🔓 Resposta ao artigo “Poetas admiráveis”

05/12/2012

:: Por Lucas F. de Freitas

Fernando Monteiro, no artigo intitulado “Poetas admiráveis” — sobre as poetas Nina Rizzi, Mariana Ianelli e Marize Castro —, não chega a fazer qualquer análise ou mesmo qualquer observação digna de nota sobre os versos de nenhuma delas. Seu elogio a tais autoras baseia-se em outra coisa. É que, segundo o autor, elas não cometeriam o que considera as “bobagens” e “besteiras” que Monteiro vê no seguinte fragmento — que classifica de “versos rasteiros” — do poema Palavras aladas, de Antonio Cicero:

Eram palavras aladas
e faladas não para ficar
mas, encantadas, voar.

Assim como não consegue explicar sua predileção pelas poetas citadas, Monteiro não é capaz de fazer nenhuma crítica efetiva sobre o fragmento em questão ou sobre o poema que procura detrair.

Por esse motivo, o artigo em questão não mereceria sequer ser citado. No entanto, é preciso reconhecer que ele teve um mérito: o de me dar o pretexto para comentar brevemente o belo Palavras aladas. Eis, portanto, o poema:

Palavras aladas

Os juramentos que nos juramos
entrelaçados naquela cama
seriam traídos, se lembrados
hoje. Eram palavras aladas
e faladas não para ficar
mas, encantadas, voar. Faziam
parte das carícias que por lá
sopramos: brisas afrodisíacas
ao pé do ouvido, jamais contratos.
Esqueçamo-las, pois, dentre os atos
da língua, houve outros mais convincentes
e ardentes sobre os lençóis. Que esses,
em futuras noites, em vislumbres
de lembranças, sempre nos deslumbrem.

O título traduz a expressão, freqüente em Homero, êpea pteróenta. O vocábulo “êpea” é o plural de “epos”. Entre outras coisas, significa originariamente “palavra”. Muitos estudiosos supuseram que a expressão “palavras aladas” consistisse numa metáfora para a poesia. A explicação seria, segundo, por exemplo, Casey Dué, professora e diretora de Estudos Clássicos da Universidade de Houston e editora executiva do Centro para Estudos Helênicos de Washington D.C., que “os gregos antigos concebiam a poesia como a voar”.[1]

Na Antigüidade tardia, porém — como, aliás, o próprio Antonio Cicero menciona em um brilhante ensaio sobre Homero em Finalidades sem fim —, estudiosos como o romano Cássio Longino (séc. 1 a.C.) afirmavam que “os êpea e os discursos são chamados de alados pelos poetas porque fogem de quem não os agarra com força”.[2] Também o grego Luciano de Samosata (séc. 2 d.C.) afirmava que os êpea eram alados porque “voam para longe assim que chegam”.[3] O que ocorre é que na cultura oral primária, consideram-se poemas os discursos suscetíveis de serem recitados ou cantados, isto é, os discursos reiteráveis. Não se trata, portanto, dos que voam para longe, mas dos que ficam. Sendo assim, a locução “palavras aladas” descreve exatamente os discursos não poéticos.

O poema do Antonio Cicero joga, em primeiro lugar, com o sentido que Cássio Longino e Luciano atribuem à expressão “palavras aladas”. Seus primeiros versos dizem que os juramentos feitos ao se entrelaçarem os corpos na cama, ou seja, no calor do amor carnal, não valem senão em tal situação. São “palavras aladas/ e faladas não para ficar/ mas, encantadas, voar”. Observe-se que o vocábulo “encantadas” funciona aqui, para o ouvido, como a expressão “em cantadas”. Uma vez tendo assumido e cumprido a função de seduzir, essas palavras voam para longe, pois não são menos efêmeras que as demais carícias trocadas na cama. São sopros, “brisas afrodisíacas/ ao pé do ouvido, jamais contratos”.

“Esqueçamo-las”, propõe o verso seguinte, “pois, dentre os atos/ da língua, houve outros mais convincentes/ e ardentes sobre os lençóis”. É interessante que o enjambement que separa “atos/ da língua” acaba por enfatizar essa expressão, lembrando que o erotismo oral pode ser tanto carnal quanto verbal. Pois bem, o poema afirma que estes são mais convincentes, logo, mais memoráveis que os primeiros, e propõe que eles, “em futuras noites, em vislumbres/ de lembranças, sempre nos deslumbrem”. Ou seja: o que deve ser lembrado, pois permanecerá como fonte de deleite, não são as palavras sopradas — pois estas, longe de permanecerem como promissórias, já voaram para longe —, mas sim os atos físicos de amor.

Assim, lembrar esse momento erótico é uma das coisas que o poema Palavras aladas faz. Nesse sentido, fazendo voar a memória e a imaginação do leitor, o poema próprio não deixa de voar. E, desse modo, estamos de volta ao sentido da expressão “palavras aladas” sugerido pelos estudiosos modernos, como Casey Dué.

Por fim, é preciso dizer que o poema é extraordinariamente bem construído. Um exemplo disso encontra-se precisamente no trecho irresponsavelmente citado e desprezado por Monteiro. Assim, o vocábulo “aladas” é parônimo de “faladas”, tendo por diferencial a consoante fricativa surda f, cuja aliteração, neste verso e no seguinte, é reforçada pela ocorrência da fricativa sonora v: “e faladas não para ficar/ mas, encantadas, voar. Faziam/ parte das carícias que por lá/ sopramos”. As fricativas já funcionam, portanto, como manifestações do sopro: afinal, o sopro — que cria “brisas afrodisíacas” — é o que aqui diferencia “aladas” de “faladas”.

Outro exemplo da mestria com que esse poema foi construído encontra-se no ritmo dos seus três primeiros versos. Tomando o símbolo “∪” como representação de sílaba átona, o símbolo “–” como representação de sílaba tônica e o símbolo “Ū” como representação de sílaba oscilante entre tônica e átona, podemos dizer que cada um dos dois primeiros versos é dividido em hemistíquios que possuem a regularidade rítmica ∪Ū­∪–∪.

Assim, temos:

∪  Ū­ ∪   –  ∪
Os ju ra men tos

∪   Ū­  ∪  –  ∪
que nos ju ra mos

∪  Ū­  ∪  –  ∪
en tre la ça dos

∪  Ū­ ∪  –  ∪
na que la cama.

 

A seguir, no terceiro verso, esse esquema é expressivamente quebrado — traído — por outro, destituído de simetria, isto é:

 

∪ – ∪   ∪ – ∪
Se ri am tra í dos

∪  ∪   –  ∪
se lem bra dos

–  ∪
ho je.

 

Chamo atenção para o fato de que as aliterações em tr/dr, que se manifestam inicialmente nas palavras “entrelaçados”, “traídos” e “lembrados” e, depois, em “sopramos brisas afrodisíacas” e “contratos”, finalmente se resolve magnificamente na musicalidade nasalizada dos versos “em futuras noites, em vislumbres/ de lembranças, sempre nos deslumbrem”.



[1] DUÉ, Casey. “Winged words”. Disp. no site Engines o four ingenuity, no URL http://www.uh.edu/engines/epi2696.htm, acessado em 30/11/2012.

[2] Apud CICERO, Antonio. “Epos e muthos em Homero”. In:_____. Finalidades sem fim. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.294.

[3] Ibid.

Rascunho