Ribeiro, Luís Eduardo Matta e Paulo Polzonoff Jr.

A fórmula deu certo: hoje, a audiência média do site é de 504 mil visitantes-únicos por mês, com 55 mil inscritos na newsletter semanal. A sustentabilidade do negócio está baseada na parceria com editoras e no comércio eletrônico de livros.

• O poder da web
Para esse engenheiro com voraz apetite por letras, a história do jornalismo cultural brasileiro é construída por episódios bem-sucedidos em meio a uma gama de problemas crônicos, como pouca independência, imediatismo, submissão à indústria cultural e falta de investimento. O contraponto estaria na web, com as vantagens de possibilitar a especialização e a colaboração, a exemplo do revolucionário papel da Wikipédia ou, no Brasil, do Overmundo. “O todo da internet representa uma constelação de coisas aprofundadas e mais ricas, que, se souber procurar, mostra uma massa crítica e uma base de conhecimento que os jornais não são capazes de oferecer”, analisa.

A crítica feita com propriedade, no entanto, nem sempre é bem-vinda. O Digestivo já enfrentou fervorosas polêmicas na websfera — e também fora dela — ao analisar, por exemplo, a geração de escritores brasileiros dos anos 1990 (Não existe pote de ouro no arco-íris do escritor, 29/7/2005) e a onda de blogs jornalísticos (Por que os blogs de jornalistas não funcionam, 22/9/2006). “Tem gente que entende como agressão, como ataque. Não é isso. Eu acho que a crítica é uma questão de contexto, uma construção de conhecimento, muito necessária em qualquer país, em qualquer época, mas talvez no Brasil ainda mais”, observa o editor.

• O motor 2.0
Borges é uma testemunha privilegiada das diferentes fases e influências da internet no jornalismo brasileiro e mundial. Celebrou, com entusiasmo, a chegada da Web 2.0 — caracterizada por um compartilhamento maior de conteúdo pelos usuários, com alto nível de interação em plataformas wiki e redes sociais. Na época, fez constar de uma coluna para o Digestivo os principais ganhos da nova era nos aspectos tecnológico, social e econômico — uma “revolução dentro da revolução” (Web 2.0 ou uma tentativa de, 14/4/2006). No mesmo artigo, chegou ao ponto de pregar o abandono do impresso: “Não percam mais tempo com as fontes tradicionais de informação. Os jornalistas não sabem patavina do que está acontecendo”.

Oito anos depois, menos radical, o webjornalista até recomenda leituras na imprensa tradicional, que complementam o conteúdo virtual. Para ele, o país já não tem uma única publicação capaz de satisfazer o leitor interessado em cultura, papel que atribui, por exemplo, ao extinto Caderno de Fim de Semana, da Gazeta Mercantil, editado por Daniel Piza entre 1996 e 2000. A qualidade hoje está pulverizada, com alguns bons fragmentos na revista piauí, na Ilustríssima (Folha de S. Paulo) e no jornal Rascunho.

Recentemente, Borges também se propôs a rever sua implicância com os blogs, ao observar uma consequência não tão positiva da Web 2.0 e das redes sociais para o jornalismo cultural. “Eu sempre critiquei muito os blogueiros, porque eram muito pessoais, escreviam em primeira pessoa. Mas pelo menos eles tentavam construir uma identidade para seu veículo. No Facebook eu vejo uma coisa muito solta, menos ambiciosa”, compara. Sobre a rede social mais popular do mundo, ele lamenta ainda o risco de perda da memória e de autonomia sobre o conteúdo publicado.

O Digestivo Cultural não ignora a realidade dessa nova web — está no Facebook (5.400 curtidas) e no Twitter (39 mil seguidores), mas prefere manter alguns princípios originais, como a predominância do texto sobre os recursos audiovisuais e interativos. Ao declarar-se avesso a modismos e fiel ao estilo que conquistou tantos leitores, Borges aponta para a função social do jornalismo. “Tem que seguir incentivando a leitura, a escrita. É uma questão de cidadania. Se você quer que o Brasil seja melhor, deve tentar elevar o nível do que faz para formar pessoas no futuro”, afirma.

Em Salvador, Eron Rezende mostra os crachás de Nadja Vladi
Ao concluir o curso de jornalismo, Nadja Vladi embarcou num ano sabático pela Europa, apresentando eventos culturais em casarões abandonados. A experiência sintetiza o que ela entende por jornalismo cultural, “área que exige uma formação tão ampla quanto a própria cultura”. A jornalista, que hoje — aos 47 anos — se dedica totalmente ao ensino no curso de cultura, linguagens e tecnologias aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), já teve participação ativa na cena cultural baiana, seja concebendo e assessorando eventos como o Música no Parque ou editando publicações como o suplemento juvenil Dez! e a revista semanal Muito, do grupo A Tarde. Nesta entrevista, ela fala sobre a atual dificuldade do jornalismo cultural em promover a reflexão, a função da crítica e o papel da internet na concepção de novos formatos jornalísticos.

• Em artigo de 2011, o editor da revista norte-americana The New Yorker, David Remnick, escreveu que “os problemas do jornalismo cultural se encontram na distinção imediata entre jornalista e intelectual”. E no Brasil?
Aqui essa distinção é produto de um processo de duas vias: a desintelectualização do jornalista e a profissionalização do intelectual. Entre os anos 1980 e 1990, vimos uma redução progressiva das aspirações reflexivas no jornalismo cultural — ainda que o jornalismo dito cultural tenda a ser visto como um espaço para o pensamento crítico, ele passou a ser confeccionado através da notícia quente, do hard news — e isso foi uma aposta num modelo de negócio, no modo de vender a notícia. Por outro lado, as universidades se tornaram ambientes atrativos, com aporte para pesquisas e investigações reflexivas sobre a cultura.

• Faz sentido falar em jornalismo cultural nos diários impressos de hoje?
A maior parte dos cadernos culturais brasileiros vende o evento, não a opinião. O fato que vale a pena é aquele que acontece hoje. O de ontem está frio, morreu. Um texto reflexivo, no entanto, surge com a decantação dos fatos, exige tempo de pensamento mas essa escrita agora esbarra no modo de operação consolidado no jornalismo cultural, que preza pela urgência, por textos curtos e às vezes telegráficos, mais informativos que críticos.

• A chave está, então, na questão das chamadas “técnicas jornalísticas”?
A técnica é importante. Trata-se de uma indústria. É preciso ter pessoas com perfil mais técnico dentro dessa indústria, mas também é preciso ter pessoas com posturas mais reflexivas. O problema é a preponderância do primeiro perfil sobre o segundo. Por que o jornalismo cultual brasileiro, em vez de “expulsar” os seus intelectuais, substituindo-os por profissionais sem grande formação crítica, não reformou esses intelectuais nas técnicas jornalísticas? Se um filósofo pode ser um jornalista, por que não oferecer condições para o seu trabalho dentro da redação? Mais importante ainda: por que as redações investem tão pouco na formação intelectual de seus próprios jornalistas? A formação do jornalista cultural brasileiro, hoje, é um investimento absolutamente pessoal. A técnica jornalística é algo que pode ser aprendido em dois anos. A estrutura intelectual reflexiva, não.

• A internet ampliou as possibilidades de troca, estimulou a produção de textos, desorganizou as relações estáveis entre crítico e criticado. O maior desafio do jornalismo cultural contemporâneo é entender que a leitura deixou de ser um ato silencioso e individual e passou a ser um ato social?
Num mundo em que a informação é espraiada, o jornalismo cultural deve ser o lugar de conexão e articulação. As pessoas se leem muito mais — comentam espetáculos, compartilham fotos de eventos, opinam sobre o que viram. Se o jornalismo cultural não possui mais o status de filtro privilegiado do que seja relevante, um novo papel parece vital: buscar conexões urgentes, candentes, mas também negligenciadas, escondidas no mar de fenômenos arquivados nas redes de comunicação.

• Na internet, ou mesmo no mercado impresso, narrativas editoriais autônomas e inovadoras multiplicam-se através de zines e revistas independentes. Podemos afirmar que essas iniciativas configuram-se como o termômetro de um novo jornalismo cultural?
Essas iniciativas independentes colocam uma questão que, talvez, seja central para a sobrevivência do jornalismo como um todo: a busca pelo mercado de nicho. O jornalismo parece caminhar na mesma direção da música, que passou por um processo de falência das grandes gravadoras e ascensão do artista autônomo, que produz seu disco, faz seu crowdfunding e não precisa mais colocar 5 mil pessoas num show. Falar em consumo massivo, dentro do jornalismo, está cada vez mais complicado, com a crise do mercado editorial tradicional. A música conseguiu resolver bem isso. Creio que o jornalismo também conseguirá.

Em São Paulo, Saulo Pereira Guimarães faz um perfil “de frente” com Humberto Werneck
Jornalista que fez a história do jornalismo cultural no Brasil nos tempos áureos da Veja, Playboy e Jornal da Tarde nos idos anos 1970, logo que chegou a São Paulo vindo de Belo Horizonte, Humberto Werneck se considera um mineiro não praticante.

O jornalista de 69 anos tem boas lembranças desse tempo. “O clima era mais estimulante que o ambiente hospitalar das redações de hoje, as coisas eram menos previsíveis. Um livro que só circulasse em Manaus, como Galvez, imperador do Acre, de Márcio Souza, ganhava resenha na Veja. E a única foto conhecida do poeta uruguaio Isidoro Ducasse, o Conde de Lautréamont, era matéria verossímil. “Acho que se hoje eu levasse essa sugestão a uma reunião de pauta da revista, seria jogado do alto do prédio da Abril”, diz ele, consciente dos novos tempos.

“Já acompanhei mais de perto o nosso jornalismo cultural, e se hoje ele já não me interessa tanto é justamente pelo fato de que muitas vezes me parece burocrático e sem imaginação”, conta o cronista de O Estado de S. Paulo. “Há exceções, felizmente, como o jornalista Sérgio Augusto, mas o que vejo predominar são orientações desanimadoras como o apego à agenda, ao mainstream”, reclama. Para ele, o “ficaralho” (apelido da sobrecarga de trabalho após grandes demissões) e a pouca mistura entre jornalistas de várias gerações são defeitos das redações atuais. “Eu, que tanto devo aos veteranos com quem trabalhei, me pergunto hoje: com quem o profissional que está chegando vai aprender, se todos têm praticamente a mesma idade?”, questiona.

Porém, nem tudo piorou. A internet acelerou o acesso à informação. “Lembro da canseira que era consultar pastas e mais pastas de recortes do Dedoc, o Departamento de Documentação da Abril, ou garimpar imagens em cartelas de slides ou contatos de filmes em preto e branco”, recorda.

Werneck vê a rede como um novo espaço para atividades como a crítica cultural, que devem seguir existindo também no papel. Ele só desconfia é de quem usa a internet para driblar a boa apuração. “Hoje, tem muito jornalista que não sai à rua para apurar matéria. Diminuiu consideravelmente o volume de entrevistas presenciais. Hora dessas o Prêmio Esso de Reportagem sairá para o Google”, crava sem dó.

Para o jornalista, a cobertura de cultura nos jornais não deve desaparecer, mas aposta na informação obtida diretamente pelo repórter e no texto bom de ler como caminhos para o futuro. “Seduzir é vital”, prega. E continua: “Todos terão a ganhar se o jornalista, na hora de apurar, se perguntar: o que eu gostaria de saber? E na hora de escrever: como eu gostaria que me contassem essa história?”.

Apesar de estar escrevendo uma biografia sobre Carlos Drummond de Andrade, Werneck não aposta nos livros como salvação. Na verdade, enxerga esse formato mais como “uma esplêndida alternativa para jornalistas que gostariam de ter tempo e recursos para produzir algo mais durável. O jornalista tem uma agilidade na pesquisa que o pesquisador acadêmico não tem. Por outro lado, a rotina do jornalismo não lhe permite ir mais fundo na pesquisa”. Entretanto, para isso, seria bom que caísse a barreira contra as biografias não autorizadas. “Há sinais de que esteja para cair”, aposta o jornalista.

Sobre suas crônicas no Estadão, Werneck se considera mais escritor que jornalista e confessa que é um parto semanal. “Nunca atraso, mas escrevo em cima da hora. Não é rara a semana em que, desesperado, me pego pensando que dessa vez não vou conseguir. Curiosamente, as crônicas que escrevo mais em cima da hora estão entre as que rendem mais comentários favoráveis”, revela. O processo é intenso: “Quase sempre a crônica vem de uma vez, no final da madrugada ou começo da manhã. Aí começa o trabalho de ‘despiorar’”, explica. Nenhuma crônica está pronta sem ter tido cinco, seis versões impressas. “Leio também em voz alta, pois aprendi que se é bom de ouvir, é bom de ler. Frequentemente, atormento meus editores com pedidos para trocar o arquivo já enviado”, conta ele, que já escreveu sobre temas que vão do hino nacional aos fregueses da padaria que frequenta — passando também por O encontro marcado, de Fernando Sabino, seu livro predileto desde os 12 anos de idade — quando ainda frequentava o Minas Tenis e era vizinho de uma tal Dilma Rousseff.

Endereços referenciais:
Diário do Nordeste/Caderno 3
Digestivo Cultural
Estadão/Humberto Werneck
Serrote

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Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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