Ledo engano

Sílvio Lancellotti rebate resenha de seu livro "Em nome do pai dos burros", publicada no Rascunho #152
Sílvio Lancellotti. Foto: Divulgação
01/01/2013

O número de dezembro [#152] de Rascunho exibiu uma vasta resenha, assinada pela professora e acadêmica Márcia Lígia Guidin, a respeito de meu livro Em nome do pai dos burros, da Global Editora. Em cerca de 1.500 palavras, dona Márcia Lígia ao menos atesta que de fato leu o meu volume — mas, como ninguém está livre de uma silabada, já dizia Eça de Queiroz, também prova que não entendeu nada.

Respeitosamente determinado a esclarecê-la, envio esta resposta.

Intencionalmente
Afirma a preclara senhora que não dedico “nenhum apreço pela linearidade nem desejo de contar uma história coesa”, que fragmento “o texto em vários capítulos… um quebra-cabeça de gêneros literários ou paraliterários bem como de focos narrativos e de identidade dos protagonistas”. Cita alguns desses gêneros: da missa católica à bula de remédio; do ensaio à paródia, etc. Não percebeu a professora e acadêmica que intencionalmente, propositadamente, eu optei, mesmo, por um quebra-cabeça de motes. Um quebra-cabeça que paulatinamente se monta e se completa.

Assevera que “o único fio a que se pode apegar o leitor é a existência de um editor, Marcello Brancaleone, e a certeza, ratificada, de que toda a narrativa ocorre num único dia: 13 de outubro de1977”, quando o presidente-general Ernesto Geisel exonerou Sylvio Frota do cargo de Ministro do Exército, talvez o início do fim da ditadura, e quando o Corinthians rompeu o seu tabu de 23 anos sem um título no Campeonato Paulista. Observa dona Márcia Lígia que se trata de “dois fatos sem relação entre si”. Ledo engano, minha cara. Talvez por não ter brigado contra a Ditadura, a professora ignora que os militares de então se locupletavam do futebol para anestesiar a menor tentativa de rebeldia da população cerceada. Claro, claro, eu poderia ter escolhido qualquer outra data para acolher o meu enredo. No entanto, a coincidência Frota-Corinthians me pareceu ideal. Dois episódios jornalisticamente significativíssimos, que ainda não mereceram sequer pinceladas na literatura.

Mais: a douta docente ironiza a eventualidade de eu me emaranhar em “uma influência da estrutura de Ulysses, de James Joyce — especificamente na tradução de Antônio Houaiss (aquela primeira, que lemos na década de 1970)”. Bem, aqui, perdão, perdão, dona Márcia Lígia tropeça em um equívoco ginasiano. A tradução de mestre Houaiss foi publicada, pela Civilização Brasileira, e logo devorada por mim, em 1966.

Distraidamente, ou preguiçosamente, a acadêmica não pesquisou a data certa.

Quanto à “influência da estrutura”, já admiti, sem constrangimentos. No entanto, seria muito mais justo dizer que, sobre a “estrutura”, eu impus o meu próprio esqueleto.

Ela ainda me acusa de cometer “apropriações de Machado de Assis”. E de criar “extravagantes neologismos” que relembram “a estrutura frasal de Guimarães Rosa”.

Ah, mordeu a isca, dona Márcia Lígia. De fato, intencionalmente, propositadamente, particularmente na descrição do concurso de jovens, há trechos inteiros de contos de Machado e de Rosa. Um divertimento malicioso a que me propus: encaixar os tais trechos inteiros em entremeios do enredo e esperar que algum scholar descobrisse as suas origens, os seus autores. Da mesma forma, os comentários que fazem os três convidados do Conselho Editorial (IOF, FdaP e MDB) foram pescados em periódicos da época — e rigorosamente decalcados de comentários reais de Léo Gílson Ribeiro, Franklin de Oliveira e Carlos Nelson Coutinho. A acadêmica não reconheceu?

Sem falar, páginas e páginas mais tarde, no meu livro, de um discurso de Lenin e de um excerto da Mein Kampf, de Hitler. Que, evidentemente adaptei ao Brasil dos entornos de 1977. Na relação dos agradecimentos que fecham o trabalho, eu enfileiro, em ordem alfabética, os personagens, inclusive mortos, que me enriqueceram com seus ensinamentos, ou cujos pensamentos eu açambarquei. Efetivamente, douta docente, a tal da “velha metalinguagem”. Se esse é um “conceito já conhecido e repetido há muito tempo”, sinceramente isso não me incomoda, pode acreditar…

Lenha queimada
Finalizo, para não duelar com o tamanho inesperado que dona Márcia Lígia dedicou a um livro que ela abominou. Nos idos em que era editor de “Artes & Espetáculos” de Veja, ou redator-chefe de Istoé, instava os meus pupilos a não gastarem papel e tinta com temas que desprezavam. Melhor indicar do que incinerar, eu lhes dizia.

Depois, em 15 anos de Gastronomia na Folha de S. Paulo, raríssimas vezes eu detonei um restaurante — então, eu dispunha de apenas 1/4 de página de jornal por semana; muito melhor sugerir em que endereço o leitor poderia comer ao invés de, pedantemente, lhe apontar o dedo e ordenar: “Não vá”. Eu apenas repreendia, por exemplo, os medalhões que me frustravam, como Alain Senderens, um mago francês em visita ao Brasil, que cobrou uma fortuna por um menu minimalista — um tomate recheado de maionese, um filezinho com cascas fritas de batata e um naco de Tarte Tatin. Seria eu um dos medalhões da literatura brasileira para merecer tanta lenha queimada dos estoques da professora e acadêmica? Na dúvida, eu agradeço.

Também, agradeço, se compreendi bem o último parágrafo da resenha, a circunstância de dona Márcia Lígia me elogiar como chefe-de-cozinha e comentarista de futebol.

P.S.: Dona Márcia Lígia, é óbvio que eu capturei inúmeras informações sobre a queda de Sylvio Frota em periódicos da época, principalmente a revista Istoé, na qual, conforme já delineei, laborei anos como redator-chefe. Mais: vivi intimamente os prolegômenos da fritura do ministro e impus, em meu livro, outras informações que jamais, antes, foram reveladas. Sobre o capítulo da partida entre Corinthians e Ponte Preta, tive a pachorra de colher as gravações de três emissoras de rádio: Bandeirantes, Globo e Jovem Pan. Gastei dias na sua decupagem e na devida transcrição. E, daí, construí um quebra-cabeça com os melhores trechos de Fiori Gigliotti, José Silvério e Osmar Santos. Além de resumir quase sete horas de transmissão, não mexi em nada, absolutamente nada. Quanto ao comentarista Cássio Claudiughi, de fato me inspirei em meu amigo Cláudio Carsughi. Afetiva e eticamente, enviei ao Cláudio a paródia, em busca da sua autorização. E o Cláudio me contou que morreu de rir…

Sílvio Lancelotti

É jornalista e escritor. Autor, entre outros, de Em nome do pai dos burros.

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