Não, isto não é uma resenha ou crítica sobre o pequeno-grande livro homônimo de Roland Barthes. A missão deste ensaio é muito menos pretensiosa: dialogar sobre o papel do editor no burilar do texto e os diferentes a(u)tores envolvidos nesse tratamento, tão necessário a um conteúdo editorial — no nosso caso, um livro.
Ao contrário do caráter individual que Barthes atribui ao prazer e à satisfação, em produção de livros, o processo é coletivo, de equipe. Uma equipe com um maestro — neste caso, o editor. Mas editor que é editor não faz livro para si, e sim para leitores, para que eles tenham prazer, sintam-se privilegiados, presenteados com a obra que têm em mãos, ou que acabam de ler, de ganhar, de se apossar como de um objeto de desejo. Para isso, a qualidade do texto, o cuidado e o perfil de linguagem adotado naquele projeto devem estar em total consonância com seu público-alvo.
Nesse sentido, o papel do editor é fundamental para que essa “orquestra editorial” não desafine, para que as palavras estejam em seus devidos lugares, letras não estejam saltadas, andando na contramão, e expressões não sejam tomadas como ruidosas. Trabalhamos para uma harmonia entre palavras, diálogos, informações, imagens, comunicação, para que tudo se encaixe da melhor maneira no espaço retangular de caracteres em papel ou bytes.
Marketing editorial é livro com texto bom
Há editoras e “profissionais” do livro que atribuem mais valor a uma boa campanha, a uma aposta editorial, à “embalagem” do livro, do que zelam por um produto de qualidade, essencial: o texto, a fluidez, a história bem contada, com um bom tratamento, dosada na medida certa.
Sem esse casamento entre autor e editor — e suas devidas etapas cumpridas ao longo do necessário processo editorial —, não há capa, divulgação, verba de marketing que resolva. Texto ruim, mal-escrito, sem pé nem cabeça, caixotes, barrigas, buracos, fissuras abruptas podem colocar tudo a perder.
Temos que ser zeladores do texto, do coração do livro. Um bom trabalho editorial precisa preservar seu autor, seu argumento, dar vida àquele original da melhor forma possível, esgotar as possibilidades.
Veja bem, texto bom não é texto erudito, culto, beirando o inacessível. Nada tem a ver. A linguagem muitas vezes “pede” para ser mais oral, mais verbalizada. Isso tem razão de ser, dependendo da obra em questão.
Conhecimento de causa
Em se tratando de livros, estar (ou já ter estado) dos dois lados do balcão ajuda muito no quesito tratamento de texto. Quem tem prazer em trabalhar com texto, quem gosta de ler, de escrever, de reescrever, de observar rasuras, ponderações, comentários, gosta de estar em boa companhia (dicionários e fontes fidedignas dos mais variados tipos são recomendados) — toda a parafernália que envolve a engenharia de se “limpar” uma página e obter o resultado desejado. E precisa ter a agenda em dia para cumprir prazos e a caneta (ou teclado) controlada na hora das emendas. O necessário e recomendado, apenas. Sugestões e comentários à parte são bem-vindos, mas com a delicadeza de não serem inseridos de pronto no texto.
Às vezes nos deparamos de um lado com autores e tradutores nutrindo preciosismos sobre seus trabalhos e, de outro, com editores, preparadores e revisores de provas intervindo, mexendo, manobrando palavras, termos e expressões com o intuito de estabelecer fluidez, atribuir coesão e coerência ao texto, com a difícil tarefa limiar de não intervir no estilo do autor — sobretudo quando em obras de ficção —, evitar alterações descabidas de sentido, conteúdo e informação.
Ajuda muito quando, ao longo de alguns anos de carreira, você já teve a oportunidade de responder por essas funções. Requisitos necessários como qualidade, compreensão, jogo de cintura, agilidade são mais bem assimilados. O colocar-se no lugar do outro, o entender as necessidades de cada um, daquele texto, daquele livro, gostos, motivos e saber sugerir, dosar, contribuir, ouvir, dialogar, negociar são atitudes recomendadas.
Tudo em prol do livro, que por essência é um produto coletivo e que, se bem feito, proporciona prazer coletivo. Desprovir-se de vaidades, de atitudes voluntariosas, saber conduzir o projeto editorial em parceria é um caminho interessante para se obter o sucesso desejado para esse produto no mercado. E, por que não, para reconhecer a importância, a contribuição, de cada etapa do processo editorial e saber valorizar o papel de cada profissional na construção daquele produto. Livro e leitura sempre agregam, é de sua natureza.
Questionar sempre
No jogo da edição de livros, que envolve uma constante negociação entre as partes, precisamos ter nossos companheiros de jornada bem perto. Por incrível que pareça, as dúvidas são nossas aliadas. É a partir delas que buscamos livros e fontes de consulta, acionamos nossas fontes e contatos para determinado assunto ou idioma, checamos e atualizamos nossos conhecimentos e talvez o principal: estamos sempre questionando, raciocinando, duvidando.
Em edição de texto, certezas demais não são bem-vindas, segurança, sim.
O palco é a página
Lembro de Roger Chartier — pelo trocadilho com o título e assunto de seu livro, Do palco à página — e de Sérgio Britto quando penso em representação, oralidade, escrita fluida, linguagem a ser devorada com total naturalidade, convidando o leitor a entrar, a “pisar” a página, como em um palco. O leitor, portanto, como um componente a mais daquela história, daquele discurso, dividindo e desfrutando do prazer do texto de que falamos no começo.
Ator e autor dos mais célebres, Sérgio Britto — prêmio Jabuti pela autobiografia O teatro & eu: memórias — tinha um modo peculiar de produzir, escrever, representar suas idéias em significantes e significados — bem-vindos aqui os termos lingüísticos. Sua escrita era “gravada” à mão — como é a de Milton Hatoum —, e essa gravação exigia muito da preparação e edição do texto final.
Encontrar o ponto de equilíbrio ideal para o leitor, convidando-o e ao mesmo tempo instigando-o a fazer parte da história, a “subir no palco”, a questionar, a argumentar, e, por que não, a discordar.
Falamos de ficção e memória. Falamos de livros. Livros (e autores-atores) que falam por si.
Os livros ardem
Manuel Rivas, célebre escritor e jornalista galego, tem um livro com este mote, muito pertinente: de que ardem os livros. Ardem no sentido de que textos, histórias, palavras, bibliotecas inteiras necessitam de expectativa, imaginação, memória, público, tratamento, povoamento.
O exercício textual é composto de reações, reações que podem proporcionar prazer materializado através do sentido e do significado das palavras.
A chama da leitura é um prazer indispensável ao ser humano.