Sua imagem no espelho te reflete?

Resenha do livro Cães heróis, de Mario Bellatin
Mario Bellatin, autor de “Cães heróis”
01/05/2013

“Perto do aeroporto da cidade vive um homem que apesar de ser um homem imóvel — em outras palavras um homem impedido de se mover…”

Como pode um “romance” de 22 laudas começar assim? Repetindo a palavra “homem” três vezes antes do fim da primeira frase e cometendo a redundância de dizer que um homem imóvel é impedido de se mover. E como pode uma edição estender essas mesmas 22 laudas a um livro de 128 páginas? Como pode um exemplar dessa dimensão conter 62 páginas em branco?

Não há capa no livro. Os oito finos cadernos que o compõe ficam à mostra, a cola quente e as costuras à mercê de dedos inquietos. Só as páginas à esquerda possuem texto. Um parágrafo exato. Nem mais nem menos do que isso. Em uma caixa de texto branca de invariavelmente 12 x 11 centímetros. O tamanho das fontes nunca se repete. A cor é roxa, como as páginas vazias. Só as pares tem numeração. O romance se inicia na página dois. No verso daquela que seria sua capa. Não há dedicatórias ou epígrafes.

Mas Mario Bellatin é autor que, dentre outras coisas que o definiriam menos ainda, certa vez, realizou um evento em que dezenas de dublês estudaram com afinco as opiniões, trejeitos e excentricidades dos mais conhecidos autores mexicanos para simulá-los em entrevistas, noites de autógrafo e festas exclusivas.

Econômico e redundante
No livro, um dos melhores treinadores de pastores belgas malinois do mundo não move sequer o pescoço e fala de maneira quase incompreensível. Sua mãe e sua irmã, na mesma casa, trabalham catalogando sacolas de plástico vazias cujo destino desconhecem. Um enfermeiro-treinador que dorme junto ao homem imóvel é mantido sob a ameaça de que os cães sejam mortos, se partir. Periodicamente, alguns deles são vendidos.

No quarto em que o homem se isola, há imagens de naves espaciais e cabeças de cachorros recortadas (por vezes coladas umas às outras), aves de diferentes espécies, um livro com fotos de alguns dos melhores pastores belgas malinois do mundo e um mapa da América Latina repleto de marcações dos melhores lugares para se criar os cães da raça. “Para certos visitantes”, acrescenta mais adiante, “a presença desse mapa os leva a pensar no futuro do continente”.

O estilo econômico e ao mesmo tempo redundante, entre um manual e um livro sagrado, quase sem conectivos ou encadeamentos lógicos de grande extensão, permite que a fragmentação seja levada a extremos de modo imperceptível. Você vira a página após ler, por vezes, um parágrafo de menos de sete linhas, e em seguida não sabe como foi conduzido a um momento distinto do romance.

A impressão que se tem é que, de fato, há um romance inteiro ali, recortado e embaralhado até as últimas conseqüências, mas ainda presente nos espaços vazios, ainda duradouro nos segundos em que se vira uma página. É impossível ignorar que se perca contato visual com texto de minuto em minuto. E não é exagero dizer que toda essa perda se acumula e toma forma.

Teoria da conspiração
Por mais conciso que seja, no entanto, o pequeno livro não se estende a ponto de desenvolver um enredo, mas somente narrar breves acontecimentos e apresentar o cotidiano da casa.

O autor afirma que o livro é um relato fidedigno de algo que realmente presenciou.

No fim, os moradores entram em colapso e mãe e irmã terminam por colocar sacolas plásticas na cabeça para depois saírem vagando a esmo.

Mas o enredo principal só se insinua a partir de uma teoria da conspiração que o próprio leitor é levado a criar, sem que a estrutura narrativa jamais se comprometa a confirmá-la.

Na página 110, o homem imóvel, na “instituição”, conhece um menino de seis anos que escreveu um livro chamado “Cães heróis” (o próprio Bellatin) e pede uma máquina de escrever. Na página 16, o homem explica que vende os cães para que o sangue novo possibilite o “avanço da espécie necessário”. Página 40: o homem pede que o aprendiz recorte cabeças de cachorro e as cole em naves espaciais igualmente recortadas. Página 32: liga para uma central de informação perguntando quantos cães cabem em uma nave espacial. Não tem resposta. Página 64: vê o mapa com os melhores lugares da América latina para a criação de seus cães. Página 44: quem olha para o mapa tem a sensação de estar diante do futuro do continente…

Muitos elementos nos levam a desconfiar de que este homem possa estar tramando uma absurda dominação de larga escala com os cães. Algo cuja única coisa que falta para se tornar uma interpretação é uma motivação lógica e uma correspondência com parâmetros reais. Ausências nem um pouco ignoráveis, como também não é ignorável que um livro seja desprovido de capa. As primeiras palavras do livro são, afinal, “Perto do aeroporto”.

De todo modo, algo ainda não ficou esclarecido: relato fidedigno de algo real? Tive de perguntar ao autor, só para começar, se, então, a mãe e a irmã do tal homem realmente tinham colocado sacolas na cabeça. Ao que ele muito gentilmente me explicou: “Nunca afirmei isso. Vejo que neste caso funcionou a cumplicidade do leitor de ir além do que está escrito”. Vá lá¹!

Nota
[1] “Entretanto, e em virtude dos acontecimentos, no andar de baixo a mãe e a irmã cobriam suas cabeças com um par de sacolas.“ (BELLATIN, Mario – Cães heróis – Cosac Naify, São Paulo, 2011, página 122.)

LEIA ENTREVISTA COM MARIO BELLATIN.

 

Cães heróis
Mario Bellatin
Trad.: Joca Wolff
Cosac Naify
128 págs
Rafael Dyxklay

É crítico literário e tradutor de obras de Charles Dickens, entre outros.

Rascunho