🔓 O elogio da literatura como manifesto contra a literatura

Nono texto de Flávio Ricardo Vassoler escrito durante sua estadia em Chicago
10/11/2014
Elogio_literatura_ilustra_Theo_11_novembro_14
Ilustração: Theo Szczepanski

Chicago, 21 de outubro de 2014

Downtown, State Street, subsolo da livraria Barnes & Nobles:

Seção de Teoria Social
Seção de Filosofia
Seção de Shakespeare
Seção de Literatura em Língua Inglesa

A indústria cultural secciona o pensamento à completa revelia da República das Ideias que aproxima os autores e suas criações como fronteiras contíguas a serem recíproca e constantemente invadidas, pilhadas, questionadas e partilhadas.

Os limites das minhas seções são os limites do meu mundo: a compartimentação do real pressupõe e (re)produz o embotamento das experiências e a resignação diante dos marcos autoritários que nos coagem a tipificar as vivências como se espaço e tempo não fossem completamente contíguos, como se a memória não fosse a ponte etérea a ligar o ontem como território inequívoco do que ainda há de vir.

Seções das estantes de livros
Seções dos guarda-roupas
Seções dos apartamentos —
Fronteiras farpadas entre as casas e condomínios —
Seções das fábricas
Seções dos escritórios
Departamentos das faculdades (as nĂŁo-universidades)
SessĂŁo da Tarde
Vivissecção da vida
A literatura e seus parágrafos
A pintura e suas molduras
A mĂşsica e suas partituras
A escultura e seus pedestais

O esforço de um escritor para tentar expressar — isto é, seccionar — o caos anímico se torna autoconsciente quando o acúmulo represado de vida cinde a barragem dos enquadramentos poéticos e passa a jorrar como as metamorfoses do que é líquido: circular, conto, triangular, poesia, retangular, prosa, esférico, romance, espraiado, ensaio.

Talvez a melhor definição — isto é, vivissecção — da arte literária seja a vida que ensaia.

O ensaio pressupõe um sujeito trêmulo que, ainda assim, ousa tatear.

Quando o bom e velho Edgar Allan Poe publicou A filosofia da composição, em 1846, a fé do indivíduo em seu poder construtivo parecia ilimitada. Um poema e uma narrativa, assim advogava Poe, poderiam ser concebidos e articulados de forma totalmente causal, uma vez que o autor tivesse em mente, desde o início, o desfecho de sua criação. Com o término idealizado a priori, a sequência narrativa, a sucessão de seus parágrafos, as descrições, a aparição das personagens, a concatenação do enredo, todos e cada um dos elementos se transformariam em derivações da estória composta como um todo sistêmica e hierarquicamente estruturado do fim ao início, do início ao fim.

Nada seria supérfluo
Tudo seria essencial
Nada seria gratuito

Ora, Poe vivia os tempos de entusiasmo com as Revoluções Francesa e Industrial; o espectro comunista, dois anos após a publicação de A filosofia da composição, logo começaria a rondar a Europa; tudo o que era inercial e tradicionalmente sólido parecia, de fato, a ponto de se desmanchar no ar. Ainda assim, o tom lúgubre e mórbido da literatura de Poe já parecia prenunciar o reverso do entusiasmo de sua forma poética totalizante.

Se, hoje, Edgar Allan Poe caminhasse entre as estantes das livrarias Barnes & Nobles, em Chicago, da Shakespeare and Company, em Londres, e da Livraria Cultura, em São Paulo, o escritor norte-americano teria que repensar, historicamente, a noção de que o controle da forma pressupõe o apogeu da criação.

Quando o capitalismo tardio faz com que nosso controle passe a nos controlar; quando ao indivíduo industrial só resta o controle remoto; quando as diversas seções do sempre o mesmo pressupõem nossa individualidade para que a similaridade dos intercâmbios tenha mais liquidez; quando a indústria cultural faz com que Frankenstein dite a Mary Shelley como e o que deve ser escrito, a composição a priori da filosofia se volta contra a própria filosofia da composição.

O todo se transforma no que é falso, o todo verdadeiro se transforma na nostalgia de um outro todo, o todo se transforma na saudade e na vontade de uma outra totalidade social — a Utópolis que (ainda?) não foi fundada.

Os escombros, os estilhaços e os fragmentos — as experiências danificadas — é que parecem conter, em suas irregularidades e indefinições e gritos e memórias e gemidos descontínuos, o ímpeto para narrar um possível (?) contratodo.

A filosofia da composição se tornou historicamente hegemônica, contra o sentido artístico de Poe, quando Hollywood e as telenovelas brasileiras transformaram a compressão da vida entre segunda-feira e domingo em entretenimento. Tudo é pensado, tudo é calculado — tudo é administrado. A própria administração total, em grande medida, vai se tornando obsoleta: o espectador sequer sente comichões em segurar suas mijadas até os intervalos — ele jamais perderia a novidade dos episódios sempre idênticos; o internauta, de bom grado, reduz seus textos a textículos para que suas postagens no Facebook não sejam comprimidas com o “Continuar lendo” e o “Ver mais”. Do contrário, quem, ou pior, quantos vão “Curtir” a postagem como o outdoor de si mesmo? (Estudo de caso: o Facebook como Você S.A..) O “Curtir” amordaça o juízo crítico e reduz o diálogo à rapidez e ao silêncio do que há para dizer. Tudo é muito sensato, tudo é muito razoável: se o Facebook permitir a aparição de textos longos na timeline, haverá desproporção no tamanho das postagens e, consequentemente, desproporção na divisão democrática do espaço virtual. Mas, ao seccionar a imaginação com a incorporação resignada do (não-)fluxo dos textos — incorporação que, a bem dizer, acontece em meio às micropausas no trabalho para acompanharmos, via I-Phone, a variedade idêntica do Facebook que mimetiza a rotina de trabalho —, a democracia virtual (re)produz a composição da realidade como a realidade da nossa decomposição.

Tudo é supérfluo
Nada Ă© essencial
Nada Ă© gratuito

É por isso que, para alçar Edgar Allan Poe, é preciso criticar Edgar Allan Poe, assim como para escrever um elogio da literatura é preciso narrar um manifesto contra a literatura.

Certa vez, em uma conversa (virtual) com uma amiga de Campinas, Patrícia — chamemo-la assim — me afirmou que, se a arte e o pensamento críticos quiserem permanecer emancipatórios, eles precisam resgatar a dignidade do indivíduo.

Imaginei PatrĂ­cia, cujos olhos negros sĂŁo profundos e vagos como um tĂşnel, com um semblante ainda mais melancĂłlico antes de contradizĂŞ-la com um Ă­mpeto de concĂłrdia:

NĂŁo, PatrĂ­cia,
O indivíduo é o que não há
O indivĂ­duo Ă© o que teima em haver
O indivíduo é o que quase já não existe
O indivĂ­duo Ă© o girino trĂŞmulo que lembra a existĂŞncia anfĂ­bia do zigoto
O indivĂ­duo Ă© a dissensĂŁo contra o consenso das prateleiras
O indivíduo é a solidão repleta de vozes e memórias contra a multidão solitária
O indivĂ­duo Ă© o resgate da multidĂŁo
O indivĂ­duo Ă© a barricada do soslaio no metrĂ´ de Moscou, SĂŁo Paulo e Chicago

[quando os olhares nĂŁo podem se encontrar por mais de alguns segundos
[sem que haja medo e interpelações —
[“Why are you looking at me?
[What the hell are you looking for?”

O indivíduo é o flerte diante do sorriso de soslaio que ela esboça
O indivĂ­duo Ă© a pergunta indevida
O indivĂ­duo Ă© o Ă­mpeto pela resposta
O indivĂ­duo Ă© quem nĂŁo se quer indivisĂ­vel
O indivĂ­duo Ă© o antiĂşnico, sua essĂŞncia Ă© a partilha
O indivĂ­duo Ă© a tentativa do perdĂŁo
O indivíduo há muito já não é a partida, mas a chegada incerta
O indivíduo há muito não é o sujeito da máxima “Penso, logo existo”
O indivĂ­duo dĂłi e se esgueira pelo real como resistĂŞncia
O indivĂ­duo tateia
O indivíduo esboça — o indivíduo é um esboço
O indivĂ­duo Ă© o horizonte vertiginoso do crepĂşsculo, suas cores turvas, mescladas e

[fugazes

O indivĂ­duo sĂŁo os olhos bem abertos Ă  noite
O indivĂ­duo Ă© a verdade da insĂ´nia
O indivíduo é o cansaço que não quer dormir
O indivĂ­duo Ă© o corpo que lateja contra a pasmaceira
O indivĂ­duo Ă© teu beijo furtivo, PatrĂ­cia
O indivíduo é o abraço ao léu
O indivĂ­duo Ă© a contingĂŞncia do que Ă© alegre
O indivíduo é a hospitalidade que nos dá guarida
O indivĂ­duo Ă© a despedida-para-o-reencontro
O indivíduo é o que (ainda?) não está aqui
O indivĂ­duo nĂŁo Ă© o indivĂ­duo
O indivĂ­duo nĂŁo Ă© o individual

O indivĂ­duo Ă© o descontĂ­nuo

O indivíduo é o interregno do outono — frágil como as folhas cadentes
O indivĂ­duo Ă© a fresta da janela no inverno de Moscou
O indivĂ­duo Ă© a expectativa do vento invernal de Chicago
O indivĂ­duo acredita que a neve nĂŁo derrete
O indivíduo é a dúvida entre o ninho acolhedor e o primeiro voo do pássaro
O indivíduo é a errância do voo
A queda Ă© o indivĂ­duo
O romance Ă© a narrativa da queda
A poesia é a fé
O ensaio, como síntese, é a reunião — e a conflagração — de tudo e todos aqueles que

[(se) partiram

A literatura é a cicatrização — e a adaga

Rascunho