Longe do banal, um inovador

"O ciclista", de Walther Moreira Santos, traduz as angústias de uma geração espremida entre o cosmopolitismo e um sentido para a vida
Walther Moreira Santos, autor de “O ciclista”
01/10/2008

Como buscar a renovação na narrativa brasileira?

As tentativas, com os naturais acertos e equívocos, estão vindo de toda parte. A temática, com cores urbanas e urgências agônicas, vem se repetindo, se tornando recorrente e cansativa. A linguagem, muitas vezes empobrecida e datada por gírias e frases excessivamente vulgares, perde a função instigadora e se repete frivolamente. Os personagens se apresentam chapados, carentes de alma.

Como encontrar renovação nesse panorama franciscano, quase chinfrim? Continua martelando a pergunta.

Aqui e ali surge algo realmente novo, onde a elaboração narrativa e até lingüística não aparece como exigência de uma suposta vanguarda, mas como pressuposto da narrativa. É a criatividade penetrando na trama que pede muito mais que apenas uma descrição linear, regular. Este é o caso do romance O ciclista, de Walther Moreira Santos.

Inicialmente o texto, em sua abertura, desanima o leitor mais atento. “então chego a Bariloche (4 horas de vôo) e sou recebido pelo vento (oito graus) e branco/azul da paisagem”. A frase inicial, claramente redigida sob a influência de Clarice Lispector, aponta para um livro recheado de recorrências literárias, de inovações já largamente palmilhadas por outros tantos autores. Felizmente, Walther Santos para por aqui e segue sua narrativa preocupado somente com a intenção primária de construir um romance inovador no ritmo narrativo, um romance que, sobretudo, traduza as angústias de uma geração espremida entre a glamour do cosmopolitismo e a necessidade básica de encontrar pontos de sobrevivência e sentido para a vida.

Nessa linha divisória, nessa fronteira de sentimentalidades, caminham os quatro personagens da trama. Edgar Delano, o narrador mais constante, é biólogo e fotógrafo que vive de revisar insistentemente um livro técnico escrito pelo pai que continua sendo adotado pelos colégios. Caio, irmão de Edgar, é modelo internacional e andarilho sem pouso ou sentido. Ceres, mulher de Edgar, paternalista e prática, tem a mira constantemente voltada para sua ascensão social e funcional. O Ciclista é a figura mais enigmática de todos. Embora trabalhe, seus desejos se voltam sempre para a necessidade de não parar nunca de caminhar, mesmo que não determine com clareza seus rumos e opções.

Grata surpresa
Diante de toda inquietação que domina este romance ganhador do 1º. Prêmio José Mindlin de Literatura, não surpreende o depoimento do escritor Antônio Torres, membro da comissão julgadora: “Vivemos num tempo incômodo, em um mundo que nos causa estranheza — eis aí uma síntese do que Walther Moreira Santos capta em O ciclista. Para os membros do júri (…) esta narrativa — original, instigante, com equilíbrio de linguagem e estilo — foi uma grata surpresa”, declara.

Antônio Torres acerta ao falar da estranheza do mundo, pois mais que do nosso, fala mesmo é daquele vivido no romance, daquele universo niilista. O individualismo é tão intenso que se encarrega de destruir tudo ao redor. Isso fica claro na separação entre Ceres e Edgar. Ela deixa a casa sem dizer uma palavra e o marido não faz qualquer protesto. Depois ela volta carregada de culpas e ele continua em seu mutismo defensivo. É como se o existencialismo inquietante que dominou o senhor Meursault, em O estrangeiro, de Albert Camus, fosse agora uma regra a ser seguida.

As constantes viagens e a incurável melancolia de Caio ampliam esta indiferença diante de tudo a proporções universais. Com isso, o romance sobrepuja fronteiras e dá ao nosso discurso envolvimento global. Não estamos isolados nesse mundo de tanta indiferença e dor. A bomba que explode no Oriente estilhaça nossas vidraças já sem qualquer isolamento. A prova vem do assassinato de um eletricista no metrô de Londres ou mesmo na multidão de deportados pelos Estados Unidos. Os personagens de Walther Moreira Santos são uma metáfora desse homem globalizado, quase despatriado, estrangeiro em qualquer terra.

Sim, o romance tem uma dimensão psicológica poucas vezes encontrada na literatura atual, pois mesmo tradições literárias mais sólidas — como a inglesa e a russa — hoje têm se ocupado mais com frivolidades e pouco têm se deitado sobre as angústias desse homem sem fronteiras nem limites. E ao buscar esta plataforma onde ancorar sua narrativa, Walther Moreira se apóia numa tradição que vem lá de Machado de Assis e seus romances finais e permeia uma imensa parte da poesia do século 20, sobretudo aquela confeccionada pela Geração 45.

O ciclista é obra de autor amadurecido, que simplesmente se nega a falar de um cotidiano comum, marcado por violência explícita e já banalizada. A pressão por que passa seus personagens vem da interiorização de ambições e desapegos. Daí o individualismo, daí o conflito, daí a indiferença.

Rico no aproveitamento lingüístico, tenso no caminhar de seu enredo e inventivo na forma narrativa, onde os narradores — sem conflitos — se sucedem, O ciclista mostra o fôlego de nossos narradores e até desvenda o caminho. O segredo é não se entregar às facilidades, como fizeram Graciliano Ramos, João Cabral de Mello, Guimarães Rosa, afinal a renovação nasce mais do trabalho que da mera inspiração.

O ciclista
Walther Moreira Santos
Autêntica
128 págs.
Walther Moreira Santos
Dramaturgo e ficcionista, vencedor de diversos prêmios literários. Destacam-se o Prêmio Nacional de Romance Fundação Cultural da Bahia 2000; Casa de Cultura Mario Quintana 2003; Xerox do Brasil 2000; Cidade do Recife 2000; Prêmio Paraná 2002; Itaú Cultural 2003. Publicou os livros Dentro da chuva amarela; O doce blues de Salamandra; Helena Gold; Um certo rumor de asas; Ao longo da curva do rio, entre outros.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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