Os leitores de Lev Tolstói têm pela primeira vez a oportunidade de conhecer a literatura da esposa do escritor russo, Sófia Tolstaia (1844-1919). Tolstói & Tolstaia, com tradução de Irineu Franco Perpetuo, traz duas novelas de Sófia pela primeira vez traduzidas no Brasil: De quem é a culpa? (publicada em 1994) e Canção sem palavras (2010).
O volume compreende também uma das mais famosas e perturbadoras obras de Tolstói, Sonata Kreutzer, além de um texto que o autor escreveu para esclarecer o conteúdo da novela e posfácios assinados pelo tradutor e por Mário Luiz Frungillo, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Em De quem Ă© a culpa?, SĂłfia Tolstaia estabelece um diálogo direto com Sonata Kreutzer. A autora discute temas presentes na novela do marido: a natureza do amor, a paixĂŁo, o ciĂşme e as complicações da vida em famĂlia. Por sua vez, Canção sem palavras, tĂtulo emprestado de uma peça de Felix Mendelssohn, acrescenta a esses temas o poder da mĂşsica sobre o temperamento humano, assunto tambĂ©m da novela de TolstĂłi, que reporta Ă sonata de Ludwig von Beethoven.
A personagem central de De quem Ă© a culpa?, Anna, tem 18 anos; Ă© senhora de si, leitora de filosofia, aspirante a escritora e praticante da mĂşsica e da pintura. Dois homens a cortejam. Ela se apaixona por um deles, o prĂncipe PrĂłzorski, 17 anos mais velho.
PrĂłzorski confessa ter tido uma vida devassa, voltada ao amor carnal, o que provoca ciĂşme e alheamento em Anna, defensora da espiritualidade. A trama evoca a histĂłria do prĂłprio casal de escritores: TolstĂłi, antes de se casar com SĂłfia, contou a ela que tinha engravidado uma serva que ainda morava em Iásnaia Poliana com a filha. O escritor nunca escondeu que, depois de abandonar os estudos de literatura oriental, vivera um perĂodo de intensa entrega aos prazeres da carne.
Em Canção sem palavras, a protagonista, Sacha, abalada pela morte da mãe, passa a questionar a vida que leva com um marido frequentemente hostil e se aproxima de um pianista e compositor profissional, para quem a arte está acima de tudo.
Como Anna, Sacha se aferra ao ideal da espiritualidade do amor e conclui que a influência humana profana a “pureza virginal” da natureza. Segundo Mário Luiz Frungillo, no posfácio da edição, as duas novelas “apresentam os sentimentos da mulher de um modo que seria inimaginável para Pózdnychev”, o protagonista de Sonata Kreutzer.
Na novela de Tolstói, Pózdnychev conhece o narrador durante uma viagem de trem. Não demora para que ele informe ter matado a esposa. A seguir, passa a expor suas convicções sobre o amor e o casamento, de maneira clara e brutal. Para ele, as mulheres, privadas de direitos, “se vingam agindo sobre nossa sensualidade, prendendo-nos em sua rede”.
Quanto aos homens, fingem que a dissipação nĂŁo existe e passam a crer que sĂŁo pessoas morais. Sonata Kreutzer Ă© complexa e ambĂgua, ao pĂ´r na voz de um assassino ideias de pureza em que o autor acreditava. A diatribe contra as concepções dominantes de amor e famĂlia suscitou numerosas respostas Ă novela e sua proibição na RĂşssia e nos Estados Unidos.
É conhecida a histĂłria conturbada do casamento entre Lev TolstĂłi e SĂłfia Tolstaia. Ambos mantiveram diários e os Ăşltimos anos de vida conjugal foram testemunhados pelos frequentadores da famosa propriedade da famĂlia, Iásnaia Poliana. Esse perĂodo da vida do casal, quando TolstĂłi defendia a abstinĂŞncia sexual mesmo entre cĂ´njuges, suscitou vários estudos e obras de ficção — como o filme A Ăşltima estação (2010), com Helen Mirren e Christopher Plummer.