Nossos restos

Nos contos de Mário Araújo, prosa poética e ritmo da narrativa transformam solidão e morte num território quase inexplorado
Mário Araújo, autor de “Restos”
01/10/2008

Sem introdução. Direto ao assunto. Restos — livro de contos de Mário Araújo — devia estar envolto naquelas famosas cintas com o seguinte alerta: URGENTE. É isso mesmo, atento leitor. Faz-se urgente a leitura dos vinte contos sobre amizade. Você deve estar desconfiando deste tosco resenhista, pois na certa já deve ter lido que os contos têm como tema a solidão e a morte, não é mesmo? Então pergunto: existe amizade mais estreita do que a cultivada entre solidão e morte?

Não seria a morte mera solidão desprovida de movimento? Sendo ou não, encaminho meus desprezo e medo. Mas prometi que não teria introdução e quase quebro a promessa.

Voltemos a Restos. De cara, o leitor recebe o conto que empresta título ao livro. Nele, um homem acompanha a retirada dos restos mortais de seus familiares, pois é preciso abrir espaço para o corpo do pai no cemitério.

“Pra sair daqui têm que estar somente os ossos”, Marcílio explicou.

“E quanto tempo leva?”

“Nesse caso, com caixão de madeira, pode levar até três anos pra sumir tudo e os ossos ficarem limpinhos.”

À medida que Marcílio, o funcionário do cemitério, vai retirando os restos dos parentes, estes vão despertando lembranças no homem (no conto, ele não tem nome). Sobre a avó, não fala nada, precisava ficar mais um tempo; dos sapatos, ainda conservados, do tio vem a lembrança da sua teimosia; e por fim o pedido para não abrir a gaveta que guardava os restos da sua mãe. Já havia espaço suficiente para o cadáver recente. Marcílio conclui seu trabalho carregando sacos com ossos dos dois homens. Entre lembranças, elas costumam ser tristes e num cemitério não há como evitá-las, o homem sente vontade de urinar. A necessidade prosaica o impede de ver o destino final dos sacos com os ossos. Temática sombria em tom poético, a mesma que escutei vinda do Alvorino, meu pai, relatando a mesma cena quando do remanejamento dos restos de Doralina, minha mãe, e Hildebrando, meu avô. Depois disso é como diz o personagem sem nome do conto: “Abaixei-me e vi, no espelho, que meu rosto era agora uma síntese de elementos que não existiam mais”.

Perdoe, pragmático leitor, caso o exemplo pessoal o desagrade, a culpa é do Mário Araújo que escreve sobre cenas do nosso inevitável cotidiano e nos leva a visitar, mesmo que de passagem, nossa rascante solidão. E medo. Sim, medo, ó escapista e espiritualizado leitor.

O conto seguinte, Rauziclíni, narra a solidão de uma brasileira que trabalha como faxineira numa cidade norte-americana. Trata-se de precisa síntese do desamparo em terra estranha. É o conto frio do livro, o clima da narrativa invade o leitor. E frio não pode ser sinônimo de solidão e morte? “Ao primeiro passo, atolou o pé no gelo cremoso e macio e, sem entender exatamente por quê, começou a chorar.”

Em Todos riram, quatro amigos vão de Brasília a Goiânia assistir a um jogo da seleção brasileira de futebol. Durante a viagem os temas das conversas variam do futebol às mulheres, passando pela imensidão do país, suas peculiaridades lingüísticas e o comentário sobre os nomes dos jogadores do futebol, de Maiconsuel a Richarlyson. Na viagem de volta ao parar em um posto de gasolina, um lugar em meio ao nada, gastam conjecturas na tentativa de descobrir como o velho frentista fazia para ir e vi àquele seu solitário trabalho. “O que eu tenho de idade/ Centopéia tem de perna/ Pois meu mais belo momento/ Amado amadurecimento/ Já não é coisa moderna.”

E entre o sono e o cansaço, o silêncio desperta oferecendo a solidão num nome de mulher.

Desprezo e ironia
Futebol 1, Futebol 2 e Futebol 3, contos de página e meia em que a solidão e a tristeza são sintetizadas de forma seca e precisa, como o olhar de um goleiro em direção da bola que repousa no fundo da sua rede, num misto de desprezo e ironia. São histórias nas quais o futebol deixa de ser o circo convencional e se transforma no patético manicômio de nossa trágica pátria. “O choro dos derrotados. Gás lacrimogêneo dilacerando os olhos.”

Importante ressaltar que a matéria-prima utilizada por Mário Araújo não é nenhuma novidade. No entanto, a maneira como a utiliza, a prosa poética e o ritmo imposto à narrativa transformam solidão e morte num território quase inexplorado. O autor, conforme Emmanuel Lévinas, sabe que se “a palavra proporciona a matéria do artista”, também se faz necessária a excelência no trato desses ingredientes. E nesse quesito Mário Araújo dá uma lição após a outra. Talvez a mais sutil seja, diante da sisudez da temática, a aparente brincadeira com a linguagem além da humanização precisa de seus personagens onde nenhum padece além da normalidade. Os contos de Restos podem ser apreendidos como suspiros de uma humanidade cruel e ao mesmo patética.

Crioula apresenta a brisa da morte na figura da anciã que desperta a ira de Margarida. Conto antológico que remete à vida de Mané Garrincha e da cantora Elza Soares, triste e primoroso conto.

A senhora tem setenta e cinco anos, o calçamento da rua, mais de cem, e do envelhecimento de ambos resulta uma situação amplamente desvantajosa para a primeira, que, sozinha, tenta descer a rua onde mora em direção ao banco.

Na tentativa vã de brincar com a linguagem, os sem-talento a ofendem. Temos aí os imitadores de Saramago a inventar longos períodos desprovidos de pontuação às frases iniciadas com minúsculas. O patético sempre é constrangedor. Mas não inclua Mário Araújo nessa laia. Ele brinca sério com a linguagem como você poderá confirmar em Ancião ansioso, mais um biscoito fino de Restos.

Mas se Jesus prega, prega-se Jesus. E foi assim que deram um jeito nela, quando o sujeito arrastou-a para um ponto entre duas paredes e lhe sapecou uma bela aula de canto, o suco dele no sulco dela.

A desforra é isto mesmo: vingança. Duas faces da solidão, homem seqüestra, estupra e mata uma jovem. Testemunha o persegue até capturá-lo e fazer justiça com as próprias mãos. A outra face da solidão é a violência perpetrada pelo justiceiro. Nada de novo, mero relato das possibilidades do humano.

Certo ou errado narra uma hora e meia da vida de um jovem que aguarda a abertura da sala de cinema para então poder misturar sua solidão com a escuridão. “A perspectiva de regredir à situação de uma hora atrás me causa grande desalento.”

Atento leitor, por favor, permita-me um puxão de orelhas, carinhoso, porém. Note que nos contos de Restos não vislumbramos uma solidão estática, há resistência de parte dos envolvidos. O que também não implica em vitória, mas num debater-se constante.

O conto A imagem apresenta a solidão de uma imagem de Jesus que é transferida de uma igreja em ruínas para a casa confortável de um médico que é transformada em santuário com direito a peregrinação. Aqui temos a sutileza na abordagem do tema da religiosidade, deixando à mostra que mesmo a espiritualidade exige certa dose de conforto. Triste, leve, verdadeiro, infelizmente viver também é isto: domesticar o cinismo. “O próprio Jesus parecia bem feliz de estar ali. Certamente jamais estivera num lugar como aquele, com tamanho conforto cercado de tantas atenções e afeto.”

Quatro cenas de Brasil não precisa de comentário. São elas: Bala, Bola, Bunda, Bíblia, mas não consigo me conter, perdoe paciente leitor:

— Faz tempo que o Pastor Jônatas pastoreia este rebanho?

— Já faz muitos anos. Desde que saiu da cadeia. O Pastor Jônatas cumpriu seis anos por ter matado um homem.

Oliveira, FDP!!! é mais um achado do autor, a parcela tragicômica e fantástica de Restos, ou dos restos de uma existência onde um velho vocifera contra sua própria decrepitude.

Um novo conceito é o relato detalhado de um seqüestro. E se mais não revelo sobre este conto, é para não atrapalhar o prazer de sua leitura e seu desfecho genial. A solidão combinada a uma mediocridade abastada é capaz de inventar prazeres onde a vida é material de segunda mão.

Viagem 1, Viagem 2, Viagem 3, três contos a combinar morte e futuro, esperança e resignação, solidão e velhice. A doce crueldade de um autor. Não há trégua nos contos de Mário Araújo; o leitor está em segundo plano, cabe a ele estabelecer as rotas de fuga ou buscar a companhia de nuvens.

Marta — esse era seu nome — jamais tivera a oportunidade de ser apresentada a si mesma. Faltara-lhe aquele momento de solidão em que, na ausência de uma vizinhança, trava-se o conhecimento de si.

Em Solo, o autor oferece ao leitor o poder da escolha, se bem que para dar partida à história tão-somente, pois sabe ele que o mais importante é sempre o final. Permite que o leitor escolha entre quatro possibilidades de abertura para a história de um músico frente a seus dilemas, na qual geralmente não se permite espaço para a existência da morte. Sobretudo da própria morte.

Há muito tempo que tudo que via de si mesmo eram as mãos. A única parte do corpo que uma pessoa vê todos os dias da sua vida, pensou. Do rosto, apenas as lembranças e um par de fotografias que trouxera na bagagem.

Palimpsesto é amálgama de ansiedade e solidão de um escritor que envia seu primeiro romance à apreciação de João Ubaldo Ribeiro. Num primeiro contato dá impressão da parte solar de Restos, mas não embarque nessa canoa, desatento leitor. Concentra-se nessas linhas a mais fiel fotografia da nossa miséria existencial, ela que nos transforma em permanentes pedintes além de deixar à mostra aleijões à espera da bengala alheia que abrirá as portas das oportunidades. Com escritores a cena é das mais comuns. Mendigamos textos a nos recomendar, telefonemas a editores elogiando nossos livros e, nesse vaivém das influências, os talentos evaporam e as bobagens e os tolos bem relacionados infestam as Flips e as Flaps da vida. Por favor, afobado leitor, não me pergunte o que é Flap. Aproveite seu tempo lendo Restos.

Gosto do meu nome. Mas um nome sozinho não valia muito naquelas circunstâncias. Precisava de sobrenomes, de preferência dois, três, quatro até. Os sobrenomes empurram o nome; por isso, quanto mais, melhor.

Corpo encerra o livro, sem ironias e sem gracinhas, aqui se fecha o caixão: “Ninguém merece deixar esta vida sem seus ritos”.

Afortunado leitor, concluída a leitura de Restos, fica um gostinho de quero mais e se você for também um leitor curioso e pretender sair em busca de algo semelhante, não perca seu precioso tempo. Modestamente, vá por mim. Recomece a leitura. Garanto que valerá a pena, não há riscos. Risco é viver, mesmo com todos os atenuantes do consumismo, mesmo evitando pensar e falar sobre velhice, solidão e morte, resta a certeza inquestionável — o nosso horizonte é o chão.

Restos
Mário Araújo
Bertrand Brasil
188 págs.
Mário Araújo
Nasceu em 1963, em Curitiba (PR). Tem contos publicados em jornais literários, em antologias e na internet. Seu livro de estréia, A hora extrema, recebeu o Prêmio Jabuti na categoria Contos e Crônicas, em 2006.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho