
PatrĂcia Melo, ao longo de quase vinte anos de carreira, deixou sua marca na literatura brasileira tratando do lado mais perverso e patolĂłgico da condição humana — a violĂŞncia. Com uma prosa urbana que vai alĂ©m da problemática social, PatrĂcia busca as mais dicotĂ´micas unidades da violĂŞncia, examinando nĂŁo apenas o ato em si, mas, sobretudo, os aspectos psĂquicos de suas personagens, do morro Ă classe mĂ©dia urbana.
Com nove livros publicados — Acqua toffana, Elogio da mentira, Inferno (PrĂŞmio Jabuti) e Escrevendo no escuro —, seus tĂtulos ganharam traduções mundo afora, notoriedade e prĂŞmios, como no caso de O matador (prĂŞmios Deux OcĂ©ans, na França, e Deutscher Krimi Preis, na Alemanha), adaptado tambĂ©m para o cinema (O homem do ano) em 2003. Seu Ăşltimo livro, LadrĂŁo de cadáveres (2010), encontra-se no topo da lista de melhores romances segundo o jornal alemĂŁo Die Zeit, e recentemente foi premiado com o LiBeraturpreis.
Na entrevista a seguir, PatrĂcia Melo fala sobre sua trajetĂłria, as mudanças em seu fazer literário e seu prĂłximo livro.
• Existe uma diferença de pĂşblico e crĂtica com relação aos seus livros lá fora e no Brasil?
De pĂşblico, nĂŁo. Mas de crĂtica, sim. Santo de casa nĂŁo faz milagre, nĂŁo Ă© isso que se diz? Ă€s vezes, tenho a sensação de que estou sempre lendo a mesma crĂtica sobre o meu trabalho: a influĂŞncia de Rubem Fonseca, a escritora de romance policial. Como se eu nĂŁo tivesse percorrido um longo caminho, como se nĂŁo tivesse minha prĂłpria dicção, como se minha literatura se restringisse ao universo do romance negro. Na Alemanha eu sou uma autora vista sem preconceitos. Isso muda tudo.
• Em uma entrevista, você falou que boa parte dos estrangeiros ainda têm uma visão arcaica de nossa literatura, reduzindo-a aos gêneros regionalistas e clichês tropicalistas. O que mudou com relação ao olhar de fora, já que editoras estrangeiras se interessam mais por nossa literatura e talvez nunca se tenha exportado tanto autores brasileiros contemporâneos?
O Brasil mudou muito. Ganhou visibilidade por conta da sua performance econômica nos últimos anos. Mas a literatura brasileira ainda é pouco conhecida. E ainda se pensa em clichês quando se fala dela. Veja o cartaz da Feira de Frankfurt, cujo tema será o Brasil: é a imagem de um cachorro-passista de escola de samba. Essa é nossa imagem lá fora. Por outro lado, há mais interesse pelos autores brasileiros. O fato de a Granta, uma das maiores revistas literárias do mundo, fazer uma edição brasileira é prova disso.
• Sua experiência anterior como roteirista ajudou em seu encontro com a literatura?
Em um determinado perĂodo, sim. Bem no inĂcio. Hoje, nĂŁo. Na verdade, perdi o encanto pelo cinema. NĂŁo gosto mais de escrever para televisĂŁo. Adoraria ver, por exemplo, o Mundo perdido adaptado para TV. Mas o que gosto de fazer Ă© ficção. E a minha experiĂŞncia passada já nĂŁo conta quase nada, embora minha literatura continue sendo cheia de imagens.
• VocĂŞ estreou na literatura em 1994 com Acqua toffana. Desde entĂŁo, já foram nove tĂtulos publicados (uma novela, sete romances e um livro de contos). O que mudou em seu fazer literário?
Muita coisa mudou. Eu era uma garota, como disse Philip Roth, “armada de tempo até os dentes”, e isso significava uma total liberdade na escritura. Hoje eu tenho nove livros nas costas, casei, separei, casei de novo, já tenho a experiência do fracasso, a experiência do sucesso, sou mãe, estou mais velha, menos ansiosa e, sobretudo, mais equipada emocionalmente para a longa travessia que é a criação de um romance. Claro que tudo isso mudou a minha maneira de escrever. Você muda, sua literatura muda. Manter-se preso a um estilo significa ficar preso ao passado. Por outro lado, a cidade pulsante é um personagem constante da minha literatura. Meus temas estão sempre rodeando a morte. Meus personagens estão sempre no limite.
• O que lhe fascina ao escrever sobre o deplorável da condição humana?
Acho que nĂŁo Ă© “fascĂnio” a palavra. É espanto. Eu tento entender esse bicho selvagem que Ă© a cidade, o que ela faz conosco.
• Seus livros possuem um ritmo conciso, direto e próximo ao cinematográfico. Você tem interesse ou já foi procurada para adaptar outras de suas obras para o cinema, como foi o caso de O matador com o filme “O homem do ano”?
Uma dos crĂticos alemĂŁes disse que LadrĂŁo de cadáveres Ă© um livro que sĂł está Ă espera dos irmĂŁos Cohen. Acho realmente que ele poderia ser adaptado para cinema. É uma histĂłria insĂłlita, com um humor triste, se Ă© que isso existe.
• Um livro de cabeceira, e por que esse livro.
De tempos em tempos, eu mudo o livro de cabeceira. Agora é Thomas Bernhard. A literatura dele é pedra e aço.
• Como avalia nossa literatura atual? Existe algum escritor dessa nova safra que a tenha entusiasmado?
Tem muita gente boa. Mas no momento estou acabando de escrever um romance, não dá para ler muito. Resolvi fazer jus ao rótulo que me deram de escritora policial. Estou quase acabando de escrever meu primeiro romance noir. Agora faz mais sentido me chamarem de escritora policial.