“São conhecidos os casos de Saramago, dos irmãos Campos, James Joyce, Lobo Antunes, convictos da manutenção de sua escrita exatamente como a compuseram. A vontade desses escritores não se questiona.” Assim a autora Cidinha da Silva defende e justifica as escolhas feitas nas novas edições dos livros Casa de alvenaria, da mineira Carolina Maria de Jesus, recém-lançados em dois volumes pela Companhia das Letras.
A editora, junto com um conselho formado especialmente para editar as obras de Carolina, decidiu manter idiossincrasias do texto original que estão em descompasso com a norma culta do português, como no caso das palavras “esqueçe”, com cedilha, “bôa”, com circunflexo, entre diversos outros exemplos.
Esse foi o gatilho para o início de uma discussão quente que envolve escritores, revisores e críticos de diversas matizes. No centro da discussão estão duas questões: essa grafia “alternativa” seria parte da voz literária de Carolina? E uma outra, essa bem mais difícil de provar: se estivesse viva, a autora optaria por uma revisão mais aprofundada de seus escritos ou não?
A professora Regina Dalcastagnè, do Departamento de Teoria Literária da Universidade de Brasília (UnB), tem se manifestado nas redes sociais criticando a decisão da editora. Para ela, a manutenção dos erros de grafia tem o efeito de “reduzir Carolina Maria de Jesus à sua baixa escolaridade”.
“Ela deixa de ser reconhecida como a grande escritora que foi para permanecer, sempre, como a figura exótica: a ‘favelada que escrevia’”, diz. “Os escritores oriundos da elite sempre têm seus textos revisados por profissionais antes da publicação. Por que a obra de Carolina não merece este cuidado? Por que o erro de ortografia do jornalista ou do diplomata é considerado apenas isto, um erro, que pode e deve ser corrigido, enquanto o erro de Carolina é considerado o elemento central de sua obra?”, diz a professora, responsável pelo estudo Literatura brasileira contemporânea: um território contestado, que revelou que a literatura brasileira é um espaço pouco plural, dominado por homens da classe média que escrevem sobre dramas vividos na metrópole.
Sempre polêmica
A trajetória da mineira Carolina Maria de Jesus sempre foi marcada por lances polêmicos que relacionam sua vida pessoal com sua produção literária. Moradora da favela do Canindé, em São Paulo, ela publicou seu primeiro livro, Quarto de despejo — Diário de uma favelada, em 1960, após ser entrevistada por Audálio Dantas, que viraria uma espécie de “editor” informal de sua obra — o jornalista, morto em 2018, tem sido atacado pelos defensores das novas edições, considerado um “vilão” que teria “forçado a barra” para que Carolina continuasse a escrever seus diários, o que provocou reação da filha de Audálio na redes sociais.
O livro virou um best-seller ao revelar de forma comovente a dura realidade dos favelados na década de 1950, seus costumes, a violência que os cercavam, a fome e todas as dificuldades para sobreviver em meio à miséria. Traduzido em várias línguas, Quarto de despejo deu a partida para uma jornada de altos e baixos na vida de Carolina.
Com apenas dois anos de ensino formal, ela virou um fenômeno literário: foi capa de revista no Brasil e no exterior e tema de documentário da TV alemã. Figuras como o italiano Alberto Moravia e o brasileiro Otto Lara Resende escreveram sobre sua obra. Mas, junto com a consagração crítica, sempre pairou um olhar de exotismo que não dissociava sua escrita de sua história de vida.
Casa de alvenaria, publicado em 1961, um ano depois da estreia de Carolina, mantém o mesmo tom confessional de Quarto de despejo. Porém, o cenário é a cidade de Osasco, para onde a autora se muda com os filhos, e os relatos dão conta de uma mulher requisitada pela imprensa, leitores e autoridades. O subtítulo do livro, que não aparece na edição da Companhia das Letras, já deixa claro a mudança de perspectiva: “Diário de um ex-favelada”.
As edições
Em um longo texto de introdução, assinado pela escritora Conceição Evaristo e por Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina, elas afirmam que “nossa proposta foi deixar a literatura, a escrita de Carolina poder ser, sem as tantas interferências que aconteceram nas publicações passadas e mesmo em algumas mais recentes”.
Uma mudança bastante clara quando se compara a edição comemorativa de 60 anos de Quarto de despejo, publicada pela Ática em 2020, e esta agora de Casa de alvenaria. No livro da Ática, é possível ver de forma clara “a mão do editor”, seja na pontuação ou na ortografia das palavras.
“Penso que quem não consegue atravessar a falta de norma culta para chegar à beleza, densidade, singularidade, complexidade e aos paradoxos da literatura de Carolina de Jesus no afã de construir um lugar de existência para si mesma não deveria pesquisá-la”, diz Cidinha da Silva, para quem as decisões de um conselho editorial composto por mulheres negras não deveriam ser contestadas.
“O Conselho decidiu não higienizá-la, esvaziá-la, determinou-se a apresentá-la da maneira mais integral possível. Uma apresentação para leitores e leitoras, não voltada apenas para especialistas, como uma reivindicação que li no debate.”
Já Regina Dalcastagnè observa um descompasso entre o esforço para se preservar a autenticidade do texto original e o conteúdo que se apresenta nas novas edições de Casa de alvenaria. “Basta olhar as poucas páginas dos manuscritos reproduzidas na edição para perceber que a pontuação foi alterada, sinais gráficos (como o travessão) foram incluídos, algumas palavras não foram reproduzidas tal como estão no original, com plurais aparecendo ou desaparecendo aqui e ali, palavras foram suprimidas”, diz. “No final das contas, parecem estar nos dizendo que o interesse de Carolina não está no que ela nos diz, mas em sua escolarização precária, que se transforma em uma marca identitária.”
Desejo da autora
Autora do livro de contos Um exu em Nova York, Cidinha da Silva vê na discussão “um debate racial”, “muito mais do que um mero debate técnico no campo da teoria literária ou da linguística”.
“Caso houvesse na composição do Conselho gente dos clubes brancos que dirigem as universidades brasileiras, gente branca que estuda Carolina e é respaldada pelos confrades, tenho dúvidas de que o procedimento técnico escolhido seria questionado”, diz. E pergunta: “Quem tem mais legitimidade do que o Conselho Editorial Carolina Maria de Jesus para se aproximar da vontade hipotética de Carolina?”.
Regina lembra, no entanto, que no próprio texto de Casa de alvenaria a escritora dizia que sua ambição era “escrever como um doutor”, “competir com o doutor”. “Essa era a ousadia dela: queria ser aceita na literatura brasileira pela força de sua escrita, não ser condenada a permanecer às suas margens por culpa dos direitos aos quais não teve acesso”, diz. E finaliza: “É possível ignorar a vontade de Carolina e até produzir justificativas para isto. Mas ela deixou fortes indícios sobre qual era o seu desejo como autora.”