Todo o ser está envolvido

Em "As ondas", de Virginia Woolf, o enredo, os fatos, a linearidade dos acontecimentos não parecem importantes
Virginia Woolf, autora de “As ondas”
01/10/2013

Se há uma escritora cuja obra exige mais do que conhecimentos da arte, da construção ou do artesanato de seus livros para analisá-la, esta escritora, sem dúvida alguma, chama-se Virginia Woolf. Até porque sua escrita não nasce da necessidade de renovar ou de explorar circunstâncias tradicionais. Sua poética é resultado de exigências psicológicas, daquilo que a imaginação exige no momento da criação, de suas estranhas forças internas. É o que acontece, por exemplo, com As ondas. Uma novela? Um romance? Uma exposição de motivos?

A escritora inglesa é uma das grandes reformadoras universais da prosa a partir do início do século 20, ao lado de James Joyce e de Proust, se for o caso. Mas sua reforma se deu de acordo com sua personalidade, não conforme as técnicas novelísticas, experimentalistas ou de vanguarda. Mais que desejar mudar, as mudanças estavam em seu sangue, nos nervos, no caráter; na sua formação, marcada por muitos acontecimentos que interferiram profundamente no seu comportamento e, portanto, na escrita. Uma escritora feita de nervos, por assim dizer.

Em As ondas, por exemplo, o enredo, os fatos, a linearidade dos acontecimentos e a constituição dos episódios não parecem importantes. Interessa vislumbrar, interpretar ou analisar o que os acontecimentos podem provocar na personalidade dos personagens, nos grupos sociais, nas pessoas, na sua atuação. Mesmo porque Virginia está nos personagens, na sua sensibilidade, e não apenas no texto ou na história. O que é a história na novelística de Virginia Woolf? Nela, o enredo, ou a história, é uma espécie de roteiro sutil, muito leve e insinuante daquilo que a sensibilidade absorve ou revela para a construção do que se convencionou chamar de romance, novela ou crônica.

Sabe-se ainda que ela teve uma vida conduzida pela sensibilidade, pelo sentimento de dor e de angústia, senão de medo. Poucos ou raros momentos de alegria ou de felicidade, sempre a imersão no sofrimento e na agonia ou no prazer — se é que se pode falar em prazer na relação com Virginia.

Autor de uma extensa, densa e detalhada biografia da autora inglesa, Quentin Bell vai buscar na genealogia da família uma interpretação não só da vida, mas sobretudo da sensibilidade de Virginia. Porque esse elemento nela é tão fundamental, tão decisivo e inquietante que parece sustentar-se para além das próprias forças físicas.

Talvez o romance — seria mesmo um romance? — As ondas seja a chave — ou uma das chaves, ao lado de Rumo ao farol — de entrada para a interpretação da sua obra e, mais, da sua própria vida. Esta vida tão intensa e aflitiva que mesmo palavras são inúteis para revelá-la. Até porque ondas são os movimentos físicos e nervosos que constituem a espécie humana. Todo Ser está envolvido, parece dizer Virginia, por uma mobilização de ondas que se movem a cada instante, a cada circunstância, a cada momento para construir a existência. Muito mais do que a vida, a verdade da existência, a que se entrega material e espiritualmente todo homem. É neste sentido que deve-se compreender toda a obra de Virginia Woolf: mais do que fatos, acontecimentos ou intrigas, como uma camada de choques elétricos que vão se multiplicando a cada instante.

Os monólogos dos personagens — Bernard, Jinny, Neville, Susan, Rhoda e Louis — mostram, claramente, o fundamento da criação de Virginia, a partir das sensações de todos eles, ainda que se mostrem isolados e perplexos perante o mundo — isolamento e perplexidade que parecem ter sido os elementos essenciais do comportamento da autora. Contam a vida de cada um em três grandes movimentos humanos — infância, juventude e velhice, ou amadurecimento.

Para ela, era uma espécie de ajuste de contas com a sua própria existência imersa em trevas. Aliás, Quentin Bell escreve como era sua vida em família, sobretudo no obscuro período da infância. Nos relatos que Virginia e Vanessa — as irmãs — deixaram desse período de suas vidas, a imagem recorrente é de trevas: casas escuras, paredes sombrias, quartos na penumbra:

E penso que com isso não mencionava apenas uma treva física, mas um deliberado cerrar das janelas para a luz espiritual. Para as crianças isso não era apenas trágico, mas caótico e irreal. Eram convocadas a sentir não simplesmente sua dor natural, mas uma emoção falsa, melodramática, insensatamente histriônica, que não conseguiam acompanhar.

Assim pode-se tentar compreender o mundo nebuloso e insensato de As ondas, sobretudo perceber este estranho “cerrar das janelas para a vida espiritual”. Na impossibilidade de enfrentar a realidade e os fatos concretos, claro, o jeito é senti-los, apreendê-los e compreendê-los, com a sensação de que isto não se esgota nunca. Fica estabelecido, nesta leitura inquietante e bela, que a vida não é feita de dias, semanas, meses ou anos, mas de ondas que se movem nas sensações da infância, da juventude e da velhice.

NOTA
O texto Todo o ser está envolvido foi publicado originalmente no Suplemento Pernambuco, editado em Recife (PE). A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

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