Nova York, 10 de dezembro de 2014
Met, the Metropolitan Museum of Art.
I. Encalço
Sapatos, de Vincent Van Gogh.
Consta que, após a leitura de Crime e castigo, do bom e velho Fiódor Dostoiévski, Van Gogh teria ficado tão obsedado que passou a entrever vestígios do duplo homicídio cometido pelo ex-estudante de Direito Ródion Románovitch Raskólnikov por toda a parte.
Os traços do pintor, naturalmente trêmulos, se tornaram ainda mais arredios.
Os traços do pintor, naturalmente centrífugos, passaram a escapar ainda mais das telas, como se quisessem mimetizar as machadadas de Raskólnikov — como se quisessem resvalar os espectadores.
Teria Van Gogh a intenção de encobrir os rastros de Raskólnikov?
Os sapatos de Raskólnikov capturados pelo holandês têm as pontas esbranquiçadas, como se estivessem inacabados — como se o sangue da usurária Alióna Ivánovna jamais tivesse embebido os passos do assassino. {O cúmplice Van Gogh quer apartar o crime de um possível castigo. [Memórias do subsolo: ao (tentar) recalcar os vestígios do crime, o pintor transforma os espectadores no investigador de polícia Porfíri Pietróvitch. Ocorre que o transgressor talvez queira ser punido, já que o crime pressupõe o castigo. Mas, para tanto, será preciso encontrar o esconderijo de Raskólnikov. (Teria Van Gogh pintado os sapatos da personagem para despistar as autoridades?)]}
O crime pressupõe o castigo; o não matarás, no limite, pressupõe o matará a ti mesmo como a agonia que dilacera aquele que ousou aspergir sangue sobre as escadarias do templo. (É por isso que os sapatos são opacos como o remorso? É por isso que Van Gogh transpassou os sapatos com cadarços longos e retorcidos a prenunciarem a corda ao redor do pescoço?)
II. Enquadramento
Mulher penteando o cabelo, de Edgar Degas.
Ela está sentada — a nudez dá as costas para nós.
Cabelos castanhos e caudalosos.
Pele algo pálida, braços ágeis, ávidos e torneados.
A trilha gentil da coluna se despede com relutância dos quadris e sobe até a nuca escoltada por minha língua. Quando meu peito lhe resvala as costas, a mão direita abandona o pente enquanto o pescoço se inclina sobre meu ombro. Quando minhas mãos frias — é inverno tanto em Nova Iorque quanto em Paris — lhe tocam os seios, ela geme e se arrepia enquanto os mamilos se intumescem entre o indicador e meu polegar.
São Bernardo do Campo, 1999.
Em uma aula de Filosofia para o terceiro colegial — isto é, para adolescentes que há muito já não são incautos —, a professora Alessandra Cappellini procura estabelecer diálogos entre a apreensão filosófica da realidade e a arte, sobretudo em sua matriz pictórica. Eis que, em determinado momento, surgem as seguintes questões:
– Quais seriam as relações entre a construção de um conceito e a captura estética em um quadro? Como é que uma tela poderia ser definida filosoficamente?
Todos permanecem em silêncio.
Um silêncio entreolhado.
Súbito, Ricardo levanta a mão esquerda.
(Ricardo, um aprendiz de literato.)
– O que você acha, Ricardo?
– Alessandra, você conhece o quadro Mulher penteando o cabelo, do Degas?
– Sim, é uma belíssima tela.
Ricardo olha ainda mais fixamente para Alessandra antes de sentenciar:
– Então, a musa do Degas me ensinou que o quadro é o coágulo do desejo.
{Alessandra esboça um leve sorriso de soslaio enquanto, de costas para a classe [como a musa de Degas], escreve [e resvala (e manuseia)] a definição de Ricardo sobre o quadro negro.}
III. Você parece o Mikhail
A floresta no inverno ao pôr do sol, de Théodore Rousseau.
As árvores com seus galhos nus, errantes e entrelaçados em busca da luz baça do inverno são uma síntese do que é humano.
A errância.
O antagonismo.
O desencontro.
A perda.
A solidão.
A hesitação.
A persistência.
O reencontro.
A trégua.
A partilha.
O êxito.
A fragilidade.
O crepúsculo ainda permite discernir ao rés-do-chão a matéria orgânica revolta — o ímpeto pela sobrevida.
Cinco gaivotas migram por sobre a floresta invernal.
(Elas também buscam o acalento.)
O céu dourado já convive com as manchas da noite.
Moscou, novembro de 2008.
Atrás dos alojamentos estudantis da Universidade Russa da Amizade dos Povos, há um bosque que parece ter saído da tela de Théodore Rousseau.
Enquanto caminho, ouço o estalido dos gravetos e sinto, temeroso, que os galhos das sentinelas ao largo da vereda tentam resvalar meus ombros.
Consigo entrever, a 50 passos, o prenúncio de uma clareira.
Sentada ao centro da clareira, há uma bábuchka com um lenço rubro sobre a cabeça amarrado sob o queixo.
Conforme me aproximo, a vovozinha encolhe o pescoço junto ao tórax como a tartaruga que retrai os olhos para dentro do casco.
Meu sorriso pressupõe o armistício, mas a bábuchka continua a me estudar com seus olhos azuis, fundos e enrugadiços como se eu fosse um invasor alemão.
– Кто ты? (Kto ty?, Quem é você?)
Digo-lhe o meu nome e de onde venho.
– А что делаешь в Москве? (A tchto delaech v Moskve?, Mas o que você está fazendo em Moscou?)
Digo-lhe que estou estudando Fiódor Dostoiévski.
Ao ouvir o nome do escritor, a bábuchka abre um sorriso farto — e banguela.
Com a mãozinha direita côncava de reumatismo, ela me oferece nozes.
Mas o que a senhora tá fazendo aqui? Tá frio, a senhora vai ficar doente. Por que a senhora tá sozinha?
Súbito, a bábuchka se cala e começa a olhar fixamente para os meus pés como se eu estivesse calçando os sapatos de Vincent Raskólnikov.
Ela passa a falar sem dar som às palavras, apenas os lábios murchos se movem.
Mas o que foi, senhora? O que aconteceu? Tá tudo bem?
A vovozinha saca do bolso um papel.
Uma carta.
Não consigo entender a caligrafia, mas o papel amarelado e repleto de nódoas e as lágrimas da bábuchka insinuam uma despedida.
O que é isso, senhora? De quem é esta carta?
A bábuchka estende a mão para mim — os mesmos dedinhos reumáticos como garras de passarinho que há pouco me ofereceram nozes.
Mas o que foi, senhora? O que a senhora quer?
Me ajoelho.
Enquanto tento levantá-la, a mãozinha resvala o meu rosto.
Ela esbugalha os olhos.
– Михаил, Миша, это ты? (Mikhail, Micha, eto ty? É você?)
(Fecho os olhos para não responder.)
– Михаил, Миша, это ты?
– Não, senhora, não sou eu… Quem é Mikhail?
A vovozinha suspira fundo — o peito faz um chiado.
– Mikhail é meu marido, você parece o Micha… Você viu o Micha? Viu? Ele não me dá notícias desde Berlim… Micha é meu marido, você parece o Mikhail… Você viu o Mikhail? Viu? Ele não me dá notícias desde Stalingrado…
IV. Cidade intangível
Noite em Saint-Cloud, de Edvard Munch.
O pintor de cartola se escora junto ao parapeito da janela.
A vida reluz lá fora, a intermitência dos néons traz o cabaré para dentro do quarto, mas não, não!, eu preciso terminar minha obra!
No canto esquerdo do quadro, perto dos espectadores, Munch retratou o pedaço de uma cortina — ou parte do cavalete com a tela ainda inconclusa.
Para o artista, o que é uma obra por terminar?
Insônia.
Monomania.
Consta que Charles Baudelaire chegava a tomar banho com suas poesias — a fricção da esponja e a acústica peculiar do banheiro aprumavam a sonoridade e o ritmo dos versos.
Eça de Queirós costumava caminhar pelas alamedas lisboetas munido de uma pena, um giz de cera e pedaços de papel. Quando as obras se lhe impunham como ideias e frases fugidias, o português as caçava freneticamente com seus esboços. Assim que a frente e o verso dos papéis se viam repletos de ficção, as páginas dos muros de Lisboa se tornavam propriedade da Casa de Ramires sob a bênção do padre Amaro. (Em uma das paredes do Mosteiro dos Jerónimos, perto do túmulo de Fernando Pessoa, a escrita de Eça irrompe aos borbotões quando a empregada Juliana descobre as cartas adúlteras de Luísa e começa a chantagear e a extorquir a patroa para não revelar a Jorge as noites de amor de sua esposa com o primo Basílio.)
Que dizer sobre a solidão do artista?
Na casa do escritor inglês Charles Dickens, em Londres, há um retrato do autor diante de sua mesa de trabalho. Capitaneadas por David Copperfield e Oliver Twist, a plêiade de personagens é tão impetuosa que a densidade de tramas e vozes já se confunde com a floresta invernal do pintor francês Théodore Rousseau. São cem personagens à procura do autor. A multidão etérea que povoa Dickens transforma a solidão do artista na chave para a cidade invisível.
Berlim, dezembro de 2006.
Museu Berggruen, em frente ao Castelo de Charlottenburg: vou a uma exposição de esboços e retratos de Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz, também conhecido como Pablo Picasso.
Me deparo com uma foto de Picasso que parece ter saído do quadro de Edvard Munch.
O fotógrafo captura o pintor espanhol atrás de uma janela algo sobrelevada. (A altura criadora aparta Munch e Picasso do chão da vida.) O rosto de Pablo é melancólico, mas é a mão direita que denuncia a quarentena. Sua mão se apóia espalmada contra o vidro como que a acenar para a esposa (e as amantes). Cadê minhas netinhas? Meus filhos vêm me ver? A que hora chegam meus amigos? A mão esquerda, no entanto, enverga a antítese (e o látego) da arte: as manchas coloridas ao longo do antebraço — where the rainbow ends — já prenunciam os pincéis de Picasso. ¡Al trabajo!
Não foi à toa que, certa vez, o escritor francês André Gide sentenciou que o artista não deveria ser reconhecido “apenas” pelo que realiza. O artista também deveria ser reconhecido por tudo aquilo de que precisou abrir mão para dar à luz sua obra.
[Enquanto você e ela (supostamente) assistem a O sétimo selo sob o edredon, enquanto ele a abraça diante de Monet, enquanto vocês recitam Neruda entre cálices, o artista incandesce o sentido do amor com a polifonia de sua solidão.]
V. Tempo para plantar — e tempo para arrancar o que foi plantado
Os primeiros passos, de Vincent Van Gogh.
Fevereiro de 1947: o pintor holandês vai a Marília, no interior de São Paulo.
Ao redor das 17h, o vô Ricardo, filho de imigrantes italianos de Verona, volta da roça carregando a enxada sobre o ombro direito.
O vô tem o cabelo farto — cabelo escovinha, como minha mãe dizia —, o bigode algo falho à altura do dente incisivo lateral direito, a pálpebra do olho esquerdo levemente descaída.
O vô não suporta trabalhar pros outros. Ele quer ter a própria terra — mas e o dinheiro pra isso?
O vô é meeiro. E a raiva de ter que dar metade da colheita pro dono do sítio?
Quem é que lavra a terra?
Quem é que ara a terra?
Quem é que planta?
Quem é que reza pela colheita?
Quem vai pedir empréstimo no Banco do Brasil?
Quem é surpreendido pela geada?
Quem é que tem que arrancar da própria metade a metade do dono?
Quem é que tem que cortar a própria carne?
Vir pro Brasil pra fazer a América? Rá! — o vô Ricardo dá uma cuspadela marrom e viscosa de fumo enquanto vai enrolando um novo cigarrinho de palha.
A Nena já deve tá me esperando, hoje eu me atrasei, tô com muita fome. E a menina tá crescendo rápido, Deus que abençoe!
A Nena é minha vó Antônia. A menina, a Neuzinha, é minha mãe. Falta pouco pra ela completar 1 aninho.
O vô, a vó e a mãe moram numa casinha de madeira — um casebre. Faz um calor lascado, é mato que não acaba mais ao redor, o vô e a vó não vencem carpir, mas o vô arregala o olho com o capricho da vó no quintal. Que horta bonita, Nena!
Casa do interior tem o muro baixinho, o portão é de madeira. Ninguém tem medo de ladrão, não. Aliás, roubar o quê? É capaz de o ladrão de galinha ficar com dó e acabar dando alguma esmola pro dono da casa.
Tem hortinha de couve, almeirão. Tem pé de jaboticaba, limoeiro. E vai ter mosca assim lá longe, sô!
Quando o vô chega certinho na hora da janta, a vó sempre diz:
– Eita cavalinho bom!
O vô não tem cavalo, não — o cavalo é do dono, mas o Ferrugem é como se fosse nosso.
Logo hoje, o vô tá voltando preocupado. A coisa não vai bem lá na roça, não. Não vai dar pra pagar tudo pro banco com a colheita pouca. E agora como é que eu faço, meu Deus, com filha bebezinha?
Quem vê o vô caminhando logo nota que ele bandeia o ombro esquerdo um pouco pra baixo por causa do tombo que ele levou no poço.
O vô tem o olho azul, azuul, azuuul — assim minha mãe dizia enfatizando ainda mais o azuuuul a cada repetição como se a cor chegasse a doer de tão clarinha.
Ué, a Nena ainda não fez a janta? Cadê o cheiro?
O vô fica bravo, coça o chapéu de palha, arregaça as mangas ensopadas de suor — na roça o peão frita no sol, mas nego não pode ficar exposto, senão arrebenta a pele, daí o peão se encapota todo. Chega o fim do dia, vixe, nego tá lavado debaixo da roupa.
E o vô vai chegando com fome e nem sinal do cheiro da janta lá no casebre do Van Gogh.
Mas o que que é aquilo ali?
O vô vê de longe a vó usando o vestido azul de passeio, o vestido que ele deu pra ela na época das vacas gordas no ano passado, depois que a vó teve a mãe.
(A vó é a coisa mais linda, o vô diz que ela parece uma boneca de porcelana.)
Ué, mas a Nena tá com roupa de sair, que que é isso? Cadê o avental? Hoje é quarta-feira, que que tá acontecendo?
A vó tá com o cabelo dourado preso no alto da cabeça, do jeito que o vô gosta. Só que a vó não sai de trás do portão. Que que tá acontecendo?
De repente, o portão vai se abrindo devagarinho, devagarinho. De trás dele, pé ante pé, ou melhor, pezinho ante pezinho, a Neuzinha vai dando os primeiros passos bambeando as perninhas que mais parecem pãezinhos caseiros.
O vô é durão, italianão firme, mas o pai não aguenta ver o parto: a enxada cai na hora, o vô se ajoelha e, chorando como um bezerro, abre bem os braços pra receber a mais nova andarilha da casa.
– Vem, fia, vem, Neuzinha, que Deus te abençoe, minha fia! Óia, Nena, óia a menina, Nena, óia como ela anda, Nena! Eu te amo, minha fia, Deus que te abençoe!
O vô chora mais que a vó, a vó nunca viu coisa igual.
A mãe tá com uma toquinha e um vestidinho que a vó tinha feito. A vó é costureira de mão cheia.
Quando a Neuzinha consegue chegar até o vô — e olha que ela não caiu nenhuma vez! —, o vô abraça a mãe e depois levanta o bebê pro céu.
A vó faz o Pelo Sinal e se ajoelha pra abraçar o vô e a Neuzinha, a mais nova andarilha.