O conceito de “alteridade” permeia os contos, ensaios, trechos de romance e ensaios visuais da décima edição da revista Granta: O Outro. Publicada pela Tinta-da-China Brasil sob direção editorial de Pedro Mexia (Portugal) e Gustavo Pacheco (Brasil), com direção de imagens de Daniel Blaufuks, a Granta acaba de chegar às livrarias.
Para tratar do tema, a 10a edição da Granta em lĂngua portuguesa reuniu autores consagrados e em ascensĂŁo, de idiomas e gerações variados: CĂ©sar Aira, Olavo Amaral, Adam Dalva, Isabela Figueiredo, Marta Hugon, Janet Malcolm, Ernesto ManĂ©, NatĂ©rcia Pontes, ValĂ©rio RomĂŁo, Ali Smith, Teresa Veiga, Aparecida Vilaça, Francesca Wade. Os ensaios fotográficos sĂŁo de Mag Rodrigues e Eduardo Viveiros de Castro (responsável tambĂ©m pela imagem de capa).
A revista abre com um trecho de Still pictures, livro pĂłstumo de Janet Malcolm, ainda inĂ©dito no Brasil. No ensaio, a cĂ©lebre jornalista e ensaĂsta norte-americana conta histĂłrias de sua origem tcheca, sua situação de imigrante, da infância e da juventude, chamando atenção para hábitos marcados pela condição social modesta da famĂlia. “A sopa Campbell nĂŁo era associada ao Andy Warhol. Era sĂł uma coisa que comĂamos”, ela escreve.
TambĂ©m Ernesto ManĂ© contribui com um excerto do seu livro de estreia, Eu sou o outro do outro, a ser publicado em 2024 pela Tinta-da-China Brasil. Nesse misto de ensaio, diário de viagem e relato autobiográfico, acompanhamos ManĂ© em uma viagem pela GuinĂ©-Bissau, em fins de 2010, em que ele pretende recuperar a histĂłria da famĂlia paterna.
Os estrangeiros aparecem, enfim, em Há muito tempo que não levava tanta coisa às costas, de Valério Romão. Filho de portugueses que emigraram para a França, o autor situa em Clermont-Ferrand, sua cidade-natal, o narrador do conto, um escritor que participa de um debate literário enquanto remói conflitos pessoais e sociais.
A alteridade também assume a forma das diferenças entre classes sociais, como se vê na estreia da cantora portuguesa Marta Hugon na ficção. O leitor segue a rotina de trabalho de Conceição, empregada doméstica que dá nome ao conto. Enquanto limpa a casa dos patrões e cozinha para eles, ela rememora o antigo casamento e aquilo que enfrentou até conquistar sua autonomia – quando é então surpreendida por maquinações de que jamais suspeitava.
NatĂ©rcia Pontes apresenta um capĂtulo de seu novo romance, ainda inĂ©dito. Vida doçura adentra a vida de Jocasta, mulher que vive em um apartamento pequeno com seu gato, bate febrilmente Ă sua máquina de escrever e, como passatempo, assiste os vĂdeos no YouTube de uma famĂlia comum que registra seu cotidiano, procurando entrar em contato, de modo virtual, com a vida de outras pessoas.
O comezinho aparece também no conto de Ali Smith, O clamor humano, em que a celebrada autora escocesa devaneia entre a vida e a morte de D. H. Lawrence e a contestação de uma fraude em seu cartão de crédito. As histórias vão se intercalando e chegam a se cruzar de maneira engraçada, a partir das relações que a narradora vai criando à deriva, questionando quem teria sido D. H. Lawrence já na morte e quem ela mesma é, por ter sido confundida pela empresa de cartão de crédito.
O conto Picasso, do argentino César Aira, leva às mais delirantes consequências a possibilidade de escolher entre ser Picasso ou ter um Picasso — alternativas que lhe são oferecidas por um gênio, que surge de dentro de uma garrafa quando o narrador visita o Museu Picasso, em Paris. “Para ser outro é preciso deixar de ser você mesmo, e ninguém aceita de bom grado essa renúncia”, ele delibera.