Inominável

"Beatriz & Virgílio", de Yann Martel, é a tentativa de tratar do Holocausto alegoricamente
Yann Martel, autor de “Beatriz & Virgílio”
01/12/2011

Num primeiro momento, pode-se ter a impressão de que o tema central do romance Beatriz & Virgílio, de Yann Martel, é o do Holocausto, focalizando a questão reiterada por vários autores — sobretudo, a partir de Primo Levi — que se alinham a uma das tendências do que se passou a denominar “literatura de testemunho”, conforme o que propõe Giorgio Agamben em O que resta de Auschwitz. Essa, numa de suas nuances, trata da necessidade enfática de não esquecer os horrores cometidos contra os judeus e a tragédia de seu genocídio, levado a cabo pelos nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial. Afinal, o tema, por si só, suscita profundas reflexões sobre a urgência de lembrar o ocorrido, já que, por meio da lembrança revitalizada daquele irreparável episódio histórico, se poderia estar imune aos riscos funestos do esquecimento, como por exemplo, o de que as falhas da memória seriam capazes de acionar a repetição do abominável flagelo. A lembrança, nesse caso, funcionaria como o melhor antídoto contra os venenos destilados pelo grande mal. Daí por que testemunhar é preciso.

Em boa medida, Martel também se envolve com o que Levi denominava “essa necessidade incontrolável de contar” o que houve e assim sua proposta literária não se distancia das muitas que testemunham aquele horror. Mas o que, de fato, apresenta-se como sua preocupação — muito mais do que se fixar nos relatos de ordem testemunhal — é a tentativa de tratar do Holocausto alegoricamente. Com efeito, o protagonista Henry, um famoso escritor, logo no início do romance, respondendo a uma das perguntas sobre seu próximo livro, em interessante interferência metaliterária — refletindo sobre as diferenças entre História e ficção — pondera:

— O meu livro é sobre representações do Holocausto. O fato já aconteceu; o que nos resta são as histórias contadas a seu respeito. O meu livro é sobre uma nova seleção de histórias. Diante de um evento histórico, não devemos apenas dar testemunho, ou seja, contar o que aconteceu e dar atenção às necessidades dos fantasmas. Temos também de interpretar e tirar conclusões, para poder dar atenção às necessidades das pessoas de hoje, os filhos dos fantasmas. Além do conhecimento da história, precisamos do entendimento da arte.

Além do testemunho
Assim, o que aqui já se anuncia como eixo fundamental de análise é a premissa de que só por meio da ficção e da arte, e não apenas do viés objetivo do realismo histórico, é possível conferir sentido aos fatos, uma vez que a História que não se transforma em narrativa acaba morrendo para qualquer um que não seja o próprio historiador. Em outras palavras, quando nos deixamos aprisionar pelo que Carlos Fuentes denomina “as grades do real”, extremamente empenhados na recuperação fidedigna dos fatos, como se apenas esse tipo de abordagem pudesse dar conta do ocorrido, esquecemo-nos de que a ficção e a alegoria, enquanto poderosas estratégias de transfiguração simbólica da realidade, têm, muitas vezes, um alcance bem maior. Isso se dá especialmente quando se tangenciam situações-limite ou traumáticas como as que aqui se apresentam, entre as quais a da dificuldade de narrar o horror.

Subliminarmente, ecoando em todo o romance, a voz impositiva é a que pergunta: “Como vamos falar sobre o que nos aconteceu um dia, quando tudo tiver terminado?”. Em síntese, é essa a preocupação central de Yann Martel, diante da afasia inerente ao impacto de testemunhar o abominável. Mais do que relatá-lo, ele se preocupa com os modos de narrá-lo, pois a arte parece ser a única saída do inferno labiríntico para quem viveu o que é inenarrável e conseguiu sobreviver. Para o protagonista escritor (alter-ego do autor), ela é definida como a “bóia salva-vidas da História”, “a valise da História, que contém todos os seus elementos essenciais”. É na busca de tais elementos que os seus procedimentos narrativos se direcionam, procurando — como num contínuo exercício de work in progress — fazer com que a arte de ficcionalizar se debruce sobre si mesma, demonstrando os bastidores do palco do que se pretende encenar, isto é, uma alegoria do Holocausto:

Com o Holocausto, temos uma árvore com raízes históricas maciças e apenas uns poucos frutos ficcionais miúdos aqui e ali. Mas são os frutos que contêm as sementes! São eles que as pessoas colhem. Se não houver frutos, a árvore será esquecida.

Bom fruto
Com o intuito de se tornar um bom fruto ficcional, Martel apresenta, num primeiro plano, Henry, um grande escritor em crise, que atravessa um período de “bloqueio criativo” (o que analogamente poderia ser comparado à impotência que acomete muitos dos que não conseguem falar sobre experiências traumáticas vividas). Procurando melhorar dessa letargia que o domina, decide mudar de cidade, indo com a mulher do Canadá para a Europa. Mesmo distante do mercado editorial e do que o vinculava, a princípio, à sua vida de escritor, continua recebendo cartas de seus leitores e se comunicando com eles. Em meio a estes, um, porém, totalmente inusitado, envia-lhe uma correspondência não usual: um conto pouco conhecido de Flaubert (que trata da carnificina de animais) e os fragmentos de uma peça em dois atos, intitulada Uma camisa do século XX, em que dois animais Beatriz (uma mula) e Virgílio (um macaco) dialogam. Aos poucos e com a maestria de saber criar o mistério requintado dos bons thrillers de suspense, Henry nos conduz à casa-oficina de trabalho de seu enigmático leitor, um velho solitário de aparência sombria, cujo trabalho é o de empalhar animais mortos, com a minúcia perfeccionista de um exímio taxidermista que também se revelará como o autor da referida peça (ainda em processo de escrita).

Inferno dantesco e Auschwitz
Sem deixar nada explícito, o que se constitui, a partir da entrada desse novo personagem, é exatamente o elo necessário para vincular o real (inominável) à sua transfiguração. Assim, por meio de índices que vão sinalizando gradualmente as vias pelas quais o percurso ficcional se cumpre, numa viagem de descida ao inferno (daí a referência intertextual a Dante, que se apreende pelos nomes dos animais que dão origem ao título da obra), perceberemos que Beatriz e Virgílio são representações de sobreviventes de Auschwitz e que o título da peça que o velho está escrevendo remete às listras dos trajes usados pelos prisioneiros dos campos de concentração. Esses índices vão se anunciando, pouco a pouco, pois o que se pretende — em termos de estrutura narrativa — é criar um universo alegórico capaz de tratar do Holocausto, sem propriamente se prender às lentes do hiper-realismo de que lançam mão, muitas vezes, os relatos testemunhais.

Desse modo e aplicando o que ensina João Adolfo Hansen sobre a alegoria: “(do grego allós = outro; agourein = falar) metáfora continuada como tropo de pensamento que diz b para significar a”, Martel investe na progressão lenta de uma série de dados simbólicos que falam de dois animais famintos, que não sabem ao certo onde estão, sofrendo uma infinidade de torturas horrendas e cria a possibilidade de traduzir, pelo viés da transfiguração, o tanto de intraduzível que há na barbárie concreta daquele episódio.

Mais do que isso, por meio do diálogo entre Beatriz e Virgílio se representa também a dificuldade que os sobreviventes têm em abordar o tema, já que precisam encontrar formas de falar sobre o que lhes aconteceu:

Beatriz: — Que nome vamos lhe dar?
Virgílio: — Boa pergunta.
Beatriz: — Os Acontecimentos?
Virgílio: — Não é descritivo o bastante, e não implica nenhuma crítica. O nome e a natureza precisam combinar.
Beatriz: — O Impensável? O Inimaginável?
Virgílio: — Por que se preocupar com algo que é impensável ou inimaginável?
Beatriz: — O Inominável?
Virgílio: — Se não podemos sequer lhe dar um nome, como poderemos falar a seu respeito?

Memória da morte
A função de taxidermista do velho colabora para carregar ainda mais as tintas desse ambiente. Com efeito, ao empalhar os animais inanimados, exerce função análoga a de quem, de certa forma, pretende reavivar o que já se extinguiu, agindo como quem documentasse aquela carnificina humana:

O que faço, efetivamente, é extrair da morte a memória, e refiná-la. Nisso, não sou diferente de um historiador que esmiúça as evidências materiais do passado na tentativa de reconstruí-lo e compreendê-lo. Todos os animais que montei foram uma interpretação do passado. Sou um historiador, lidando com o passado de um bicho […] Como pode ver, estamos tratando aqui, de questões muito mais importantes que simplesmente o que fazer com um pato empalhado e empoeirado que se herdou de um tio qualquer.

Beatriz e Virgílio fazem parte da imensa coleção dos bichos empalhados pelo velho. Ainda que impressionantes, em sua perfeita reconstituição mais que verossímil, ali na oficina do taxidermista, permanecem estáticos e inanimados como as infinitas fotografias, documentos, papéis e museus que se prezam a guardar a memória do Holocausto. Apenas quando assumem a voz de personagens da peça, que se inscreve na tessitura do próprio romance, é que adquirem a anima capaz de lhes fazer sair da memória da morte, conferindo sentido à vida. É por meio do que narram e dos recursos que descobrem para fazê-lo que saem da indiferença, da afasia paralisante que os domina para tratar, com altivez, de um dos episódios mais brutais de que a humanidade já teve conhecimento. É, enfim, dessa busca incessante de nomear o inominável de que trata, magistralmente, a obra de Yann Martel.

Beatriz & Virgílio
Yann Martel
Trad.: Maria Helena Rouanet
Nova Fronteira
195 págs.
A vida de Pi
Yann Martel
Trad.: Maria Helena Rouanet
Nova Fronteira
419 págs.
Yann Martel
Nascido na Espanha em 1963, Yann Martel estudou filosofia na Trent University, fez diversos trabalhos aqui e ali — foi plantador de chá, lavador de pratos, segurança — e viajou mundo afora antes de começar a escrever. É autor de A vida de Pi, romance aclamado internacionalmente, vencedor do Man Booker Prize de 2002, traduzido para 41 idiomas e integrante da lista dos mais vendidos do New York Times por mais de um ano. Yann Martel mora em Saskatchewan, Canadá, com a escritora Alice Kuipers e o filho do casal, Theo.
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

Rascunho