Quanto do que somos é determinado pelo que vivemos na infância? Somos aquilo que se desata de todos com quem dividimos a casa, a rua, a escola, o caminho até dizer “eu”? Ou, ao contrário, somos o nó que conseguimos dar com as infinitas linhas que nos trouxeram até aqui? Os poemas de Rafael Zacca, nesta História das crianças, jogam-se — e nos jogam — no abismo dessas perguntas e, muito mais que reconstruir a memória, revelam uma espécie de antimodelo da infância se espraiando pela vida.
Aqui, a vida nova se forma entre os acertos e desacertos da grande famĂlia de que, sem treino, fazemos parte. O avĂ´, a avĂł, o pai, a mĂŁe, os irmĂŁos, os amigos, os professores — toda essa gente anda entre os versos e costura nosso pedaço do mundo. E nĂŁo há nostalgia nesse olhar para o passado: Ă© apenas o tempo dando voltas e desvendando as formas que a infância encontra para continuar conosco — continuar sendo.
A trilha sonora chega pelo rádio do Chevette 87; o espanto diante do mundo é coisa de criança-cientista; as lições chegam durante as brincadeiras, atravessadas, no entanto, pela tristeza; tudo parece ser ainda a fábula encontrada nos primeiros livros, mas a moral não está mais no mesmo lugar; e as conversas imaginadas com pessoas reais podem ser tão embaraçosas quanto as conversas reais com pessoas imaginárias.
Diante da IlĂada, o poeta pergunta:
queria ver
aquiles e pátroclo
antes da guerra
como será que eram?
Essa é a aventura de História das crianças, que nos leva para esse momento antes da guerra — ou quando a vida se organizava de uma maneira que não parecia ser ainda a guerra. Coisa de criança, talvez. Mas a poesia, assim como a infância, não é uma forma de desafiar aquilo em que a vida quer se transformar? Aqui, ao menos, é.
Sobre o autor
Rafael Zacca nasceu em 1987, no Rio de Janeiro (RJ). Publicou os livros de poemas A estreita artéria das coisas (Garupa, 2018), O menor amor do mundo (7Letras, 2020), além do volume de ensaios Formas nômades (Margem da Palavra, 2021). Trabalhou na direção e roteiro dos curtas-metragens Uma floresta e A floresta e a escola. É professor no Departamento de Filosofia da PUC-Rio e um dos criadores da Escola da Palavra.