Sobre ser escritor

Resenha do livro "A maleta do meu pai", de Orhan Pamuk
Orhan Pamuk, autor de “A maleta do meu pai”
01/07/2008

Ao receber o Nobel de Literatura, o escritor turco Orhan Pamuk leu um longo discurso acerca do significado da literatura e do que, para ele, representava ser escritor. Em pelo menos outras duas ocasiões, o autor de Neve e Meu nome é Vermelho teceu considerações que se adéquam ao contexto do prêmio concedido pela Academia Sueca. Com isso, nesses outros eventos — um em Frankfurt, na Alemanha; e o outro na Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos —, Pamuk dissertou acerca das questões que, conforme seu ponto de vista, são elementares para um escritor. Reunidos e agora publicados em português, os três ensaios constituem A maleta de meu pai, um pequeno grande livro de 91 páginas. Ao leitor acostumado com as narrativas extensas de Pamuk, essa informação pode gerar alguma desconfiança no que se refere à qualidade do livro. Como costuma acontecer, as aparências pregam peças naqueles que crêem nas primeiras impressões. Nesse caso, se é fato que o livro não possui o mesmo peso dos romances do autor, também é verdade que a densidade, se não é maior, é equivalente. Veja, a seguir, por quê.

A organização de A maleta de meu pai privilegia o olhar atento que Pamuk dedica à arte literária, sobretudo ao aspecto que constitui o caráter estético do autor. Nesse ponto, observa-se que no texto homônimo ao título do livro, o escritor, a partir de uma situação inicial (uma maleta que seu pai lhe havia deixado dias antes de morrer), passa a dissecar as características de sua visão de mundo, que, em linhas gerais, remete aos anos de formação em Istambul. Tendo sido filho de pais ocidentalizados, Pamuk entende a literatura como uma espécie de instrumento que “precisa investigar e contar os medos básicos da humanidade: o medo de ficar de fora, o medo de não ser levado em conta, e o sentimento de falta de valor que decorre desses medos”. A maleta citada no título do ensaio funciona como um elemento que agrega os pontos que estruturam o texto, como se fosse um fio condutor do discurso-narrativa. Apesar de não ser complexa do ponto de vista da engenhosidade, há uma sedução natural provocada pelo fato de Pamuk envolver o leitor a cada palavra, e de forma bastante singular.

No texto seguinte Em Kars e Frankfurt, o escritor faz uso da literatura para dar conta do sentimento de mundo a partir da literatura. Em Pamuk, a arte literária não se encerra em si mesma, tal como um objeto para (apenas) um fim “prático”. O autor ensina que a literatura também age pela via da subjetividade, dizendo o que não pode ser informado pelos jornais e pela televisão. Entretanto, o escritor esclarece que sua obra não escapa da realidade, muito embora prefira outros temas. Nesse texto, Pamuk guarda espaço para tratar das questões de seu tempo, como o significado político da possível entrada da Turquia para a Comunidade Européia, assim como do excesso de admiração que mesmo os turcos dispensam ao Ocidente. Ainda assim, é quando fala sobre literatura que seu texto toma forma mais consistente, em específico porque Pamuk efetivamente procura compreender o seu entorno a partir de sua leitura de mundo: “Compreender o que é único na história de outras nações e de outros povos, participar de vidas únicas que nos perturbam e nos abalam, aterrorizando com suas profundezas e espantando com sua simplicidade — eis verdades que só podemos colher a partir da leitura cuidadosa e paciente dos grandes romances”. A propósito, o autor considera que o romance, como peça da literatura, é um dos grandes legados da Europa para a civilização universal, muito porque este tipo de narrativa consegue firmar no leitor um imaginário de infinitas possibilidades.

É a respeito desse imaginário que o texto O autor implícito discorre. Após se declarar como dependente da literatura e do ato de escrever, Pamuk encontra uma definição adequada para aquilo que sente sobre o romance: “Acima de tudo, um romance é uma cesta que carrega dentro de si um mundo sonhado que desejamos conservar vivo para sempre, e sempre à nossa disposição”. Assim, cada romance, mais do que uma tese ou uma interpretação, deve contar com um autor imaginário que estabelece para si o lugar do outro. Porque um escritor como ele, conclui Pamuk, busca, também, ser outras pessoas.

A maleta do meu pai
Orhan Pamuk
Trad.: Sérgio Flaksman
Companhia das Letras
91 págs.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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