Nesta quinta-feira (13), o escritor e músico Sergio Lang lança em Curitiba (PR) seu romance de estreia, República Paradiso (Tinta Negra Bazar Editorial), na Livrarias Curitiba do Park Shopping Barigui (Rua Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza, 600), às 19h30. A trama envolve mortes, mistérios e uma imbricada investigação sobre um passado que remonta à ditadura militar brasileira e, mais distante, ao “Ciclo do Ouro” de Minas Gerais.
República Paradiso
Sergio Lang
Tinta Negra Bazar Editorial
324 págs.
Ouro Preto, 13 de outubro de 1974.
Nuvens cor-de-chumbo pairavam sobre a cidade na manhã seguinte à Festa do Doze. Por amor e devoção à Nossa Senhora do Rosário, Benedita Amaro subira a ladeira desde Padre Faria até o Alto da Cruz. Parou ofegante diante do portão de ferro e estranhou a grossa corrente dependurada, o cadeado aberto.
Foi a primeira a chegar à Igreja de Santa Efigênia. Como de costume, pretendia cumprir a honorável missão que a Irmandade dos Pretos de Antônio Dias havia lhe confiado. Quem sabe, pela última vez. Aos sessenta e tantos anos, a zeladora decidira passar a outro o bastão. A perda progressiva da audição e a artrose, esta em especial, passaram a lhe incomodar. Coisa de velha, conformou-se.
Santa Efigênia fora poupada até então, mas a negra teria motivos de sobra para se preocupar. Erguida entre pedras, silêncio e sombra, Ouro Preto havia testemunhado conspirações e traições, a par de manifestações artísticas inigualáveis no período colonial. Nos últimos meses, não por acaso, a antiga capital de Minas Gerais tornara-se o alvo preferencial de catadores, ladrões profissionais atraídos pelo alto valor de objetos litúrgicos e imagens barrocas no mercado internacional.
(…) Com esforço, alcançou a portada do templo. E foi então que o ar lhe pareceu pesar como cimento, implacável, enterrando-lhe os pulmões. No chão, o retrato de uma tragédia maior: envolto na cintura por uma toalha branca, o corpo ensanguentado de uma criança. Dez ou onze anos, o rosto pintado de preto.
(…) Num lampejo, lembrou-se do que ouvira da avó materna, que costumava lhe contar histórias de negros na antiga Vila Rica. Pois algo muito parecido havia acontecido nos tempos de Chico Rei, o lendário monarca: meninos brancos, rostos pintados de preto, emasculados em frente à Casa de Deus. Magia negra? Vingança? (…)
Pensou em pedir ajuda e olhou para a rua. Desolada, percebeu que levaria tempo demais para descer a escadaria. E se estivesse vivo? Suspirou longamente, sabendo que precisava agir.
Num esforço supremo, ajoelhou-se ao lado do garoto e em vão tentou-lhe ouvir as batidas do peito. Sem pulso, os dedinhos gelados, estava morto. Quando finalmente tomou coragem, afastou a mortalha improvisada, e não conteve o grito.
— Valha-me, Cristo! — suplicou.
Como imaginara, a genitália fora decepada.
Benedita gemeu baixinho. Lentamente, acomodou o pano em torno do menino e elevou os olhos negros e desconsolados em direção ao céu. Junto ao corpo inerte, exausta, ocorreu-lhe apenas fazer o sinal da cruz.