
Chicago, 21 de outubro de 2014
Downtown, State Street, subsolo da livraria Barnes & Nobles:
Seção de Teoria Social
Seção de Filosofia
Seção de Shakespeare
Seção de Literatura em LĂngua Inglesa
A indĂşstria cultural secciona o pensamento Ă completa revelia da RepĂşblica das Ideias que aproxima os autores e suas criações como fronteiras contĂguas a serem recĂproca e constantemente invadidas, pilhadas, questionadas e partilhadas.
Os limites das minhas seções sĂŁo os limites do meu mundo: a compartimentação do real pressupõe e (re)produz o embotamento das experiĂŞncias e a resignação diante dos marcos autoritários que nos coagem a tipificar as vivĂŞncias como se espaço e tempo nĂŁo fossem completamente contĂguos, como se a memĂłria nĂŁo fosse a ponte etĂ©rea a ligar o ontem como territĂłrio inequĂvoco do que ainda há de vir.
Seções das estantes de livros
Seções dos guarda-roupas
Seções dos apartamentos —
Fronteiras farpadas entre as casas e condomĂnios —
Seções das fábricas
Seções dos escritórios
Departamentos das faculdades (as nĂŁo-universidades)
SessĂŁo da Tarde
Vivissecção da vida
A literatura e seus parágrafos
A pintura e suas molduras
A mĂşsica e suas partituras
A escultura e seus pedestais
O esforço de um escritor para tentar expressar — isto Ă©, seccionar — o caos anĂmico se torna autoconsciente quando o acĂşmulo represado de vida cinde a barragem dos enquadramentos poĂ©ticos e passa a jorrar como as metamorfoses do que Ă© lĂquido: circular, conto, triangular, poesia, retangular, prosa, esfĂ©rico, romance, espraiado, ensaio.
Talvez a melhor definição — isto é, vivissecção — da arte literária seja a vida que ensaia.
O ensaio pressupõe um sujeito trêmulo que, ainda assim, ousa tatear.
Quando o bom e velho Edgar Allan Poe publicou A filosofia da composição, em 1846, a fĂ© do indivĂduo em seu poder construtivo parecia ilimitada. Um poema e uma narrativa, assim advogava Poe, poderiam ser concebidos e articulados de forma totalmente causal, uma vez que o autor tivesse em mente, desde o inĂcio, o desfecho de sua criação. Com o tĂ©rmino idealizado a priori, a sequĂŞncia narrativa, a sucessĂŁo de seus parágrafos, as descrições, a aparição das personagens, a concatenação do enredo, todos e cada um dos elementos se transformariam em derivações da estĂłria composta como um todo sistĂŞmica e hierarquicamente estruturado do fim ao inĂcio, do inĂcio ao fim.
Nada seria supérfluo
Tudo seria essencial
Nada seria gratuito
Ora, Poe vivia os tempos de entusiasmo com as Revoluções Francesa e Industrial; o espectro comunista, dois anos após a publicação de A filosofia da composição, logo começaria a rondar a Europa; tudo o que era inercial e tradicionalmente sólido parecia, de fato, a ponto de se desmanchar no ar. Ainda assim, o tom lúgubre e mórbido da literatura de Poe já parecia prenunciar o reverso do entusiasmo de sua forma poética totalizante.
Se, hoje, Edgar Allan Poe caminhasse entre as estantes das livrarias Barnes & Nobles, em Chicago, da Shakespeare and Company, em Londres, e da Livraria Cultura, em São Paulo, o escritor norte-americano teria que repensar, historicamente, a noção de que o controle da forma pressupõe o apogeu da criação.
Quando o capitalismo tardio faz com que nosso controle passe a nos controlar; quando ao indivĂduo industrial sĂł resta o controle remoto; quando as diversas seções do sempre o mesmo pressupõem nossa individualidade para que a similaridade dos intercâmbios tenha mais liquidez; quando a indĂşstria cultural faz com que Frankenstein dite a Mary Shelley como e o que deve ser escrito, a composição a priori da filosofia se volta contra a prĂłpria filosofia da composição.
O todo se transforma no que é falso, o todo verdadeiro se transforma na nostalgia de um outro todo, o todo se transforma na saudade e na vontade de uma outra totalidade social — a Utópolis que (ainda?) não foi fundada.
Os escombros, os estilhaços e os fragmentos — as experiĂŞncias danificadas — Ă© que parecem conter, em suas irregularidades e indefinições e gritos e memĂłrias e gemidos descontĂnuos, o Ămpeto para narrar um possĂvel (?) contratodo.
A filosofia da composição se tornou historicamente hegemĂ´nica, contra o sentido artĂstico de Poe, quando Hollywood e as telenovelas brasileiras transformaram a compressĂŁo da vida entre segunda-feira e domingo em entretenimento. Tudo Ă© pensado, tudo Ă© calculado — tudo Ă© administrado. A prĂłpria administração total, em grande medida, vai se tornando obsoleta: o espectador sequer sente comichões em segurar suas mijadas atĂ© os intervalos — ele jamais perderia a novidade dos episĂłdios sempre idĂŞnticos; o internauta, de bom grado, reduz seus textos a textĂculos para que suas postagens no Facebook nĂŁo sejam comprimidas com o “Continuar lendo” e o “Ver mais”. Do contrário, quem, ou pior, quantos vĂŁo “Curtir” a postagem como o outdoor de si mesmo? (Estudo de caso: o Facebook como VocĂŞ S.A..) O “Curtir” amordaça o juĂzo crĂtico e reduz o diálogo Ă rapidez e ao silĂŞncio do que há para dizer. Tudo Ă© muito sensato, tudo Ă© muito razoável: se o Facebook permitir a aparição de textos longos na timeline, haverá desproporção no tamanho das postagens e, consequentemente, desproporção na divisĂŁo democrática do espaço virtual. Mas, ao seccionar a imaginação com a incorporação resignada do (nĂŁo-)fluxo dos textos — incorporação que, a bem dizer, acontece em meio Ă s micropausas no trabalho para acompanharmos, via I-Phone, a variedade idĂŞntica do Facebook que mimetiza a rotina de trabalho —, a democracia virtual (re)produz a composição da realidade como a realidade da nossa decomposição.
Tudo é supérfluo
Nada Ă© essencial
Nada Ă© gratuito
É por isso que, para alçar Edgar Allan Poe, é preciso criticar Edgar Allan Poe, assim como para escrever um elogio da literatura é preciso narrar um manifesto contra a literatura.
Certa vez, em uma conversa (virtual) com uma amiga de Campinas, PatrĂcia — chamemo-la assim — me afirmou que, se a arte e o pensamento crĂticos quiserem permanecer emancipatĂłrios, eles precisam resgatar a dignidade do indivĂduo.
Imaginei PatrĂcia, cujos olhos negros sĂŁo profundos e vagos como um tĂşnel, com um semblante ainda mais melancĂłlico antes de contradizĂŞ-la com um Ămpeto de concĂłrdia:
NĂŁo, PatrĂcia,
O indivĂduo Ă© o que nĂŁo há
O indivĂduo Ă© o que teima em haver
O indivĂduo Ă© o que quase já nĂŁo existe
O indivĂduo Ă© o girino trĂŞmulo que lembra a existĂŞncia anfĂbia do zigoto
O indivĂduo Ă© a dissensĂŁo contra o consenso das prateleiras
O indivĂduo Ă© a solidĂŁo repleta de vozes e memĂłrias contra a multidĂŁo solitária
O indivĂduo Ă© o resgate da multidĂŁo
O indivĂduo Ă© a barricada do soslaio no metrĂ´ de Moscou, SĂŁo Paulo e Chicago
[quando os olhares nĂŁo podem se encontrar por mais de alguns segundos
[sem que haja medo e interpelações —
[“Why are you looking at me?
[What the hell are you looking for?”
O indivĂduo Ă© o flerte diante do sorriso de soslaio que ela esboça
O indivĂduo Ă© a pergunta indevida
O indivĂduo Ă© o Ămpeto pela resposta
O indivĂduo Ă© quem nĂŁo se quer indivisĂvel
O indivĂduo Ă© o antiĂşnico, sua essĂŞncia Ă© a partilha
O indivĂduo Ă© a tentativa do perdĂŁo
O indivĂduo há muito já nĂŁo Ă© a partida, mas a chegada incerta
O indivĂduo há muito nĂŁo Ă© o sujeito da máxima “Penso, logo existo”
O indivĂduo dĂłi e se esgueira pelo real como resistĂŞncia
O indivĂduo tateia
O indivĂduo esboça — o indivĂduo Ă© um esboço
O indivĂduo Ă© o horizonte vertiginoso do crepĂşsculo, suas cores turvas, mescladas e
[fugazes
O indivĂduo sĂŁo os olhos bem abertos Ă noite
O indivĂduo Ă© a verdade da insĂ´nia
O indivĂduo Ă© o cansaço que nĂŁo quer dormir
O indivĂduo Ă© o corpo que lateja contra a pasmaceira
O indivĂduo Ă© teu beijo furtivo, PatrĂcia
O indivĂduo Ă© o abraço ao lĂ©u
O indivĂduo Ă© a contingĂŞncia do que Ă© alegre
O indivĂduo Ă© a hospitalidade que nos dá guarida
O indivĂduo Ă© a despedida-para-o-reencontro
O indivĂduo Ă© o que (ainda?) nĂŁo está aqui
O indivĂduo nĂŁo Ă© o indivĂduo
O indivĂduo nĂŁo Ă© o individual
O indivĂduo Ă© o descontĂnuo
O indivĂduo Ă© o interregno do outono — frágil como as folhas cadentes
O indivĂduo Ă© a fresta da janela no inverno de Moscou
O indivĂduo Ă© a expectativa do vento invernal de Chicago
O indivĂduo acredita que a neve nĂŁo derrete
O indivĂduo Ă© a dĂşvida entre o ninho acolhedor e o primeiro voo do pássaro
O indivĂduo Ă© a errância do voo
A queda Ă© o indivĂduo
O romance Ă© a narrativa da queda
A poesia é a fé
O ensaio, como sĂntese, Ă© a reuniĂŁo — e a conflagração — de tudo e todos aqueles que
[(se) partiram
A literatura é a cicatrização — e a adaga