Pouco se salva

Primeiro volume de “Crônicas inéditas”, de Manuel Bandeira, contém pouquíssima literatura de qualidade
Manuel Bandeira por Ramon Muniz
01/08/2008

O problema dos escritores notáveis é que a reiterada leitura de suas obras acaba nos transformando em pessoas exigentes demais — expectadores que não admitem frustrações. Imaginemos o leitor de Machado de Assis que, depois de seguir o escritor desde Ressurreição até a reviravolta que foi Memórias póstumas de Brás Cubas, se deparasse, uma década mais tarde, não com Quincas Borba, mas com uma novelinha de laivos românticos. Esse leitor razoável, de capacidade crítica mediana, sentiria, no mínimo, certo desconforto.

É, mais ou menos, o que acontece para quem iniciou a leitura da prosa de Manuel Bandeira pelo insuperável Itinerário de Pasárgada ou saboreando as equilibradas Crônicas da província do Brasil: um desânimo abaterá o leitor de Crônicas inéditas – I, cuidadoso trabalho de compilação do poeta e pesquisador Júlio Castañon Guimarães. Raríssimos textos, nesse volume, se aproximam daquela prazerosa quina que tive a oportunidade de elogiar na edição, se não me falha a memória, de abril de 2007 deste Rascunho, formada por A trinca do Curvelo, Reis vagabundos, Golpe do chapéu, Romance do beco e Lenine, quando analisei o relançamento de Crônicas da província do Brasil.

Crônicas inéditas I talvez valha enquanto curioso documento sobre a vida da classe média carioca no início do século 20, pois Bandeira ensaia uma visão de urbanista — preocupando-se com o “desafogo do tráfego” e testemunhando o surgimento dos arranha-céus —, comenta a exibição do primeiro filme falado no Rio de Janeiro, chega a oferecer uma boa — e desoladora — radiografia do mercado de arte brasileiro, fala do panorama cultural e da cafeicultura, digressiona sobre arquitetura, êxodo rural, bailes carnavalescos e concursos de misses, além de ser gentil com amigos. Mas há pouquíssima boa literatura.

Na verdade, sobram lugares-comuns e elogios fáceis. Grande parte das crônicas é dedicada aos espetáculos de música erudita que aconteciam na cidade. Vários instrumentistas, na sua maioria medíocres, recebem a atenção de Bandeira numa enfiada de textinhos banais — alguns, aparentemente, meras cópias dos programas distribuídos nos concertos. Praticando uma crítica impressionista, o poeta destila conclusões discutíveis ­— “cada escritor é transpositor literário de elementos espirituais ou técnicos da pintura, da escultura ou da música” — ou envereda por arroubos capazes de embrulhar o estômago: “a música tem espontaneidade e a frescura dos 23 anos, que era a idade do autor ao tempo em que a compôs”; “a penetrante emotividade de suas interpretações impressionaram fundamente o auditório”; “é um violinista da mais pura escola”.

Sobre uma apresentação da ópera Orfeu e Eurídice, de Gluck, ele diz: “[…] daí a sensação de fresco repouso que produz um enredo de linhas simples, como o do Orfeu, e onde entretanto nos comove a beleza de um dos mais belos símbolos da mitologia”. Mas isso ainda é pouco diante deste trecho verdadeiramente aflitivo: “Não há uma só nota morta no jogo pianístico daquela intérprete finamente vibrante de vida requintada. Grande técnica, em verdade, pelo que há nela de humanidade quintessenciada e profunda”.

Da música de Villa-Lobos ele dirá que é “uma festa de timbres, uma golfada de ritmos, onde os motivos selvagens constituem o substrato da humanidade profunda que sustenta o edifício sonoro”. Qualquer um é “excepcionalmente dotado”. Certo artista apresenta um “inteligente ecletismo”. E Bandeira sintetiza sua opinião sobre determinado recital utilizando-se da mais vazia de todas as conclusões: a de que as peças foram “realizadas […] com muito sentimento”.

Até mesmo o elogio do livro Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade, derrapa em um raciocínio estranho, que nada conclui: “Em Carlos Drummond de Andrade a perfeição técnica não resulta, como em Guilherme de Almeida, do gosto e trabalho do artista, mas da fidelidade do poeta ao movimento lírico da sensibilidade. Daí a frescura desse lirismo que sabe à fruta comida ao pé da árvore”.

Em meio a tanta inutilidade — da inauguração de um órgão na Catedral Metropolitana a elogios despropositados ao jornal em que ele próprio escreve ­—, apeguei-me à esperança de que o poeta recebesse uns bons trocados pelas crônicas. O dinheiro talvez lhe permitisse ter tranqüilidade para escrever seus poemas, quem sabe… De qualquer forma, os leitores fiéis de Bandeira sofrerão uma inevitável crise de melancolia antes mesmo de chegar à metade do livro. E depois de páginas e páginas cheirando a necrológio, o próprio Bandeira reconhecerá, em crônica publicada no dia 9 de setembro de 1930: “Nunca escrevi tão em cima da perna como hoje”. Considerando-se o livro que temos em mãos, o poeta, infelizmente, não foi sincero.

Manuel Bandeira por Ramon Muniz

Rescaldo
Mas será possível que, em quatrocentas páginas de crônicas, não se salve alguma coisa? Bandeira, sabemos bem, é dos raros que merecem esse trabalho de pinçar. Vamos a ele.

Para os pesquisadores do modernismo, por exemplo, as crônicas Amar, verbo intransitivo, Mário de Andrade e Ah Juju servem como estudo sociológico dos fenômenos comuns a todas as igrejinhas: nas duas primeiras, vemos seus participantes protegerem-se uns aos outros sem qualquer pudor, a ponto de a suspensão do juízo crítico tornar-se regra; na terceira, lembramos que os rompimentos são igualmente comuns (no caso, o de Graça Aranha).

Mas Bandeira não era leniente com todos: em Um caso à parte ele desanca os modismos, mostrando não ter perdido’ a lucidez:

Precisamos urgentemente voltar à métrica, à rima, à sintaxe lusíada […]. O modernismo era suportável quando extravagância de alguns. Agora é a normalidade de toda a gente. Então depois que reinventaram a brasilidade, a coisa tornou-se uma praga.

Os livros de poesia só falam de candomblés e de urucungos. Nos quadros só se vêem pretos, carros de boi e desenho errado.

Confesso que acho um certo sabor nos poemas dos iniciadores. Os meninos que vieram depois é que estão caceteando.

Aliás, seu amor à métrica e à boa sintaxe revela-se também no justo elogio que faz aos parnasianos Olavo Bilac e Raimundo e Alberto Oliveira, “autores de uma obra equilibrada e harmoniosa”, que “reagiu contra a incorreção e a eloqüência derramada dos românticos, criando em nossa língua uma técnica precisa e comedida. Mas essa técnica degenerou depois em mãos pesadas, afeitas a só carpinejar. A tradição camoniana, tão sensível nos três mestres, não foi assimilada pelos epígonos”. Na mesma crônica, Apologia de um poeta, louva, com acerto, a obra satírica de Emílio de Menezes, hoje infelizmente esquecida.

Sua veia irônica também surge, aqui e ali: criticando os jornais da época — “a imprensa do Rio me dá a impressão de uma casa de cômodos da rua Senador Eusébio quando a d. Júlia Lavadeira acabou de meter a mão na cara da Chica do Alfredo” — ou espicaçando os cantores líricos e as produções operísticas nacionais — “resulta sempre um enterro de terceira classe, desses que chegam ao cemitério à hora de fechar o portão: os convidados estão apressados, os coveiros de mau humor; o defunto é despachado com um mínimo de cal”.

Respiramos aliviados ao encontrar a perfeita descrição de certo baile carnavalesco, ilha de vivacidade nesse mar de textos insignificantes:

Outro espetáculo curioso é o do Teatro Fênix que se especializou em bailes para homens. Ali as senhoras pagam entrada porque não é possível distingui-las dos tipos que se fantasiam de mulher com uma perfeição em que não entra somente a habilidade e a arte, mas o temperamento também. E há-os de todas as cores, de todas as idades, de todas as classes, nacionais e estrangeiros. O círculo de mirones toma com eles liberdades cruéis que vão do carinho acanalhado ao pontapé de troça. No meio disso sujeitos maduros, de capote, guarda-chuvas e óculos de tartaruga combinando com seriedade encontros acenando os dedos para ajustar preços. Aqui e ali, nas frisas e camarotes, a timidez de um grupo cuidadosamente mascarado trai a família que veio só para ver. Aquele português porém instalou-se com a sua gente numa mesa da platéia em plena bagunça. A mulher traz ao colo um menino de peito e amamenta-o ali mesmo. De um camarote bisnagam-lhe o seio exposto. O português dana-se, não por causa do seio mas por causa da criança: “Olha a criança, seu estúpido!” Passa um lindo rapaz que a assistência aclama de miss Brasil. E João, que está comigo, confessa desesperado que há nos olhos da falsa mulher qualquer coisa que ele nunca encontrou nas mulheres de fato.

Em meio a várias crônicas elogiando escritores e artistas, a maioria deles seus amigos ou conhecidos, os melhores textos, nada geniais, referem-se a Augusto Frederico Schmidt (Um poeta que não quer cantar mais o Brasil) e Emily Dickinson (Poesia). O comentário mais brilhante, entretanto — inusitado e revelador não só da personalidade de Bandeira, mas também de sua visão crítica, enquanto leitor da obra machadiana —, encontramos na crônica Antonieta Rudge:

Nos versos como no conto o gosto doentio de espiar o sofrimento alheio. E a psicologia dura, derrotista, insultante de quase toda a obra. Sempre o móvel egoísta, e ainda que limpo, inconfessável. […] Em suma eu achava, e ainda hoje acho, que Machado de Assis era um monstro. Um monstro que não fazia mal a ninguém, que nunca haveria de fazer mal a ninguém, mas não obstante um monstro.

Enfim, se jogarmos fora as análises superficiais, as tiradinhas sem graça, os elogios desmedidos, as repetições e os textinhos gentis ou tão-somente corretos sobram quatro crônicas: a extremamente bem-humorada Saudades dos telefones do Recife, uma crítica antecipada aos serviços de telemarketing contemporâneos; a visão fria e quase sarcástica do folclore brasileiro em Festas do Nordeste; a ironia antibolchevique de Comunismo: polícia e poesia; e as saudosas vidraças de dona Aninha Viegas, da crônica Villegagnon tem hoje um aspecto pacífico — texto leve, fluido, paradigma do gênero crônica.

Minha sugestão, caro leitor, é a seguinte: anote esses quatro títulos em um papelzinho, vá até a livraria mais próxima, peça o volume, acomode-se da melhor forma possível, leia com vagar e cuidado apenas essas crônicas, devolva o livro e saia da loja com a certeza de que até mesmo Manuel Bandeira consegue ser maçante — mas quando acerta, é sempre genial.

Crônicas inéditas I
Manuel Bandeira
CosacNaify
440 págs.
Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho
Nasceu no Recife, no dia 19 de abril de 1886. Lançou seu primeiro livro em 1917, A cinza das horas. Com Libertinagem, de 1930, passa a ser considerado um dos poetas mais importantes do modernismo brasileiro. Depois, viriam outros livros: Estrela da manhã, Lira do cinqüent’anos, Belo belo e Estrela da tarde. Foi tradutor, deixou importantes estudos literários e organizou antologias de poemas. Sua autobiografia literária, Itinerário de Pasárgada, é um clássico do gênero. Em 1937, Bandeira reuniu em volume uma seleção de seus textos publicados na grande imprensa: Crônicas da Província do Brasil, reeditado em 2006 pela CosacNaify. Além de Crônicas inéditas I, a editora prepara outros volumes, referentes às crônicas das décadas de 1930 e 1940. Manuel Bandeira morreu no Rio de Janeiro, em 13 de outubro de 1968, aos 82 anos de idade.
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

Rascunho